De Sabores, de Saberes e de Poderes
23/06/2010
- Opinión
DO RIGOR NA CIÊNCIA[1]
“Naquele Império, a Arte da Cartografia atingiu uma tal Perfeição que o Mapa duma só Província ocupava toda uma Cidade, e o Mapa do Império, toda uma Província. Com o tempo, esses Mapas Desmedidos não satisfizeram e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império que tinha o Tamanho do Império e coincidia ponto por ponto com ele. Menos Apegadas ao Estudo da Cartografia, as Gerações Seguintes entenderam que esse extenso Mapa era Inútil e não sem Impiedade o entregaram às Inclemências do Sol e dos Invernos. Nos Desertos do Oeste subsistem despedaçadas Ruínas do Mapa, habitadas por Animais e por Mendigos. Em todo País não resta outra relíquia das Disciplinas Geográficas.
Suárez Miranda: Viagens de Varões Prudentes, livro quarto, cap. XIV, 1658”.
Jorge Luis Borges
“Os filósofos têm se dedicado a buscar a raiz das coisas e não as coisas”.
Michel Foucault
Devemos nos habituar a afirmar, de uma vez por todas, que o conhecimento não se reduz ao conhecimento científico, como se quis modernamente fazer crer, com isso desqualificando outras falas e outros saberes simplesmente porque não eram científicos.
Hoje não só sabemos que pouco sabemos da Physis – fala-se que somente conhecemos 10% da matéria conhecida, que não é o mesmo que matéria cognoscível, como nos ensina o físico Marcelo Gleiser; que utilizamos uma parcela muito pequena do nosso cérebro; que há, para além do conhecimento científico, um vasto conhecimento acerca da natureza desenvolvido por populações que os criaram através de culturas tecidas numa relação íntima com-a-natureza e não contra-a-natureza, como a sociedade ocidental urbana moderna.
Enfim, o conhecimento científico é um modo de conhecimento e não O Conhecimento. E, mais, o conhecimento está inscrito na vida de cada um, pois não se vive sem conhecimento.Todo e qualquer ser vivo tem que estar aberto para o mundo, para o ambiente, de onde extrai o necessário para se alimentar. Tem que saber pelo cheiro, pelo olfato, pelo tato (pelo paladar), pela visão, pelo som. O ser humano não escapa desse extrato natural, animal que é. Também sabe pelo cheiro, pelo olfato, pelo paladar, pelo tato, pelo som, muito embora superdimensionemos o que sabemos por meio da visão[2].
Várias línguas ainda indicam que se sabe não só por meio da visão como nos indicam o mesmo radical para saber e sabor - sapere e sapore, do italiano, ou saveur e savoir, do francês . Sabemos que toda cultura se faz transformando o cru – a natureza – em cozido – a cultura (Lèvy-Strauss[3]), no saber criar o sabor. A culinária é a síntese desse entrecruzamento radical de toda sociedade (relação dos homens e mulheres entre si e com-a-sua-natureza, como gostava de escrever T. Adorno). E o sabor, sabemos, implica a indissociabilidade do cheiro e da visão, do tato e do paladar. É uma lógica material, como designou o físico e filósofo Gaston Bachelard, por contraste à lógica formal (lógica das formas) ou lógica ocularista dominante em nossa sociedade.
No meio científico essa lógica formal ficou consagrada pelo uso freqüente de gráficos com suas linhas e curvas que oferecem à nossa visão formas (éidos, do grego), gráficos acertadamente chamados cartesianos. Na geografia, a consagração dessa lógica ocularista, formal e matemática está naturalizada nos mapas. Já vimos que os mapas estão assentados em coordenadas cartesianas e que seus graus, segundos e minutos indicam que um tempo abstrato comanda a representação (e controle) do espaço. Essa abstração matemática a partir de horas que são iguais em qualquer lugar, não impede que o mapa apareça a cada de um de nós como sendo algo objetivo. É preciso muita imaginação para se achar que nosso bairro, nossa cidade, nosso país ou o planeta inteiro cabe num pedaço de papel de alguns poucos centímetros, o que não nos impede de dizer que eles estão ali, objetivamente. Diz-se, até, que o que não está no mapa não existe. O que, de certa forma, não deixa de estar correto, desde que se considere que o mapa não é o mundo no papel e, sim, a invenção de um mundo que visibiliza e invisibiliza o que tem significado para quem faz o mapa. Imagem e magia têm ligações mais fortes do que admitem nossa vã imaginação. Cada sociedade vive (e morre) dos mitos que cria.
Há, ainda, muitos saberes inscritos nos fazeres e não nos dizeres ou nos escritos. O fazer nosso de cada dia está impregnado de conhecimentos e o fato de alguém não saber falar sobre esse conhecimento não quer dizer que não saiba. Pode, simplesmente, não saber ... dizer, falar. Ou, simplesmente, não ser do seu fazer ... o dizer. Afinal, alguém pode dizer ‘nós vai’ e saber dizer para onde vai, enquanto outro pode dizer ‘nós vamos’ e não saber para onde vai. Quem já entrou numa floresta, num rio, num cerrado, ou na caatinga, ou no mar, seja com um caboclo, com um índio, com um camponês, ou com um pescador sabe que há um enorme acervo de conhecimentos produzidos por essas outras matrizes epistêmicas o que, até aqui, temos nos recusado a aceitar como tal, embora, não tenhamos deixado de nos apropriar desses saberes que estão subjacentes à maior parte da culinária e da medicina disponível para a humanidade. Uma simples contabilidade de quem se beneficia desse acervo de conhecimentos só no mundo da farmacologia nos daria conta da enorme injustiça que se fundamenta no preconceito. Sabemos o quanto o dizer que os outros não sabem serve de fundamento e justificativa para que alguns homens e mulheres se imponham sobre outros homens e mulheres. Admitir que os outros sabem é, assim, admitir que cada ser da espécie humana é portador dessa igualdade radical de todo ser vivo, dos homens e mulheres das mais diversas culturas. Aqui a diferença requer igualdade política.
Sabemos, ou deveríamos saber, o quanto de preconceito dorme em cada um de nós formados nessa tradição de 2.500 anos de pensamento ocidental. Afinal, o conhecimento, desde a crise da democracia ateniense, passou a ser, cada vez mais, um conhecimento feito por especialistas que, para conhecerem verdadeiramente, seja lá o que isso signifique, deveriam se dedicar exclusivamente à arte de pensar. Para isso deveriam se manter livres do trabalho manual forjando, assim, um verdadeiro abismo entre o trabalho manual e o trabalho intelectual, entre os que fazem e os que pensam. Reafirme-se que esse abismo é cavado pelo preconceito contra os que trabalham, contra os que operam com as mãos. O conhecimento racional, isto é, o conhecimento lógico, científico e filosófico passa a ser desenvolvido num mundo à parte, como se fôra um mundo sobrelunar. Vê de longe [4].
Deste modo, a verdade descoberta nos gabinetes, catedrais, mesquitas, monastérios ou laboratórios, será levada aos que vivem no mundo sublunar. Assim, a verdade seria externa ao mundo vivido pelos homens e mulheres mundanos. Ainda hoje temos o Pastor, ou o Filósofo, ou o Político, ou o Cientista que, por estudarem, acreditam conhecer a Verdade e, por isso, estariam autorizados a levá-la, de fora, a quem não a conhece. A verdade não estaria entre os homens e mulheres no seu cotidiano, em meio às suas relações recíprocas e com a natureza, mas fora dessas relações mundanas. Os que trabalham com as mãos, aqueles que estão no mundo do trabalho, mundanos que são, não são vistos na sua humanidade plena, posto que seriam seres desprovidos da razão e, deste modo, são, simplesmente, mão ... (de obra).
Registre-se, ainda, que esse saber racional, desde a Grécia Clássica, era desenvolvido exclusivamente por homens e negado às mulheres, como se elas não fossem capazes de desenvolver um conhecimento racional. Eis a origem da crença, presente ainda hoje, que as mulheres são emotivas, passionais e não racionais. E, mais ainda, para os gregos, as mulheres estavam excluídas da vida pública que só era admitida para alguns homens. Assim, aquela atividade humana que os gregos consideravam a mais sublime - a Política – era negada às mulheres. Deste modo, as mulheres estavam impedidas de virem a público expressar a sua verdade. A verdade grega era a verdade da sua metade homem. Daí, até hoje, a expressão homem público ser uma expressão qualificada positivamente e mulher pública ser desqualificada posto que sinônimo de mulher mundana (prostituta).
Toda a análise das implicações éticas, políticas, sociais, econômicas e culturais do sistema técnico-científico indica-nos que o mundo que vivemos aponta para a necessidade de um diálogo com matrizes de racionalidade distintas, onde o conhecimento não seja reduzido ao conhecimento científico e a racionalidade reduzida à racionalidade científica.
O conhecimento técnico e perito, aquele que se apresentou como um conhecimento universal, generalizou suas práticas e, com isso, estendeu as conseqüências de seus atos para amplos segmentos sociais que não participaram das decisões de que sofrem os efeitos. E, como sabemos, não são efeitos quaisquer (uso da engenharia genética, da biotecnologia na comida nossa de cada dia; risco nuclear; ‘acidentes’ vindos do “mundo químico”; efeito estufa; o buraco da camada de ozônio; erosão genética; desequilíbrio hídrico; perda de solos ...). Assim, decisões tomadas com base numa legitimidade técnica e científica, legitimidade essa que, diga-se de passagem, é, hoje, posta em dúvida dentro da própria comunidade científica, contribuíram para produzir riqueza para alguns, pobreza para muitos e desequilíbrio ecológico para todos
Enfim, o conhecimento técnico-científico, por melhor que seja e, por mais que tenha que ser considerado como um modo de conhecimento válido, não é suficiente para que uma decisão eficaz possa ser tomada, sobretudo quando envolve sistemas complexos, como os que envolvem a relação do homem com a natureza, posto que sempre envolve sistemas de alto grau de incerteza, dinâmicas naturais, em si mesmas complexas (complexidade ordinária) e, ainda, sistemas morais, éticos, sociais, políticos e culturais, ou seja, sistemas de complexidade reflexiva.
É preciso que se leve em conta que a razão instrumental, aquela que se forja numa relação sujeito-objeto, não contempla a complexidade do mundo vivido, o mundo das relações intersubjetivas, da razão comunicativa, onde outros modos de conhecimento se dão[5].
Não basta o conhecimento objetivo de uma determinada situação, seja lá o que isso signifique, para que os que se colocam a tarefa de produzir esse conhecimento tenham competência para formular a solução. O modo como cada um dos que estão implicados percebe a situação é diferente, assim como, a própria história vivenciada pelos protagonistas diretos implica que nem todos os envolvidos sejam igualmente acreditados. Assim, por exemplo, uma liderança comunitária implica um modo de conhecimento inscrito na relação entre os membros daquele lugar, daquele espaço. Geralmente ele sabe algo fundamental para seus pares, caso contrário, ele não seria acreditado nem, tampouco, seria uma liderança comunitária, sindical, religiosa. Este modo de conhecimento implicado nas próprias relações de uma determinada comunidade deve ser considerado como parte da realidade objetiva e, como tal, muito provavelmente contribuirá para fazer com que, no mínimo, a mediação entre o conhecimento técnico-perito e a efetiva solução dos problemas seja acreditada pelos diretamente implicados. Trata-se de um capital político-cultural objetivado nas relações da comunidade implicada
A liderança de um pastor, ou de um sindicalista, o prestígio de um velho pescador, ou de um pajé, ou da(o) mais velha(o) para as comunidades tradicionais implica conhecimentos outros, uma verdadeira ‘comunidade estendida de peritos’ (extended peer community) como chamam Funtowicz e de Marchi[6]. Independentemente dos títulos ‘oficiais’ que esses ‘diferentes peritos’ tenham, com certeza, ampliam não só a qualidade do conhecimento a respeito do ambiente em que vivem como, também, podem emprestar uma qualidade fundamental – a qualidade de eficácia - às medidas que, eventualmente, venham a ser indicadas, porque colocam novas mediações na relação entre o perito convencional e o mundo vivido pelos diretamente implicados (Funtowicz e de Marchi). Afinal, as relações sociais e de poder são instituídas por sujeitos cognoscentes, enfim, por homens e mulheres que conhecem porque o conhecimento está inscrito na vida e que esse conhecimento não necessariamente é escrito ou mesmo falado (de Certeau[7] e Gonçalves, 2002[8]).
Mais uma vez, e de outra forma, estamos vendo como o conhecimento está implica a sociedade como um todo, com suas relações sociais e de poder. Não nos enganemos: quaisquer que sejam as razões que levam à crise do conhecimento disciplinarizado instituído (por um processo desencadeado por sujeitos instituintes), essa crise no plano do conhecimento está indicando uma crise profunda das próprias relações sociais e de poder. Assim, devemos admitir, já como ponto de partida, que uma perspectiva interdisciplinar, embora necessária, não pode ser vista como um remédio para todos os males, uma Panacéia, como se pudéssemos instituir uma nova estrutura de pensamento dissociada das relações sociais e de poder, uma cabeça sem corpo.
Estamos, pois, muito adiante de uma mera perspectiva interdisciplinar ou multidisciplinar, mas, sim, diante de algo que envolve outras relações sociais e de poder e que, como tal, exige um outro conhecimento implicando, inclusive, outros protagonistas, outros saberes. É de uma outra racionalidade que carecemos, com o cuidado de que ela não se imponha de fora por meio de algum saber (que se quer) competente e que reproduza a separação entre homens de pensamento e homens de ação, como bem assinalara Hanna Arendt[9]. Os caminhos da racionalidade ambiental apontados por Enrique Leff[10], a ciência posnormal de Walter Pengue e Silvio Funtowwicz, e a hermenêutica diatópica de Boaventura de Sousa Santos[11] são boas pistas para esse encontro.
- Carlos Walter Porto-Gonçalves é Doutor em Geografia pela UFRJ. Professor do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense e Ex-Presidente da Associação dos Geógrafos Brasileiros (1998-2000). Foi ganhador da Medalha Chico Mendes em Ciência e Tecnologia em 2004. Membro do Grupo de Trabalho Hegemonias e Emancipações de Clacso. É autor de diversos artigos e livros publicados em revistas científicas nacionais e internacionais, sendo os mais recentes: - “Geo-grafías: movimientos sociales, nuevas territorialidades y sustentablidad”, ed. Siglo XXI, México, 2001; “Geografando – nos varadouros do mundo”, edições Ibama, Brasília, 2004; O “Desafio ambiental”, ed. Record, 2004; “A Globalização da Natureza e a natureza da globalização”, ed. Civilização Brasileira, 2006.
[1] - J.L. Borges, 1988 História Universal da Infâmia, Editora Globo, Rio de Janeiro, tradução de Flávio José Cardoso.
[2] - Costuma-se dizer que um homem inteligente é um homem de visão, um homem que vê longe, uma águia. Não se diz que é um homem que sabe ouvir, por exemplo.
[3] - Strauss, C. L. O Pensamento Selvagem, Papirus Editora, 1989, Campinas, Brasil .
[4] - Para não ser visto ?
[5] - Porto-Gonçalves, C.W. 1987 Possibilidades e Limites da Ciência e da Técnica diante da questão ambiental, Revista Geosul, Florianópolis; Porto-Gonçalves, C.W. 1989 Os (Des) caminhos do Meio Ambiente, Contexto, São Paulo.
[6] - Funtowicz, S. e de Marchi, B. 2000. Ciencia posnormal, complejidad reflexiva y sustentabilidad. In Leff, Enrique (coord.) La complejidad ambiental, Siglo XXI-PNUMA, México.
[7] - de Certeau, M. 1994. A Invenção do Cotidiano, E. Vozes, Petrópolis.
[8] - Porto-Gonçalves, C.W. 2002. Meio ambiente, ciência e poder: diálogo de diferentes matrizes de racionalidade. In Sorrentino, M. (Coord.) Ambientalismo e Participação na Contemporaneidade, Educ-Fapesp, São Paulo.
[9] - Arendt, H. 1971. Sobre a revolução. Moraes ed., Lisboa.
[10] - Leff, E. 1998. Saber Ambiental: sustentabilidad, racionalidad, complejidad, poder. Siglo XXI-PNUMA, México.
[11] - Santos, Boaventura Sousa 2002. Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.
https://www.alainet.org/pt/articulo/142342
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