As conseqüências sociais e ambientais da prioridade ao monocultivo

24/06/2009
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1-       A produção agrícola através de monocultivos é uma das principais inovações do chamado mundo moderno. Antes de ser um fenômeno técnico que, com certeza é, os monocultivos são um fenômeno político. Até sua introdução na primeira modernidade que se inicia em finais do século XV, primeiro no arquipélago dos Açores, na África, e depois na América, não se conhecia em qualquer lugar do mundo um grupo social, uma comunidade ou um povo que se caracterizasse por tais práticas. Desde o início, a prática dos monocultivos esteve associada a produzir não para si mesmo, mas sim para outrem, no caso para um mercado mundial que começa a se constituir por meio dessas práticas. Até então, seja em comunidades camponesas, seja por outras formações sociais, como as indígenas, por exemplo, as práticas agrícolas sempre se caracterizaram pela diversidade de cultivos e pela associação da agricultura com a criação de animais e com o extrativismo (de madeira, de lenha, de frutos selvagens). A introdução dos monocultivos foi, assim, uma das principais heranças do colonialismo, haja vista que associado a essa prática veio a escravidão e o racismo, fenômenos que, juntos, vão conformar uma estrutura de poder marcada pela violência contra os povos e contra a natureza. Aliás, entre nós, na América, a dominação da natureza e toda violência contra ela perpetrada foi, ao mesmo tempo, a violência contra os povos e os trabalhadores escravizados também vistos como desprovidos de cultura e, assim, associados à natureza (selvagem que dizer da selva). O conquistador/colonizador se arrogando superioridade cultural se dava o direito de dominar a natureza que, aqui, incluía os homens e mulheres que, segundo a sua leitura, não detinham cultura. Violência simbólica e violência física não se dissociam.

2-       Desde o início, a prática de monocutivos esteve associada às mais modernas técnicas de transformação de matérias primas. Observemos que, ao contrário do que dizem os livros escolares do nível primário ao universitário, nossos países não eram exportadores de matérias primas, mas sim de açúcar, um produto manufaturado. Portanto, as primeiras manufaturas modernas estavam no Brasil, em Cuba e no Haiti e não na Europa e transformavam a cana de açúcar produzida por meio de monocultivos com base em trabalho escravo. Vê-se, assim, que aquilo que se chama modernidade é, para os nossos povos, marcado por profundo sofrimento, pois produzido por meio de violência da escravidão e dos monocultivos. Há uma linha de continuidade histórica que vem dos mais antigos engenhos do século XVI, à sua época o que havia de mais moderno, aos atuais latifúndios monocultores dos agronegociantes que, hoje, concentram terras e capital com seus monocultivos de soja, cana de açúcar, eucalipto, algodão, laranja, milho, girassol e outros. Há 500 anos somos modernos! Há 500 anos produzimos com as tecnologias de ponta para o mercado mundial! Há 500 anos experimentamos o lado amargo da modernidade, a colonialidade, lado amargo esse que lhe é constitutivo. O sistema mundo que começa a se constituir a partir de 1492 é um sistema mundo moderno-colonial, e não simplesmente moderno. É somente a partir daí que a Europa passou a ter a centralidade geopolítica e cultural que até hoje mantém e cuja matriz imperial viria partilhar com os Estados Unidos que, tal como a tradição imperial européia, tem sua inspiração no Império Romano (conquista territorial e colonial). 

3-       Observemos que a centralidade que a Europa passa a ter com o advento do sistema mundo a partir de 1492 é inseparável da América, da exploração dos seus recursos e das suas gentes originárias e daquele/as que para cá foram trazido/as especificamente para fazerem monocultivos para exportação para saciar a sede de acumulação de uma burguesia branca que, ainda, se revestia de uma missão civilizatória marcada por um componente religioso que legitimava com Deus a conquista. Registremos que a dimensão técnica e científica que, na segunda moderno-colonialidade do século XVIII sob hegemonia inglesa, francesa e alemã se vê como laica e não religiosa, se caracterizará pela crença no papel redentor da ciência e da técnica revelando, assim, o quanto a dimensão religiosa está imbricada nessa ideologia cientificista. Afinal, a fé na ciência não é ciência. É fé!

4-       Essa dimensão mítico-religiosa está por trás desses monocultivos técnico-científicos que matam e desmatam há 500 anos em “nuestra América” (José Martí).

5-       Como soe acontecer em toda relação marcada pela dominação/subjugação, o que é dominado se vê negado na sua potencialidade para que dele seja extraído o que o dominador impõe. Assim, uma natureza tropical como a nossa, que tem a propriedade de nos oferecer mais de 500 toneladas de biomassa por hectare, como é o caso da floresta Amazônica, teve todo esse potencial produtivo natural ignorado em nome de uma agricultura monocultora que, simplesmente, desperdiça todo esse potencial e, assim, expõe os solos à erosão, sobretudo em função de não se considerar devidamente o regime de chuvas tropicais que, por aqui, é torrencial. Nossa paisagem, sobretudo em áreas da quase extinta Mata Atlântica, está marcada por ravinas e voçorocas e por cupinzeiros que são os efeitos ecológicos mais deletérios dessa agricultura de monocultivos, além da perda da diversidade biológica junto com o extermínio de muitos os povos e de suas culturas.

6-       Considere-se que o Brasil é o único dos cinco maiores países em extensão territorial do mundo que não passou por uma reforma agrária ou por uma política sistemática de democratização do acesso à terra, o que por si só indica o papel político central que, em nossa sociedade, cumpre o grande proprietário de terras. Esse fato tem enormes implicações sociais e ambientais haja vista que a conquista de terras nas chamadas áreas de fronteiras continua marcada pela mesma colonialidade que nos caracteriza desde os primórdios da conquista. Há um Complexo de Violência e Devastação que se reproduz há 500 anos e que, hoje, tem sua face mais dramática nas áreas de expansão moderno-colonial comandada pelos agronegociantes nos Cerrados do centro-oeste, do oeste baiano, do sul do Maranhão e do Piauí e na Amazônia meridional desde o Acre até o Pará.

7-       A ausência do Estado é o modo como as nossas oligarquias patrimonialisticamente o tratam e que tem, ainda hoje, na grilagem de terras e no jaguncismo sua prática mais comum. Ausência do estado é, portanto, o outro nome do Estado Patrimonial. É essa certeza de impunidade, que só pode ser reiterada porque é estruturante das relações sociais e de poder, que continua comandando a expansão territorial desse histórico Complexo de Violência e Devastação. Assim, a idéia de que temos imensas terras e recursos naturais a conquistar - se diz que o Brasil é o país do futuro – autoriza, no presente, a exploração sem cuidados desse patrimônio natural. Esse presente se reproduz há 500 anos enquanto Complexo de Violência e Devastação!

8-       As oligarquias agronegociantes latifundiárias brasileiras têm na ponta da língua o discurso da modernidade tecnológica que, como vimos, ela vem praticando há 500 anos. No Brasil, com certeza, nada mais tradicional do que o discurso invocando o moderno! Suas monoculturas quincentenárias continuam se defrontando com territórios que, longe de serem vazios demográficos, são ocupados por camponeses variados (seringueiros, quilombolas, quebradeiras de coco de babaçu, geraizeiros, retireiros, coletora/es de baru, pequi, fava d´anta entre outras e outros), enfim, exatamente aqueles que, dado o caráter patrimonialista do Estado, são, antes de tudo, sem-direitos, pois mesmo tendo a posse da terra não a têm enquanto direito que, como tal, deveria ser consagrado pelo Estado. Ou melhor, ainda que tendo direitos consagrados na letra da lei não conseguem exercer esses direitos na prática pelo caráter de classe de um estado que não funciona para os “de baixo”.

9-       Essas populações camponesas, ao contrário dos monocultivos, vivem da sua criatividade cultural e da produtividade biológica primária que a natureza oferece – biomassa – fazendo uma agricultura diversificada, ainda que, muitas vezes, sobrevivendo em condições piores do que poderiam caso houvesse um conjunto de políticas que pusesse em diálogo a ciência convencional com essa ciência da tradição, como chamam alguns pesquisadores.

10-    Os novos meios de comunicação têm aberto novas possibilidades para que essas populações ganhem alguma visibilidade, haja vista sua invisibilização como sujeitos políticos nos grande meios de comunicação (ou nos meios de comunicação dos grandes), ainda que, muitas vezes, sua cultura seja tratada com certa benevolência mas destituída da dimensão política. Alertamos a comunidade internacional que as áreas onde hoje estão as maiores disponibilidades de bens genéticos (germoplasma), ou seja, as áreas de maior diversidade biológica são áreas ocupadas por populações camponesas e/ou por populações cultural e etnicamente diferenciadas, como os quilombolas e povos originários. Insistimos que a ideologia e o imaginário conformados em torno de uma presumida superioridade epistêmica, cultural e religiosa européia tende a deslegitimar essas populações tratando-as como inferiores e como estorvo ao seu progresso e ao seu desenvolvimento, assim como tratam a natureza como algo a ser dominado. Assim como há uma enorme riqueza em diversidade biológica nessas áreas há também um enorme acervo de conhecimentos elaborado por essas populações que não pode e não deve ser desperdiçado. Assim, essas populações e as áreas que ocupam tornam-se estratégicas para conter o Complexo de Violência e Devastação com seus monocultivos moderno-coloniais.

11-    Alertamos para as graves conseqüências, não só para a sociedade brasileira como mundial, que derivam do modo como as nossas oligarquias agronegociantes vêm alardeando a enorme disponibilidade de terras que o Brasil possui como vantagem comparativa para a produção de agrocombustíveis e de outras commoditties (vide site da ÚNICA – União da Indústria de Cana de Açúcar – e do ICONE – Instituto de Comércio e de Negócios Exteriores). ESSAS TERRAS NÃO ESTÃO DISPONÍVEIS. ELAS ESTÃO OCUPADAS POR CAMPONESES, POR QUILOMBOLAS e POR POVOS INDÍGENAS. É uma enorme irresponsabilidade continuar a se propagandear a existência dessas terras como terras disponíveis antecipando, assim, a violência futura.

12-    Alertamos para os conflitos tensos e intensos que já vêm envolvendo essas populações e que tendem a se intensificar com a demanda maior por terra, água e Sol (fotossíntese), haja vista: (a) o fenômeno China e sua exponencial demanda por matéria e energia (vide item 10) e; (b) a apropriação da causa do aquecimento pelos agronegociantes brasileiros em aliança com os magnatas estadunidenses do complexo fossilista da indústria do petróleo e do carvão global que buscam se legitimar como ambientalmente corretos por meio dos agrocombustíveis. Com isso, grandes extensões de terras, sobretudo nos cerrados de São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Goiás já vêm sendo cobertos pelos monocultivos quincentenários de cana de açúcar, deslocando o gado das pastagens dessas regiões (só em São Paulo são nove milhões de hectares de pastagens) gado esse que está sendo levado para os cerrados e para a Amazônia, realimentando o Complexo de Violência e Devastação conformado, inicialmente, pela grilagem de terras para exploração madeireira e de carvão vegetal e, completado, seja pela pastagem para criação de gado, seja pelos monocultivos de soja ou de cana de açúcar.

13-    No Brasil, as grandes plantações de monocultivos de plantas para fins madeireiros, como o eucalipto, o pinnus alba e o pinnus eliotis, não se destinam somente à exportação da pasta de celulose, mas também aos grandes complexos minerais, sobretudo siderúrgicos, para a produção de carvão vegetal para produzir ferro gusa, como em Minas Gerais onde já consumiu a vegetação natural de mata e de cerrado, e na Amazônia Oriental onde a Vale do Rio Doce explora o maior complexo minero-metalúrgico do mundo na Serra dos Carajás que, até aqui, veio consumindo a fantástica biomassa da floresta amazônica e que, agora, com seu esgotamento iminente, tende a aumentar a pressão para plantar monoculturas de madeira numa área cuja principal característica é a megadiversidade biológica. Alertamos que, também aqui, a demanda chinesa aquecendo o preço das commoditties tem impulsionado esse Complexo.

14-    Alertamos ainda para o silêncio internacional para o que vem ocorrendo num dos mais complexos biomas brasileiros, o Cerrado. Trata-se não só de um bioma de enorme diversidade biológica (note-se que é o único bioma que tem contato com todos os outros biomas brasileiros, a saber, o Amazônia, a Mata Atlântica, a Caatinga e a Mata de Araucária no sul) como também do bioma cuja vida se forjou nos planaltos onde nascem os principais rios formadores de todas as mais importantes bacias hidrográficas brasileiras, a saber: para o Araguaia e Tocantins; para a bacia amazônica (os rios Xingu, Tapajós e o Madeira); para a Bacia do Paraná (os rios Grande e Paranaíba); para a Bacia do Paraguai (o rio Cuiabá entre outros); para a Bacia do São Francisco; para a Bacia do Mearim no Maranhão; para a bacia do Parnaíba que corre para o Piauí. Enfim, o cerrado é “uma caixa d´água”, como bem disse o romancista Guimarães Rosa. A avanço do Complexo de Violência e Devastação sobre a área do Cerrado está levando á poluição, por agrotóxicos, desses rios como também ao desequilíbrio do regime hidrológico da região, com o qual os campesinatos e povos indígenas conformaram suas culturas, posto que os pivôs centrais dos grandes monocultivos de soja, algodão, milho, girassol e cana captam água em profundidade a partir das chapadas, área de recarga hídrica e, com isso, as fontes e mananciais diminuem sua vazão e, com isso, as lagoas, lagos, rios e córregos vêm secando. É nessas regiões que os maiores índices de violência vêm sendo registrados conforme a Comissão Pastoral da Terra vem reiteradamente alertando.

15-    Estamos na iminência de uma bifurcação histórica para a qual conclamamos todos a se empenharem em avaliar as suas implicações. Trata-se da inversão da relação entre agricultura, tecnologia, energia e alimentação. Com a industrialização da agricultura vimos os combustíveis fósseis servindo, de alguma forma, à produção de alimentos por meio dos seus tratores, colheitadeiras e ceifadeiras com seus motores movidos, sobretudo a petróleo. Hoje, estaríamos na iminência de invertermos essa relação colocando a produção agrícola a serviço da produção de combustíveis.

16-    Cabe aqui, em respeito aos povos indígenas em geral, uma atenção especial ao povo Karajá do rio Araguaia cuja cultura passa por um momento crucial posto que, sendo filhos de Aruanã, divindade que habita e provém do fundo do rio, se vêem nesse momento diante da tragédia de verem seus deuses morando em águas poluídas pelos agrotóxicos dos agronegociantes. Que encontrem inspiração para se reinventarem e que nós nos associemos à sua luta por um rio onde os peixes e os deuses vivam e nos proporcionem vida.

- Carlos Walter Porto-Gonçalves é Doutor em Ciências pela UFRJ e Professor do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense e Diretor do LEMTO – Laboratório de Estudos de Movimentos Sociais e Territorialidades – UFF.

https://www.alainet.org/pt/articulo/134556
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