A luta pela reapropriação social da natureza

22/07/2010
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Está em curso hoje uma enorme batalha pelo controle da energia, inclusive, da alimentação.
 
Há um mito que acompanha o debate sobre a alimentação da humanidade que apesar de todo o esforço de Josué de Castro e tantos outros pesquisadores se mantém: o da necessidade do desenvolvimento científico-tecnológico para se garantir o pleno abastecimento dos mais de seis bilhões de habitantes do planeta. Nada contra os mitos, diga-se de passagem, pois afinal as sociedades vivem e morrem dos mitos que conformam. A sociedade capitalista está morrendo do mito da ciência e da técnica a serviço da dominação da natureza, aqui visto enquanto fundamental para resolver o problema da fome. Afinal, o conhecimento científico-tecnológico já estabelecido é mais que suficiente para resolver o problema da fome mundial e assim o faria se o problema fosse um problema científico-tecnológico. Enfim, temos um remédio que não tem a ver com a doença, mas continua sendo aplicado. Na verdade, trata-se do mito da dominação da natureza sobre o qual se erigem a ciência e a técnica de origem ocidental. E a fé na ciência não é ciência. É fé!
 
Na verdade, está em curso hoje uma enorme batalha pelo controle da energia, inclusive, da alimentação, energia que alimenta os seres humanos, às vezes esquecemo-nos disso. Enfim, não é só a transição energética para sairmos da energia dos fósseis a que estamos todos condenados. Há também uma luta pelo controle das sementes que é estratégica na exata medida em que a semente é a condição de reprodução da espécie. E a semente não é só um fenômeno biológico posto que nela encerra-se conhecimento. Enfim, tudo que envolve a produção das sementes envolve esse duplo material-simbólico, biológico-cultural que está implicado na agricultura há, pelo menos, oito mil anos.
 
 O que está implicado hoje no debate acerca dos mal-chamados produtos transgênicos, e ainda na biotecnologia e na nanotecnologia, é o deslocamento do locus de poder sobre a produção das sementes, ou seja, se continua sob o controle dos camponeses e dos povos indígenas ou passa ao controle das corporações industriais da biotecnologia e da nanotecnologia. Essa luta vem pendendo para o lado das corporações industriais das sementes, sobretudo desde a revolução ideologicamente chamada verde, com as sementes híbridas até a semente terminator de hoje. Enfim, com isso os camponeses e os povos originários se vêem sem condições de produzir suas próprias sementes e, assim, é o conhecimento tradicional milenar que se torna obsoleto e, assim, toda cultura que engendraram. Assim, em lugar da diversidade cultural historicamente associada à diversidade biológica e geomorfológica, enfim, à diversidade das paisagens, temos a tendência homogeneizante dos grandes latifúndios empresariais aqüívoros e energívoros com suas monoculturas de exportação. Registre-se que a monocultura enquanto técnica foi introduzida nos Açores e com maior êxito na América/Abya Yala com as plantations de cana de açúcar e, já ali, associadas à produção manufatureira com os engenhos para exportar açúcar
 
. Não havia na Europa, à época, engenhos manufatureiros como os que produziam a commoditty de então, o açúcar, tanto no Brasil, como no Haiti e em Cuba. Não exportávamos açúcar, mas sim produtos feitos nos engenhos, portanto, produtos manufaturados, ao contrário do que se ensina eurocentricamente nas escolas ainda hoje. E fazer monocultura não foi um ato espontâneo, mas sim uma imposição colonial feita com chibata justificada para salvar o índio e o escravo da sua condição de raça inferior. Diga-se de passagem, que esse sistema de classificação por raças, racismo que teima em subsistir ainda hoje, foi introduzido com as modernas tecnologias dos engenhos e das monoculturas demonstrando todo o lado colonial que lhe é inerente e, assim, conformando o sistema mundo moderno-colonial que nos governa há quinhentos anos, como vemos. Não há tecnologia que não seja parte de um sistema de relações sociais e de poder é a tese que se afirma.
 
Hoje, o controle da produção de energia tanto para prover as máquinas (combustível) como os homens (alimentos) se encontram contraditoriamente na produção de etanol e do biodiesel. E o capitalismo já demonstrou que pode sobreviver acumulando à revelia da garantia das necessidades humanas de comer, beber, habitar e vestir dignamente como se pode constatar nos bilhões dólares implicados no mundo lucrativo da venda de armas e de drogas, além de um mercado lucrativo de luxo e de novidades que se retroalimenta independentemente das necessidades humanas mas básicas. Hoje há uma disputa por terras para alimentar a energia humana e para alimentar com energia as máquinas cujo destino, a se manter o mundo capitalista, vai depender de onde se gera mais lucro. Há um claro aumento no preço da terra com implicações no preço dos alimentos em função da demanda aquecida pelas oportunidades de negócio com o etanol e o biodiesel.
 
Estamos longe, portanto, de um processo que esteja se desenvolvendo para resolver o problema da fome mundial, mas sim para aumentar o poder de algumas corporações sobre essa energia vital para a humanidade que é a produção de alimentos assim como a energia para as máquinas. Com isso expropriam-se da terra milhões de famílias, como se pode ver nos últimos 40 anos.
 
Segundo a ONU, entre 1970 e 2010, a população urbana do planeta aumentou em 2.177.000.000 de habitantes, ou seja, acrescentou-se uma cidade de 54 milhões de habitantes ao mundo a cada ano nos últimos 40 anos! A população urbana do mundo, em 1990, era maior que a população total do planeta 30 anos antes, em 1960! Na América Latina/Abya Yala, a população urbana, em 2010, era maior que a população total da região 20 anos antes: 475 milhões de população nas cidades, em 2010, contra 441 milhões de população total, em 1990! Em outros termos, entre 1970 e 2010 tivemos na América Latina/Abya Yala uma nova cidade de oito milhões de habitantes a cada ano!
 
Enfim, com a expansão da Revolução (nas relações sociais e de poder) Verde, com a construção de barragens e de estradas por todo lado tivemos, desde os anos 1970, a expulsão de camponeses, indígenas e afrodescendentes com a apropriação privada de suas terras e águas, em grande parte até então sob uso comunitário, para serem concentradas em grandes latifúndios empresariais voltados, sobretudo, para exportação, que não só produzem muitos grãos (soja e milho), madeira para papel e celulose, cana, gado e carvão vegetal para ferro gusa, mas também produziram um aumento significativo da concentração fundiária e de poder, sobre uma estrutura fundiária e de poder já historicamente concentrada, além de produzir muitos trabalhadores sem terra.
 
Observe-se que muitos desses trabalhadores expropriados se dirigiram para cidades também submetidas à especulação imobiliária que os impede de ter acesso a uma habitação decente, onde os serviços e as indústrias, até pela revolução (nas relações sociais e de poder) técnico-científica não lhes oferecem opções de um emprego digno e, assim, nos vem dando cidades cujas populações se veem hoje mais expostas às intempéries do que quando estavam nas áreas rurais. Não olvidemos que essas populações foram lançadas nessas cidades num período histórico, neoliberal, em que mudanças nas relações de poder por meio da tecnologia promoviam flexibilização laboral, permitindo ao capital escapar das regiões de tradição de lutas operárias, com o estado não só flexibilizando direitos e promovendo a concorrência dos lugares para atrair capitais numa competição de oferta de atrativos e renúncias fiscais, e ainda se retirando de seus compromissos sociais.
 
A resistência dos camponeses e dos povos originários em todo mundo tem sido fundamental para tentar conter esse processo de acumulação por espoliação, como lhe chamou David Harvey em seu livro O Novo Imperialismo. Enfim, se a expropriação das terras permitiu ao capitalismo se desenvolver transformando tanto homens/mulheres como a natureza em mercadoria, a luta desses povos e etnias nos dão um novo horizonte de sentido para a vida com a luta pela reapropriação social da natureza onde a cultura é politizada através da luta pelo território.
 
https://www.alainet.org/pt/articulo/142988
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