De racismo e de sustentabilidade

28/12/2009
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A questão étnico-racial vem adquirindo nos últimos anos um lugar de destaque no debate teórico-político que há muito tempo lhe era devido. São inúmeras as razões para que isso venha acontecendo. Desde os anos 1950 com a descolonização, com o movimento da negritude na África, e dos anos 1960 com as amplas mobilizações pelos direitos civis nos Estados Unidos da América do Norte (Martin Luther King) e com o movimento negro em que se destacaram, entre outros, Malcolm X e Ângela Davis, que a problemática étnico-racial começou a ganhar visibilidade. Os anos 1990 viriam o movimento indígena agregar suas cores a esse movimento para o que muito contribuiu a comemoração dos 500 anos de constituição do sistema-mundo, em 1992. O movimento indígena soube ler corretamente o significado político daquela data e da Conferência de Meio Ambiente e Desenvolvimento da ONU realizada na cidade do Rio de Janeiro. Afinal, a reunião da ONU se fazia para debater as implicações do modelo de desenvolvimento que havia se afirmado contra outras matrizes de racionalidade e que, agora, convocava uma conferência mundial para discutir temas como a água, o ar, a terra, as plantas e os animais, assuntos com os quais esses povos desenvolveram uma sabedoria original.
 
Há dois momentos a serem distinguidos nesse processo de emergência desses movimentos que invocam politicamente o debate étnico-racial. O protagonismo do movimento negro estadunidense dos anos sessenta que, entre outras coisas, conquistou em 1964 o direito de votar da imensa população negra daquele país, foi assimilado pelo sistema de poder dominante seja através da repressão, seja através de cooptação. Tom Smith e John Carlos, os vitoriosos atletas negros dos EUA que levantaram seus punhos no podium na Olimpíada do México em 1968 tiveram, rigorosamente falando, que comer o pão que o diabo amassou pelo ostracismo a que foram condenados pela ousadia de se manifestarem contra o racismo. A condenação à miséria e ao desemprego desses atletas acabou sendo estendida ao australiano Peter Norman que no mesmo podium resolveu se solidarizar com os aborígenes do seu país colocando no peito o mesmo adesivo dos atletas dos EUA (Veja foto).

Fonte: Wikipedia[1]
 
Não foram poucos os intelectuais que passaram a ganhar destaque a partir de então falando dos novos movimentos sociais onde os de caráter étnico-raciais ganhavam destaque junto com o movimento de mulheres, ecológicos e outros. Até mesmo Hollywood se mostrou sensível às reivindicações dessas populações tendo nos oferecido excelentes filmes como O Estranho no Ninho, estrelado por Jack Nicholson, e O Pequeno Grande Homem, estrelado por Dust Hoffman. Desde então, um intenso debate teórico-político vem sendo feito onde os movimentos de caráter classistas, tão enfatizados pela tradição marxista, vêm sendo negligenciados e, até mesmo, antagonizados com relação a esses outros movimentos que, segundo uma tradição pós-moderna que já se desenha a 40 anos, nega as grandes narrativas e a idéia de totalidade. Esse debate, como soe acontecer principalmente no campo das ciências sociais, não é um debate meramente teórico, mas também político como tão bem salientaram Michel Foucault e Pierre Bourdieu, sendo deste a afirmação de que “é da natureza da realidade social a luta permanente para dizer o que é a realidade social”.
 
Associado a essas lutas epistêmico-políticas veremos nos anos 1980 e 1990 com as reformas neoliberais, sobretudo na América Latina/Abya Yala, a constitucionalização dos direitos dos indígenas e das populações negras em vários países (Colômbia, Peru, Bolívia, Equador, Brasil, entre outros), o que reforçou no campo do pensamento marxista a convicção de que essas políticas específicas conformavam um conjunto de políticas neoliberais que atacavam o princípio universalista das lutas por igualdade social que protagonizaram desde o século 19.
 
Nesse contexto, a Nicarágua nos ofereceria uma experiência que nos parece fundamental para entendermos a reviravolta que adquire o debate político a partir do étnico-racial. É que na Nicarágua, para além das pressões estadunidenses para combater a revolução sandinista de 1979, os índios Miskitos do litoral caribenho se confrontarão com/contra as perspectivas desenvolvimentistas que os sandinistas etnocentricamente queriam levar para as suas regiões. Há um intenso debate próprio colocado pelos Miskitos que nos ilumina outras situações vividas em outros países, como na Bolívia em 1952. O Movimento Nacionalista Revolucionário boliviano, em 1952, ignorou as tradições quéchuas e aymara dos ayllus, organização territorial de caráter comunitário, e impôs uma reforma agrária de caráter eurocêntrico com divisão das terras para camponeses enquanto proprietários privados. José Carlos Mariáteguui, o renegado marxista peruano que tanto havia se esforçado por nos mostrar a centralidade da questão indígena (eu diria étnico-racial) nos processos revolucionários latino-americanos, se mostrava mais vivo do que nunca tanto na Bolívia de 1952, como na contraditória Nicarágua sandinista de 1979-1989.
 
A Nicarágua sandinista inaugura um novo momento do debate étnico-racial pós-anos 1960 atualizando, contraditoriamente, Karl Marx com uma das suas mais importantes contribuições à teoria social, quando nos alertara que os homens (e as mulheres, acrescentamos) fazem história, mas não nas circunstâncias que escolheram. Ainda em 1990, na Bolívia e no Equador duas grandes marchas partem das regiões periféricas destes países e rumam para as capitais protagonizando um novo momento na luta dos grupos subalternizados desde o período colonial numa nova conjuntura que, em grande parte, foi propiciada pela brecha aberta pelo reconhecimento dos novos movimentos sociais na sua luta pelo direito à diferença. Ainda que as intenções dessa abertura possam ter sido bem outras, como a de dividir os grupos subalternos que os marxistas procuravam reunir em torno do conceito de classe, devemos também reconhecer que não eram meras concessões, pois respondiam, à sua maneira, às reivindicações que emanavam das contradições instauradas no contraditório processo de nossa formação territorial colonial, onde conformação das classes sociais se deu classificando os dominados a partir da cor de sua pele /ou de sua diferença étnica.
 
O componente da diferença, sobretudo étnico-racial, não é menos contraditório na Europa, ainda que um estado monocultural tenha sido imposto homogeneizando os diferentes, como Robert Lafont o demonstrou cabalmente em seu livro La Revolucion Regionalista[2]. Aqui na América/Abya Yala a contradição de classes está imbricada estruturalmente na questão étnico-racial constituindo um processo de enclassamento posto que, ao mesmo tempo, é classe e estamento, conceito que abriga a antropofagia que nos caracteriza imbricando categorias analíticas separadas na tradição européia. Darcy Ribeiro, por exemplo, já havia nos alertado para o que chamara de indigenato[3], ou seja, os camponeses etnicamente diferenciados que caracteriza boa parte do nosso continente, sobretudo na Guatemala, México, Peru, Bolívia, Equador, Paraguai, norte da Argentina, sul do Chile, fronteira colombo-venezuelana, Amazônia colombo-brasileira, brasileiro-venezuelana e brasileiro-boliviano-peruana, além do litoral pacífico colombiano majoritariamente negro, para não falarmos dos cimarrones do Suriname e dos afro-americanos da anacrônica colônia francesa da Guiana.
 
O componente étnico-racial está intimamente imbricado na formação de classes de nosso sistema mundo moderno-colonial, como bem podemos observar nos salários desiguais para trabalho igual não só entre países como entre regiões de um mesmo país, mesmo nos marcos de uma mesma empresa transnacional; nos rejeitos de minérios nas explorações com a poluição das águas e dos solos e no desmatamento nos países da periferia para proveito dos habitantes do centro; no descarte de resíduos radiativos nos mares e terras bem longe dos centros do sistema mundo; nas estratégias de investimentos de indústrias altamente poluentes nos países da periferia, pois em caso de indenização uma vida vale bem menos abaixo do Equador; nas propostas de “seqüestro de carbono” das ONGs associadas às multinacionais do capitalismo verde (sic). Talvez tudo isso nos ajude a entender porque as reuniões da ONU sobre racismo, apesar de conduzidas pelos polidos diplomatas venham tendo desfechos bem pouco nobres. A recente reunião sobre o clima da ONU realizada em Copenhague em dezembro de 2009, também viu os riscos que essa mentalidade colonial continua submetendo toda a humanidade ao querer manter essa geografia desigual de proveitos, para os do norte, e rejeitos, para os dos sul. Afinal, ali em Copenhague se explicitou a secreta relação entre a dominação dos povos considerados selvagens, isto é, da selva, portanto, da natureza, e um modelo civilizatório que quer dominar a natureza, olvidando que nenhuma sociedade pode dela prescindir. Enfim, a crítica ao capitalismo terá que incorporar o componente étnico-racial que conforma a estrutura social do sistema mundo moderno colonial.
 

- Carlos Walter Porto-Gonçalves é Doutor em Geografia. Professor do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense. Pesquisador do CNPq – Conselho nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Pesquisador do Grupo Hegemonia e Emancipações de Clacso. Ganhador do Prêmio Casa de las Américas 2008 de Literatura Brasileira. Ex-Presidente da Associação dos Geógrafos Brasileiros (1998-2000). Membro do Grupo de Assessores do Mestrado em Educação Ambiental da Universidade Autônoma da Cidade do México. Ganhador do Prêmio Chico Mendes em Ciência e Tecnologia em 2004. É autor de diversos artigos e livros publicados em revistas científicas nacionais e internacionais.



[2]Lafont, Robert 1971 La revolución regionalista (Barcelona: Ariel).
[3] Armando Bartra usa a expressão campesíndio em seu El hombre de hierro. Los límites sociales y naturales del capital. Bartra, Armando 2008 El hombre de hierro. Los límites sociales y naturales del capital. UACM/UAM/Editorial Itaca, México.
https://www.alainet.org/pt/articulo/138729
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