A Necessidade de Ouvir Outras Vozes

Água Não Se Nega a Ninguém

25/02/2004
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Introdução:

A disputa pela apropriação e controle da água vem se acentuando nos últimos anos, mais precisamente, na segunda metade dos anos 90. Se tomarmos tanto O Nosso Futuro Comum, Relatório da Comissão Brundtland, assim como os diversos documentos e tratados saídos da Rio 92, inclusive a Agenda XXI e a Carta da Terra, para ficarmos com as referências mais importantes do campo ambiental nos últimos 20 anos, chega a ser surpreendente o tratamento extremamente tímido que a água merece se comparamos com o destaque que vem merecendo na última década, a ponto de ser apontada como a razão maior das guerras futuras.

Apesar desse súbito interesse recente pela água isso não quer dizer que o tema já não fosse um problema sentido há muito tempo por parcelas significativas da população, sobretudo entre os mais pobres. Uma rápida mirada sobre o cancioneiro popular brasileiro já seria o bastante para sabermos disso – ‘Lata d’água na cabeça/ Lá vai Maria/ Lá vai Maria/ Sobe o morro e não se cansa/ Pela mão leva a criança/ Lá vai Maria”. Tudo parece indicar que enquanto a água foi um problema somente para as maiorias mais pobres da população o assunto se manteve sem o devido destaque. Ou, quando foi considerado um tema politicamente relevante, o foi numa perspectiva de instrumentalização da miséria alheia como no caso das oligarquias latifundiárias do semi-árido brasileiro com a famosa ‘indústria da seca’, assim como, também nas cidades, não foram poucos os ‘políticos de bica d’água’ que, populisticamente, se constituíram por meio da miséria dos sem-água, parte, na verdade, de um quadro geral dos sem-direitos.

Hoje a questão da água não se apresenta mais como um problema localizado manipulado seja por oligarquias latifundiárias regionais ou por políticos populistas. Esses antigos protagonistas que durante tanto tempo manejaram a escassez de água intermediando secas e bicas estão sendo substituídos no controle e gestão desse recurso por novos e outros protagonistas. Entretanto, o mesmo discurso da escassez vem sendo brandido acentuando a gravidade da questão, agora à escala global. O fato de agora se manipular um discurso com pretensões de cientificidade e que invoca o uso racional dos recursos por meio de uma gestão técnica nos dá, na verdade, indícios de quem são alguns dos novos protagonistas que estão se apresentando, no caso, os gestores com formação técnica e científica.

A Nova Invenção da Escassez

O novo discurso da escassez nos diz que embora o planeta tenha 3 de suas 4 partes de água, 97% dessa área é coberta pelos oceanos e mares e, por ser salgada, não está disponível para consumo humano; que, dos 3% restantes, cerca de 2/3 estão em estado sólido nas geleiras e calotas polares e, assim, também indisponíveis para consumo humano; deste modo, menos de 1% da água total do planeta seria potável, num discurso de escassez de tal forma elaborado que, ao final, o leitor já está com sede. Essa estatística, ao tentar dar precisão científica ao discurso da escassez, comete erros primários do próprio ponto de vista científico de onde procura retirar sua legitimidade. Afinal, a água doce que circula e que está disponível para consumo humano e ainda permite toda sorte de vida que o planeta conhece é, em grande parte, fruto da evaporação dos mares e oceanos - cerca de 505.000 Km3, ou seja, uma camada de 1,4 metros de espessura evapora anualmente dos oceanos e mares que, embora sejam salgados, não transmitem o sal na evaporação. Informe-se, ainda, que 80% dessa água evaporada dos oceanos e mares precipita-se sobre suas próprias superfícies. P.H. Gleyck (Gleyck, 1993) avalia que dos 119.000 Km3 de chuvas que caem sobre os continentes, 72.000 Km3 se evaporam dos lagos, das lagoas, dos rios, dos solos e das plantas (evapotranspiração) e, assim, 47.000 Km3 anualmente escoam das terras para o mar “das quais mais da metade ocorrem na Ásia e na América do Sul, e uma grande proporção, em um só rio, o Amazonas, que leva mais de 6.000 Km3 de água por ano” aos oceanos (GEO 3: 150).

Assim, a água disponível para a vida é, pelo menos desde o recuo da última glaciação entre 12.000 e 18.000 anos atrás, a mesma desde então até os nossos dias, com pequenas variações[1]. Se maior não é a quantidade de água potável é porque, na verdade, maior não pode ser, a não ser, como indicamos, pela regressão das calotas polares e dos glaciares fruto de mudanças climáticas planetárias produzidas por causas complexas e, muito recentemente em termos da história do planeta, pela matriz energética fossilista pós-revolução industrial.

Assim, por um desses caminhos tortuosos por meio dos quais a vida e a história transcorrem temos, hoje, uma quantidade maior de água doce sob a forma líquida em virtude do efeito estufa e o conseqüente aumento do aquecimento global do planeta com o derretimento das calotas polares e glaciares.

ÁGUA QUE CIRCULA NA ATMOSFERA POR EVAPORAÇÃO DOS CONTINENTES

(Em Km3)

Europa –                      5.320               (  7,1%)

Ásia –                        18.100                         (24,4%)

África –                     17.700                         (23,8%)

América do Norte –  10.100                         (13,6%)

América do Sul –      16.200                         (21,8%)

Oceania –                    4.570               (  6,1%)

Antártida –                  2.310               (  3,1%)

Conforme se vê a Ásia, a África e a América do Sul contribuem com exatos 70% da água que circula por evaporação por todo o planeta cuja função é fundamental para o equilíbrio climático global.

Fonte: Elaborado por LEMTO a partir dos dados da ONU - GEO 3

Todavia, apesar desse aumento da água doce disponível estamos diante de um aumento da escassez de água em certas regiões com a ampliação significativa de áreas submetidas a processos de desertificação, conforme a ONU vem acusando. Vimos observando, ainda, uma incidência cada vez maior de chuvas torrenciais e de secas pronunciadas, com calamidades extremas como inundações e incêndios florestais que não mais atingem somente as populações mais pobres e mais expostas a riscos ambientais maiores, mas também áreas nobres com suas mansões sendo queimadas, seja na Califórnia, seja no Mediterrâneo, com incêndios incontrolados cada vez mais freqüentes em função de elevações térmicas acompanhadas de baixíssimos índices de umidade relativa do ar. Tudo indica que estamos imersos num complexo processo de desordem ecológica que, mesmo diante de maior quantidade de água doce disponível sob a forma líquida, está produzindo um aumento da área desertificada e do número de localidades submetidas a stress hídrico, inclusive em muitas das grandes cidades do mundo. Enfim, é de uma desordem ecológica global que estamos falando e não simplesmente de escassez de água, como vem sendo destacado.

Entretanto, é preciso sublinhar que embora estejamos diante de uma desordem ecológica global, particularmente visível quando abordado a partir da água, seus efeitos estão longe de serem distribuídos igualmente pelos diferentes segmentos e classes sociais, pelas diferentes regiões e países do mundo, assim como estão muito desigualmente distribuídos os meios para lidar com a questão. Não bastassem esses efeitos há um outro, pouco debatido mas de efeitos igualmente graves, que diz respeito ao fato de que outras diferentes formas de lidar com a água desenvolvidas por diferentes povos e culturas em situações muito próprias, estão impossibilitadas de serem exercidas até porque essa desordem ecológica de caráter global produz desequilíbrios locais de novo tipo, cujas dinâmicas hídricas estão longe de constituir um padrão que possa servir de referência para as práticas culturais. Esse problema vem sendo acusado por populações camponesas em diferentes regiões e lugares no Brasil, que não mais conseguem fazer as previsões de tempo com a mesma precisão que faziam há não mais do que 30 anos atrás (anos 70). Assim, diferentes culturas e, com elas, diferentes modos de se relacionar com a natureza também vão sendo extintos e, com eles, todo um enorme acervo de conhecimentos diversos de como lidar com as dinâmicas naturais[2].

A atual disputa pelo controle e gestão da água, parte da crise ambiental, revela, também, a crise da racionalidade instrumental hegemônica na ciência  da sociedade moderno-colonial. No caso da água, a própria natureza líquida da matéria parece escapar àqueles que tentam aprisioná-la às especialidades com que nossa departamentalizada universidade forma, conforma e deforma seus profissionais. A água, afinal, não cabe naquela simplificação típica dos livros didáticos, e que comanda o imaginário dos cientistas, em que uma superfície líquida submetida à radiação solar transforma-se em vapor e, depois, em nuvens que se condensam e precipitam, dando origem a rios e lagos e outros superfícies líquidas que submetidas à radiação solar ... , enfim, o ciclo da água. Ciclo abstrato, até porque ignora que aquele que desenha o ciclo da água, assim como aquele que está desaprendendo o que, assim, não é o ciclo da água, são seres humanos que, eles mesmos, enquanto seres vivos que são, contém em seus corpos, em média, mais de 70% de água. Quando transpiramos ou fazemos xixi estamos imersos no ciclo da água. O ciclo da água não é externo a cada um de nós, passando por nossas veias materialmente e não só literalmente – nosso sangue é, em 83%, água. E não só: quando nos sentamos à mesa para comer deveríamos saber que o cereal, a fruta e o legume não só contém em si mesmos água, como também todo o processo de sua produção agrícola envolveu um elevado consumo de água. A agricultura é responsável pelo consumo de 70% da água de superfície no planeta! Assim, é todo o sistema agrário-agrícola que está implicado no ‘ciclo da água’!

O mesmo pode ser dito dos pratos de cerâmica ou de metal, dos talheres de aço inoxidável ou de alumínio que para serem produzidos exigem um elevadíssimo consumo de água, além de lançarem resíduos líquidos em altíssima proporção no ambiente como rejeito. Em todo o mundo a indústria é responsável pelo consumo de 20% da água superficial. Todo o sistema industrial se inscreve, assim, como parte do ‘ciclo da água’ e, deste modo, vai se mostrando toda a complexidade da relação sociedade-natureza implicada no ciclo da água, muito longe dos especialistas formados no simplificador paradigma atomístico-individualista-reducionista  que, embora seja visto como parte da solução é, também, parte do problema (Gonçalves, 1989). Deste modo, o sistema agrário agrícola e todo o sistema industrial se inscrevem como parte do ciclo da água e se desequilíbrio há com relação à água ele deve ser buscado na complexas relações sociedade-natureza que manifesta também no sistema hídrico suas próprias contradições.

É sempre bom lembrar que a água é fluxo, movimento, circulação. Portanto, por ela e com ela flui a vida e, assim, o ser vivo não se relaciona com a água: ele é água. É como se a vida fosse um outro estado da matéria água, além do líquido, do sólido e do gasoso – estado vivo. Os cerca de 8 milhões de quilômetros quadrados relativamente contínuos de floresta ombrófila, em grande parte fechada, no Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Güianas, Peru, Suriname e Venezuela com seus 350 toneladas de biomassa por hectare em média é, em 70%, água e, assim, se constitui num verdadeiro ‘oceano verde’ de cuja evapotranspiração depende o clima, a vida e os povos de extensas áreas da América Central e do Sul, do Caribe e da América do Norte e do mundo inteiro.

Deste modo, a água não pode ser tratada de modo isolado, como a racionalidade instrumental predominante em nossa comunidade científica vem tratando de modo especializado, como se fosse um problema de especialistas. A água tem que ser pensada enquanto território, isto é, enquanto inscrição da sociedade na natureza com todas as suas contradições implicadas no processo de apropriação da natureza pelos homens e mulheres por meio das relações sociais e de poder.

O ciclo da água não é externo à sociedade, ele a contém com todas as suas contradições. Assim, a crise ambiental, vista a partir da água, também revela o caráter de crise da sociedade, assim como de suas formas de conhecimento.

ALGUMAS RAZÕES DA DESORDEM ECOLÓGICA VISTA A PARTIR DAS ÁGUAS

O malthusianismo como se sabe exerce, ainda, uma forte influência no debate ambiental e, como já salientamos, faz parte de um discurso do medo, do pânico[3], em nome do que se tenta convencer os outros da validade de suas propostas, quase sempre, o controle da população. Também com relação aos recursos hídricos, a mesma cantilena é aduzida como se os problemas derivassem do crescimento da população. Entretanto, e aqui mais uma vez, a questão parece ser mais complexa do que esse reducionismo, até porque se a população mundial cresceu 3 vezes desde os anos 50, a demanda por água cresceu 6 vezes, segundo nos informa o diretor da Agência Nacional de Águas do Brasil, Sr. Jerson Kelman. No Canadá, entre 1972 e 1991, enquanto a população cresceu 3% o consumo de água cresceu 80%, segundo a ONU (GEO-3). Considerando-se o nível de vida da população canadense, os dados acima quando comparados com o crescimento da população mundial e a demanda global por água vemos claramente que é o crescimento exponencial  de populações com o nível de vida europeu e norte americano que está aumentando a pressão sobre esse e outros recursos naturais de modo insustentável. Assim, a demanda por água cresce mais que o crescimento demográfico, indicando que devemos buscar em outro campo as razões do desequilíbrio hidrológico.

A urbanização se coloca como um componente importante dessa maior demanda por água. Um habitante urbano consome em média 3 vezes mais água do que um habitante rural assim como, já o vimos, a pegada ecológica, água incluída, entre os habitantes do primeiro mundo e os do terceiro mundo é extremamente desigual. Segundo Ricardo Petrella, ‘um cidadão alemão consome em média nove vezes mais água do que um cidadão na Índia” (entrevista à Agência Carta Maior durante o 1o Fórum Alternativo da Água em Florença - 2003).

Além disso, as cada vez maiores aglomerações urbanas exigem captação de água a distâncias cada vez maiores, para não nos referirmos à energia que por todo lado implica mudar o uso e o destino (e os destinatários, não nos esqueçamos) da água, não só quando é produzida enquanto hidrelétrica, como também nas termelétricas e nas usinas nucleares, onde a água é amplamente utilizada para fins de resfriamento das turbinas. Segundo a ONU, somente nos últimos 50 anos, entre 40 e 80 milhões de habitantes, quase sempre camponeses e populações originárias, foram atingidos por inundação de suas terras para fins de construção de diques e barragens (GEO-3: 151). Dos 227 maiores rios do mundo, 60% foram barrados por algum dique nesse mesmo período e, ainda em 1998, estavam sendo construídos nada menos que 349 diques com mais de 60 metros de altura em diferentes países do mundo, em grande parte financiados pelo Banco Mundial. Roberto Melville e Claudia Cirelli nos dão uma boa caracterização de todo esse processo quando nos dizem que “os blocos capitalista e comunista em que estava dividido o mundo até pouco tempo tinham muitos pontos de controvérsia ideológica, mas ambos coincidiam em sua admiração pelo desenvolvimento técnico e competiam para mostrar avanços nesse terreno. Sob esta mentalidade, se empreenderam projetos em grande escala, com armazenamentos de água atrás de represas de concreto, com dispositivos para geração de energia, controle de inundações e derivados para a irrigação agrícola. Podemos assinalar alguns exemplos destas obras monumentais. Nos Estados Unidos, a represa Hoover no rio Colorado, ou a cadeia de represas construída na bacia do rio Tennessee. Na União Soviética, o projeto Dnipropertovsk na Ucrânia representou um vigoroso impulso para a industrialização socialista. Mais tarde, ambas potências difundiram seus modelos socio-políticos e de  desenvolvimento tecnológico em suas respectivas áreas de influência. No rio Nilo, a União Soviética fez replicar sua capacidade tecnológica na construção da represa de Assuan (no Egito). No México, com apoio financeiro internacional, a Comissão Federal de Eletricidade construiu a represa Chicoasén, uma das 10 maiores represas do mundo”.  (Roberto Melville e Claudia Cirelli, La crisis dela água. In 'http://www.memoria.com.mx, 9 de junio de 2000).

No Brasil, foi construído um complexo sistema nacional integrado de energia com base na construção de grandes hidrelétricas, que contou com apoio do Banco Mundial. Urubupungá, binacional Itaipu, Balbina, Tucuruí e Xingó são alguns dos grandes projetos com enorme impacto socioambiental por todo lado.

O crescimento da população urbana e da industrialização, com a conseqüente expansão da economia mercantil que lhe acompanha e impulsiona[4], estão impondo mudanças significativas no modo de organização do espaço em todo o mundo. As monoculturas passam a predominar nas paisagens rurais visando abastecer os centros urbanos tanto no interior dos diferentes países, como para garantir o fluxo de matéria entre os países, fluxo esse sobretudo dirigido aos países hegemônicos, sem o que os valores de uso concretos não podem ser produzidos e o usufruto da riqueza tangível, implicado num estilo de vida consumista tão ciosamente induzido pelos meios de comunicação de massas, possa ser praticado. Não sem razão, a irrigação e a captação de águas subterrâneas se generaliza, tanto para fins agrícolas como de abastecimento urbano-industrial, com o uso crescente em todo o mundo, sobretudo nos últimos 30 anos, de bombas a diesel e de poços artesianos. O problema da água, literalmente, se aprofunda.

Assim, numa outra escala geográfica, agora global, a lógica industrial volta a se encontrar com a água, relação essa que esteve presente já nos inícios da revolução industrial com a máquina a vapor (d’água). Ali, o carvão viera substituir a madeira no aquecimento da água, haja vista a escassez de madeira para esse fim. Pouco a pouco os motores foram se transformando e se tornando mais eficientes em termos energéticos sem, entretanto, deixar de consumir água. Afinal, maior eficiência energética implica maior capacidade de transformação da matéria e, com isso, maior consumo de água, maior dissipação de energia sob a forma de calor (2º princípio da termodinâmica) e, nas turbinas concretamente, maior necessidade de água para resfriamentos. Assim, a maior eficiência que se obtém numa escala micro ao se generalizar torna possível a maior transformação global da matéria e, assim, acelera a transformação global da natureza do que o efeito estufa e as mudanças climáticas globais são uma demonstração, assim como a desordem ecológica global que vimos assinalando. Assim, as soluções encontradas à escala micro para resfriar as turbinas, ou o termostato que desliga automaticamente a máquina quando atinge certo grau de aquecimento, não são transplantáveis para a escala do planeta como um todo e que pudesse amenizar o aquecimento global provocado pelo efeito estufa. Como se vê, a água flui por meio da agricultura, da indústria, do nosso estilo de vida e a pressão sobre seu uso está longe de ser explicada pelo crescimento da população, simplesmente, como quer a matriz malthusiana de pensamento.

Hoje, com o motor a diesel se busca água no subsolo e, com isso, introduz-se no nosso léxico cotidiano novas expressões como aqüíferos, já que as águas superficiais e mesmo os lençóis freáticos já não se mostram suficientes, pelo menos na hora e no lugar desejados. Cada vez é maior o saque aos aqüíferos e, deste modo, introduz-se um componente novo na injustiça ambiental generalizada no mundo e em cada país com a expansão da racionalidade econômico-mercantil engendrada pelo capitalismo. Afinal, a captação de água à superfície era, de certa forma, mais democrática na medida que a água estava ao alcance de todos, literal e materialmente. Com a captação de águas nos subterrâneos os meios de produção, as bombas a diesel, se tornam  sine qua non conditio e como nem todos dispõem desses meios a injustiça ambiental ganha novos contornos por meio do desigual acesso aos recursos hídricos.

Nos anos 90, na América do Norte 50% de todo o consumo dos habitantes foi obtido em águas subterrâneas, segundo a ONU (GEO-3). Na China também é cada vez maior a proporção de águas captadas subterraneamente.

Se, de um lado, com a irrigação podemos aumentar a área de terras para a agricultura é preciso considerar os vários lados dessa prática. Cerca de 20% dos solos irrigados no mundo estão hoje salinizados e, assim, impraticáveis para a agricultura (GEO-3)! Em Madras na Índia, a captação de águas subterrâneas levou a um rebaixamento de tal ordem do lençol freático que a águas salgadas avançaram pelo subsolo cerca de 10 quilômetros continente adentro trazendo sérios problemas de abastecimento (ONU-GEO-3).

Consideremos, ainda, que essa expansão generalizada da economia mercantil vem avançando sobre áreas como manguezais e outros humedales,  áreas riquíssimas do ponto de vista das cadeias alimentares da vida, assim como sobre áreas florestais que, como vimos com o exemplo da Amazônia, abrigam enorme quantidade de água nelas mesmas. Essas áreas, em particular as florestas tropicais, cumprem um papel importantíssimo para o equilíbrio climático global pela umidade que detém e, assim, contribuem para que as amplitudes térmicas, as diferenças entre as temperaturas máximas e as mínimas diárias e anuais, não aumentem ainda mais como vem ocorrendo, em grande parte pelo próprio desmatamento.

Relembremos que com a aplicação aos próprios meios de transportes do princípio da máquina a vapor, o deslocamento da matéria se tornou possível numa proporção que não mais dependia dos ventos e das calmarias, das marés e correntes marinhas, e tampouco dos braços escravos que moviam as embarcações com seus remos. Com isso, a injustiça ambiental se generaliza ainda mais, na medida que as matérias ao se deslocarem no sentido geográfico que as relações sociais e de poder determinam, escrevem uma geografia desigual dos proveitos e dos rejeitos.  Afinal, a água circula não só pelos rios, pelo ar, com as massas de ar, ou pelos mares e correntes marinhas, mas também sob a forma social de mercadorias várias - tecidos, automóveis, matérias primas agrícolas e minerais - enfim, sob a forma de mercadorias tangíveis e, só assim, podemos entender o desequilíbrio hidrológico impulsionado pela lógica de mercado generalizada. Afinal, para se produzir um quilo de qualquer grão, seja de milho ou de soja, se demanda, com as atuais técnicas agrícolas, 1.000 litros de água! Um quilo de frango consome 2000 litros de água!

Fixemos a imagem de um caminhão frigorífico em plena Rodovia Transamazônica transportando frango produzido em Chapecó, Santa Catarina, para termos uma idéia do custo energético e hídrico desse frango para a sociedade brasileira e o planeta como um todo! E isso para não falar do que significa para as populações locais dos lugares que importam esse frango que, por essa lógica, não servem nem para criar galinha! A racionalidade econômico mercantil não poderia ganhar um exemplo mais radical de ineficiência ambiental global. Não olvidemos que quando exportamos frango para a Europa e Oriente Médio, e o fazemos até mesmo de avião, estamos exportando energia e água. Não é demais repetir: 1 quilo de frango consome 2.000 litros de água! Quando essas regiões exportadoras estiverem implicadas em algum stress hídrico, como soem estar cada vez mais, como recentemente esteve Santa Catarina no sul do Brasil, devemos ter em conta as limitações de qualquer especialista para dar conta dessa problemática que, embora se manifeste em cada local de modo específico está, na verdade, submetida a um processo global de desenvolvimento desigual mas combinado, como estamos vendo.

Basta se multiplicar por mil as milhões de toneladas de grãos de milho, de soja, de girassol para sabermos a quantidade de água que está sendo importada pelos países para onde as relações sociais e de poder dirigem o fluxo dessas matérias. O mesmo raciocínio pode ser feito com o alumínio, o papel, a celulose. As indústrias e plantações altamente consumidoras de água, ou que nela lançam muitos rejeitos, como são os casos das indústrias de papel e celulose ou de bauxita-alumínio (no caso do alumínio, para cada 1 tonelada de bauxita deixa-se no ambiente 15 toneladas de uma lama vermelha altamente poluidora), vêm se transferindo, desde os anos 70, para os países ricos em matérias brutas – energia, minerais, solos, Sol, água – de onde exportam o proveito e deixam os rejeitos. A ideologia do desenvolvimento abençoa essa lógica, para o que muito vêm contribuindo os organismos multilaterais (FMI, Banco Mundial e a OMC) com suas políticas de ajuste, fomento, ajuda e apoio.

Um exemplo concreto pode nos ajudar a fixar a tese central: a separação do minério de cobre numa jazida implica abandonar cerca de 99,5% da matéria revolvida como rejeito!  Relembremos que, cada vez mais, trabalha-se com minerais raros e o nome traz em si mesmo a proporção do que é útil e do que é rejeito, afinal são raros! Separar os minerais raros exige água em proporções enormes e, assim, a revolução nas relações sociais e de poder implicada na nanotecnologia com sua desmaterialização e transmaterialização, implica mais água por todo lado. A água é por todo lado um meio amplamente usado e, diferentemente de qualquer commoditty, é insubstituível. Pode-se melhorar a eficiência de seu uso mas não se pode prescindir dela. Daí todo o significado de se considerar a vida como um outro estado da água e de tomar a sociedade com todas as suas contradições como parte do ciclo da água.

No Brasil, o avanço do agronegócio, sobretudo no Planalto Central com suas chapadas extensas e planas, não teria o sucesso econômico de curto prazo que vem obtendo não fossem desenvolvidas as técnicas de captação de água em grandes profundidades que tornaram possível agricultar aquelas regiões antes ocupadas pelos cerrados[5].

Quase sempre se vem destacando a inegável contribuição da Embrapa – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária - no desenvolvimento de sementes e de todo um pacote tecnológico para a expansão do agronegócio nos cerrados. Recusemos aqui o mau raciocínio do ou isso ou aquilo, e chamemos a atenção para o fato de que sem a água, nenhum cultivo é possível e esse se constituía num dos principais fatores limitadores do cultivo nas chapadas do Planalto Central. O sucesso que vem obtendo esse modelo agrário-agrícola deverá ser melhor avaliado num tempo outro, médio e longo, e não somente sob a lógica do curso prazo para saldar a dívida eterna. O aumento de áreas abandonadas pelo cultivo por desequilíbrio ecológico, como formação de ravinas e vossorocas, perda de solos por erosão, são maus indícios da insustentabilidade desse modelo.  Não olvidemos que os cerrados onde hoje reina o agronegócio herdaram as maiores reservas hídricas do Brasil, bastando observar que é de lá que partem importantes rios para diferentes bacias hidrográficas brasileiras. No dizer de Guimarães Rosa[6], o cerrado é ‘uma caixa d’água’. Um dos conflitos ambientais mais intensos vividos nessas regiões do Planalto Central está relacionado à questão da água não pela sua escassez, haja vista ser abundante, mas sim aos conflitos de classe por apropriação e expropriação de terras e de águas. Ali, a água captada nas chapadas pelos pivôs centrais[7] rebaixa o lençol freático fazendo secar rios, lagoas, brejos e ‘pantamos’, onde toda uma rica e diversificada (agri)cultura camponesa se desenvolve historicamente.

O exemplo dos cerrados (savanas) do Planalto Central brasileiro é um caso emblemático das implicações socioambientais das demandas por água que se vem colocando em todo o mundo com a expansão da economia mercantil nesse período neoliberal. A água, como se infiltra em tudo – no ar, na terra, na agricultura, na indústria, na nossa casa, em nosso corpo - revela nossas contradições socioambientais talvez melhor que qualquer outro tema. Afinal, por todo lado onde há vida há água. Atentemos, pois, que a vida deve ser entendida para além de sua dimensão estritamente biológica, posto que a água está presente na sociedade por todo lado – na agri-cultura, no artesanato e na indústria. Nosso modo de comer, mesmo nas cidades, está em grande parte condicionado pelo modo como nossos alimentos são produzidos nos campos; nosso próprio abastecimento depende de barrar rios e mudar o destino e os destinatários da água (inclusive, para fins de energia). A questão da água, vê-se, urbaniza o debate sobre o sistema agrário-agrícola e por meio da questão ambiental põe em xeque todo o estilo de vida alimentado por um modo de produção que o estimula para acumular riqueza virtual – dinheiro – e, com isso, pondo em risco a riqueza da água, da terra, do solo, da vida, na sua concretude.

ÁGUAS PARA QUEM ? ÁGUA NÃO SE NEGA A NINGUÉM

DO INTERESSE PRIVADO E DO PÚBLICO

Embora tenhamos destacado inicialmente que documentos importantes recentes, como O Nosso Futuro Comum ou mesmo a Agenda XXI e a Carta da Terra, não contemplavam com a devida ênfase a problemática da água, é importante sublinhar que o tema havia merecido, ainda em 1977, uma Conferência patrocinada pela ONU– Conferência de Mar del Plata – que levou  a que, em 1980, fosse instituído o Decênio Internacional de Água Potável e Saneamento Básico. Uma leitura atenta das preocupações ali arroladas nos mostra que havia uma ênfase na ação dos governos na gestão da água e, sobretudo, na garantia do abastecimento por meio da construção de infra-estruturas – diques e barragens - para fins de ampliação das áreas a serem irrigadas e de energia para o desenvolvimento. O documento da ONU analisado a seguir acusa a guinada ocorrida no debate recente acerca da água e, sobretudo, não deixa dúvidas sobre os interesses específicos que estariam, hoje, cultivando o discurso de escassez e da repentina descoberta da gravidade do problema da água na segunda metade dos anos 90.

Vejamos o diagnóstico que os técnicos da ONU fazem do sistema de gestão que ontem estimularam e que, hoje, criticam e se propõem superar. “A Comissão sobre o Desenvolvimento Sustentável (CDS) informou que muitos países carecem de legislação e de políticas apropriadas para a gestão e aproveitamento eficiente e eqüitativo dos recursos hídricos. Apesar disso, se está avançando no exame de legislações nacionais e promulgação de novas leis e regulamentos” (GEO-3: 156). Logo a seguir demonstram “preocupação acerca da crescente incapacidade dos serviços e organismos hidrológicos nacionais, especialmente nos países em desenvolvimento, para avaliar seus próprios recursos hídricos. Numerosos organismos têm sofrido redução em redes de observação e pessoal apesar do aumento da demanda de água. Tem sido posta em marcha uma série de medidas de intervenção, como o Sistema Mundial de Observação do Ciclo Hidrológico (WHYCOS, por sua sigla em inglês) que se implementou em várias regiões” (GEO-3: 156). Como se pode observar também no caso da água, mais uma vez, é brandido, sem a menor cerimônia, o argumento da incapacidade dos governos dos países em desenvolvimento para avaliar seus próprios recursos hídricos, numa nova versão da velha colonialidade característica dos velhos modernizadores. Em nenhum momento, observe-se, há qualquer comentário sobre as políticas de ajuste estrutural recomendadas pelos próprios organismos multilaterais e que bem seriam as responsáveis pela “redução em redes de observação e pessoal apesar do aumento da demanda de água”, para ficarmos com as próprias palavras do documento.

Pouco a pouco o deslocamento político que se dá na segunda metade dos anos 90 vai tornando mais claros os interesses em jogo. “Muitos e diferentes tipos de organizações cumprem uma função no que concerne às decisões sobre políticas relativas a água, desde os governos nacionais até os grupos comunitários locais. De todo modo, no transcurso dos últimos decênios, se tem posto cada vez mais ênfase tanto em aumentar a participação e responsabilidade de pequenos grupos locais como em reconhecer que às comunidades corresponde jogar um papel preponderante nas políticas relativas a água (...).

Assim, o Estado Nacional que, a princípio, já fora considerado como um entre os “muitos e diferentes tipos de organizações” é, logo a seguir, completamente descartado em benefício dos ‘pequenos grupos locais” e das “comunidades”. Assim, em nome dos pequenos, dos pobres e das comunidades,   novos interesses procuram se legitimar ética, moral e, sobretudo, politicamente[8]. Para isso contam com entidades muito mais flexíveis que o Estado, como as Organizações (adequadamente chamadas no ideário neoliberal) não-governamentais.

É preciso levar-se em conta o contexto específico da América Latina para que entendamos a força que esse discurso adquire entre nós, sobretudo quando se sabe que, além da pobreza generalizada, a região exibe os maiores índices de desigualdades sociais do mundo. Agregue-se a isso o fato de, nos anos 70 e 80, a região ter ficado submetida, salvo raras exceções, a regimes ditatoriais quase sempre sob tutela militar. Os apelos por justiça social e democracia vindos dos movimentos populares foram deslocados para políticas de corte neoliberal, onde a crítica ganhou destaque mais em direção à negação do Estado do que a um aprofundamento da democracia. Ao contrário, a liberalização aprofundou a crise histórica da democracia na América Latina, o que levou um dos mais importantes cientistas sociais da região, o peruano Anibal Quijano, a cunhar expressões como des-democratização e des- nacionalização para assinalar que o povo já não mais detém a prerrogativa da soberania. O mais interessante de todo esse processo, e fundamental para compreendermos a crise atual, inclusive, com relação às novas e desastrosas políticas de gestão das águas, é que os mesmos organismos internacionais que apoiaram as políticas de Estado legitimando governos ditatoriais todos desenvolvimentistas, de gravíssimas conseqüências socioambientais, são os mesmos organismos que no momento de democratização apoiam políticas que diminuem a importância do Estado e incentivam a iniciativa empresarial e das organizações (adequadamente chamadas no ideário neoliberal) não-governamentais.

Assim, esses novos gestores assestam uma dura crítica ao papel do Estado também na questão específica da gestão das águas dizendo que “os responsáveis pela planificação sempre supuseram que se satisfaria uma demanda em crescimento dominando ainda mais o ciclo da água mediante a construção de mais infra-estrutura” e que “a ênfase posta no abastecimento de água, combinado com uma débil aplicação dos regulamentos, limitou a eficácia da ordenação dos recursos hídricos especialmente nas regiões em desenvolvimento. Os responsáveis pela adoção de políticas agora mudaram as soluções (...) e entre essas medidas se contam melhorar a eficácia no aproveitamento da água, políticas de preços e o processo de privatização” (GEO-3: 151). É interessante observar a desfaçatez desse discurso que parte de técnicos dos próprios organismos que antes desencadearam essas políticas. Sem nenhuma avaliação criteriosa dos próprios organismos de que fazem parte acabam, entretanto, por explicitar os princípios e os interesses em jogo, a saber: 1- dos gestores técnicos para “melhorar a eficácia no aproveitamento da água”; 2- do princípio da água como bem econômico com as “políticas de preços” e; 3- dos empresários interessados no “processo de privatização”. Não podiam ser mais claros.

Á página 156-7 desse mesmo documento da ONU pode-se ler, como se fora a conclusão desejada, que “o setor privado começou recentemente a expandir suas funções na ordenação dos recursos hídricos. O decênio dos 90 foi testemunha de um rápido aumento no índice e grau de privatização dos sistemas de condução de água anteriormente administrados pelo Estado. As empresas privadas administradoras de água se ocupam cada vez mais de prestar serviços às cidades em expansão ao fazer-se encarregadas de organismos públicos para construir, possuir e operar parte ou inclusive todo o sistema municipal. Do mesmo modo, tem aumentado a preocupação com a garantia do acesso eqüitativo à água ao setor pobre da população, financiar projetos e compartilhar riscos da melhor maneira possível” (GEO-3: 156-7).

O mundo da água privatizada está sendo dominado amplamente por grandes corporações (ver mais abaixo) que vêm atuando no sentido de que um novo modelo de regulação seja conformado à escala global. Salientemos que, até aqui, não há um modelo pronto de regulação até porque são muitas os problemas que vêm se apresentando.

Várias têm sido as propostas de privatização das águas, todas baseadas numa ampla desregulamentação pela abertura dos mercados e a supressão dos monopólios públicos, sob a pressão dos técnicos do Banco Mundial e do FMI, políticas essas que vão desde: (1) privatização em sentido estrito, com a transferência pura e simples para o setor privado com a venda total ou parcial dos ativos; (2) transformação de um organismo público em empresa pública autônoma, como bem é o caso da ANA – Agência Nacional da Água – no Brasil; ao (3) PPP – Parceria Público Privado - modelo preferido pelo Banco Mundial.

As dificuldades para se estabelecer um sistema de regulação pode, ainda, ser visto na sucessão de entidades que, em pouco tempo, vêm se alternando no sentido de se chegar a um formato que possa garantir “a superação dos obstáculos aos investimentos em água”[9]. Em 1994, por iniciativa de alguns governos (França, Holanda e Canadá entre outros) e de grandes empresas, com destaque à época para a Suez-Lyonnaise des Eaux uma das maiores do mundo do setor do setor, foi criado o Conselho Mundial da Água. Segundo nos informa Ricardo Petrella, em 1996 esse Conselho se atribuiu o objetivo de definir uma “visão global sobre a água’ de longo prazo, que serviria de base a análises e propostas visando uma ‘política mundial de água’. Nos últimos anos tem sido o Banco Mundial o principal promotor do Conselho Mundial da Água que ensejou a criação da Parceria Mundial pela Água (GWP - Global Water Partnership) que tem como tarefa aproximar as autoridades públicas dos investidores privados.  O GWP é presidido pelo Vice-presidente do Banco Mundial e como os trabalhos desse organismo não têm se mostrado plenamente satisfatórios criou-se, em agosto de 1998, outro órgão, a Comissão Mundial para a Água no Século XXI.

            Embora não haja ainda uma modelo claro de regulação, um princípio vem sendo sistematicamente perseguido: o da liberalização, que acredita que a alocação ideal de recursos (bens e serviços materiais e imateriais) requer a total liberdade de acesso aos mercados local, nacional e, sobretudo, mundial[10].

Segundo Ricardo Petrella, “por ocasião da IV Conferência Geral da OMC em Doha, em novembro de 2001, sob a eficaz pressão do European Service Forum (Fórum Europeu de Serviços) – que reuniu as principais empresas européias, tais como Suez, Vivendi, bancos, seguradoras e telecomunicações –, os representantes da União Européia conseguiram fazer aprovar, algumas horas antes do fechamento oficial das negociações, um dispositivo autorizando a inclusão de “indústrias do meio ambiente” (que englobam os serviços de água) entre os setores que podem ser objeto de liberalização dentro do Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços - AGCS”.

No capítulo sob título “Comércio e Meio Ambiente” aprovado nessa mesma reunião, pode-se ver no artigo 31, inciso 3, que se exige “a redução ou, conforme o caso, a eliminação dos obstáculos tarifários e não tarifários aos bens e serviços ambientais”, entre os quais, a água. Segundo essa lógica, qualquer tentativa de controle de exportação da água para fins comerciais passa a ser ilegal. O artigo 32 tem por objetivo impedir os países de apelarem para obstáculos não tarifários, como as leis de proteção ambiental[11]. Na Alca esse mesmo princípio vem sendo proposto pelos EUA. É com base nele que várias empresas vêm processando governos sempre que esses, alegando o interesse público, ferem os interesses comerciais das grandes corporações. A Sun Belt, empresa estadunidense da Califórnia, processou o governo da Colúmbia Britânica, província do Canadá, que suspendera a exportação de água para os EUA pelas conseqüências que estava trazendo para abastecimento de sua própria  população. A alegação da empresa é que o governo da Colúmbia Britânica violara os direitos dos investidores do Nafta e, por isso, reivindicava a indenização de US 220 milhões como reparo de seus prejuízos, no que foi bem sucedida judicialmente. A empresa estadunidense Bechtel, expulsa da Bolívia no ano 2000 pelos péssimos serviços que prestara por sua subsidiária Águas del Tanuri, em Cochabamba, tentou processar o governo boliviano através de uma empresa especificamente criada para isso na Holanda. Na verdade, a Bechtel buscava se aproveitar de um Tratado bilateral entre os governos da Bolívia e da Holanda que estabelece fórum internacional para resolução de conflitos entre esses países. A tentativa não obteve êxito, pois o governo da Holanda cassou o registro de conveniência da empresa estadunidense. O exemplo, por si mesmo, revela os interesses contraditórios entre Estados Nacionais e o que as empresas visam, no caso, sobretudo, a rentabilidade dos seus negócios.

Observe-se que é um novo território, global, que está sendo instituído  ensejando as condições para que se afirmem protagonistas que operam à escala global – os gestores globais, as grandes corporações transnacionais e grandes organizações (adequadamente chamadas no ideário neoliberal) não-governamentais. Cada vez mais, muitos dos técnicos dos próprios organismos nacionais são contratados em parceria com o Banco Mundial e outros organismos internacionais e, assim, órgãos que seriam de planejamento se tornam simplesmente de gestão, já que perdem o caráter estratégico inerente ao planejamento, haja vista ser esse definido à escala global, enfim, aquela escala em que operam as grandes corporações e, ainda, as grandes organizações (neoliberalmente bem denominadas) não-governamentais. O fato de cada vez mais se falar de gestão não nos deve fazer esquecer a necessária relação entre planejamento e gestão, haja vista o primeiro, o planejamento, ser mais estratégico e político, e o segundo, a gestão, ser mais técnico-operacional. Cada vez mais o planejamento tem se deslocado para os organismos multilaterais.

Deve-se ter em conta que, além das resistências de todo tipo a essa política de novas formas de controle e gestão por meio da privatização e liberalização, há também interesses empresariais em disputa que ainda não conseguiram conformar claramente seus interesses divergentes.

Há, também, questões relativas à própria doutrina jurídica, até porque não há grande tradição de apropriação privada de recursos que são fluidos, líquidos, cujos limites não são tão claros e distintos, como é a terra, cuja tradição jurídica está ancorada no Direito Romano. As cercas não são aplicáveis ao ar e à água nem às fronteiras entre os Estados. Afinal, a água exige uma perspectiva que vá além da propriedade privada individual e nos chama a atenção, talvez melhor do que qualquer outro tema, para o caráter público, exigindo um sentido comum que vá além do individualismo possessivo tão cultivado e estimulado pela lógica de mercado. Eis parte do grande desafio colocado pela problemática ambiental, haja vista apontar para questões que transcendem a propriedade privada, sobretudo quando nos coloca diante da queda de outros muros que se acreditavam ter sobrevivido sem maiores conseqüências à queda do muro de Berlim, em 1989. Afinal, questões como as da poluição do ar e da água que, como vemos, não se restringem à escala local ou regional, exigem referências de direito distintas do Direito Romano, direito sobretudo (dos proprietários e) da propriedade privada, e que foi pensado para a terra e não para a água e o ar (para não dizer da vida, conforme se pode ver no debate sobre a propriedade intelectual sobre  material genético).

A Liberalização e a Privatização: Entre a Teoria e a Prática

1- A Transnacionalização e Maior Concentração de Capital no Campo dos Recursos Hídricos

A liberalização e a mercantilização vem ensejando uma nova dinâmica à "conquista da água". Trata-se, segundo Ricardo Petrella, “da integração entre todos os setores no contexto da luta pela sobrevivência e pela hegemonia no seio do oligopólio mundial. Cada um desses setores - água potável, água engarrafada, bebidas gaseificadas, tratamento de esgotos – têm, no momento, seus protagonistas, suas especialidades, seus mercados, seus conflitos”. A Nestlé e a Danone, por exemplo, são as duas maiores empresas do mundo em água mineral engarrafada e junto com a Coca-Cola e a Pepsi-Cola tornaram-se concorrentes das empresas de tratamento de água graças ao desenvolvimento e comercialização nas empresas e residências de uma água dita de síntese, purificada, apresentada como mais sadia do que a das torneiras.

As empresas francesas Vivendi Universal, com faturamento de cerca de 12,2 bilhões de dólares em 2001, e a Suez-Lyonaise des Euax, com faturamento de 9 bilhões de dólares no mesmo ano, vêm disputando ou se associando, conforme o caso, para ter o controle da água potável das torneiras com a gigante alemã RWE (e sua filial inglesa Thames Water), com a Biwwater, a Saur-Bouygues, a estadunidense Bechtel, Wessex Water (Enrom).

Segundo Franck Poupeau analista do Le Monde, “no mercado da água, os dois gigantes franceses e suas inúmeras filiais vêm assinando contratos de privatização muito lucrativos há quinze anos. Os sucessos da Suez-Lyonnaise des Eaux (China, Malásia, Itália, Tailândia, República Tcheca, Eslováquia, Austrália, Estados Unidos) não devem fazer esquecer os da Générale des Eaux (hoje, Vivendi), com a qual a Suez-Lyonnaise se associa às vezes, como em Buenos Aires, em 1993. Nos últimos dez anos, a Vivendi instalou-se na Alemanha (Leipzig, Berlim), na República Tcheca (Pilsen), na Coréia (complexo de Daesan), nas Filipinas (Manila), no Cazaquistão (Alma Ata), mas também nos Estados Unidos, com suas filiais Air and Water Technologies e US Filter”.

A lógica mercantil capitalista, por seu turno, vem mudando o destino da água, assim como os seus destinatários. É o que se pode ver durante a crise provocada pela seca de 1995 no norte do México, quando o governo cortou o fornecimento de água para camponeses e fazendeiros locais, para garantir o abastecimento para as indústrias controladas em sua maioria por capitais estrangeiros (Barlow, M. in Ouro Azul – consultar www.canadians.org).

Lester Brown também vem assinalando o desvio de água obedecendo à lógica da lucratividade. É ele quem nos oferece cálculos que nos dizem que, na Índia, uma tonelada de água pode gerar um lucro de US $ 200 na agricultura e de US $ 10.000 na indústria. Não deve nos causar surpresa, portanto, quando, aceita essa lógica de mercantilizar a água, se beneficie a água para o destino (e o destinatário) industrial, aliás como vem ocorrendo nos EUA, conforme o próprio Lester Brown, que nos informa que fazendeiros estão preferindo vender a água para industriais pois assim obtém maior lucro! Como observou um morador de Novo México após a água de sua comunidade ser desviada para o uso da indústria de tecnologia de ponta: “A água flui morro acima para o dinheiro”. (Barlow, Maude “Ouro Azul”. Consultar www.canadians.org).

Pode-se dizer, em benefício da dúvida quanto às boas intenções dos que estão propondo essas políticas, que esses são efeitos não desejados da sua aplicação. Todavia, são efeitos reais cujas conseqüências estão sendo, sobretudo, de agravar a injustiça ambiental. Afinal, a admissibilidade de que usemos a quantificação para efetuarmos cálculos mercantis, tão bem ancorada nos fundamentos da ciência ocidental moderna (e colonial), ao se abstrair da materialidade concreta do mundo deixa escapar as relações mundanas que não se deixam aprisionar por essa lógica matemático-mercantil e, assim, a lei da oferta e da procura que funciona tão bem no papel não se mostra desse modo no mundo das coisas tangíveis e o capitalismo realmente existente não se mostra, sobretudo quando se o considera sob o prisma ambiental, um bom alocador de recursos. Até porque a alocação de recursos naturais não depende da dinâmica societária e quando essa dinâmica se inscreve nessa alocação de recursos deveria tomar em conta, sempre, que está imersa em sistemas complexos que não se deixam aprisionar por lógicas lineares, mesmo que multivariadas.

Ricardo Petrella captou a importância do que significa, na verdade, esse processo de apropriação privada desse recurso que flui por todos os seres vivos quando nos diz: “A privatização das águas é, na verdade, a aceitação da privatização de um poder político. (...) Dessa forma a iniciativa privada se transforma no detentor do poder político real, ou seja do poder de decidir sobre a alocação e distribuição da água”. (Ricardo Petrella em entrevista concedida à Agência Carta Maior, durante o 1° Fórum Alternativo Mundial da Água em Florença).

2- A QUALIDADE DOS SERVIÇOS – aumento da injustiça ambiental e dos conflitos

O discurso da qualidade foi um dos principais argumentos invocados para toda a política de liberalização e privatização dos serviços de abastecimento e tratamento de água, cuja melhoria e ampliação estaria o Estado impossibilitado de fazer por falta de recursos para investimentos.

Entretanto, longe da tão apregoada superioridade da gestão privada, a Suez, a Vivendi, a Thames Water (RWE) e a Wessex Water (Enrom) foram classificadas pela Agência de Proteção Ambiental do Reino Unido entre as cinco maiores empresas poluidoras em 3 anos consecutivos (1999, 2000 e 2001). Em Buenos Aires, onde a Suez é gestora das concessões, 95 % das águas residuais da cidade é vertida no Rio da Prata, provocando danos ambientais cujos reparos são pagos com recursos públicos.

Em várias localidades os conflitos vêm se acentuando em virtude da má qualidade dos serviços e do aumento do preços das tarifas. Segundo Franck Poupeau, do Le Monde,  “as multinacionais da água (...) em alguns casos foram obrigadas a retirar-se de países da América do Sul e a pedir indenização junto a instâncias internacionais. Em 1997, em Tucumán (Argentina), a população iniciou um movimento de “desobediência civil” contra uma filial da Vivendi, recusando-se a pagar as contas de água por conta da deterioração da qualidade da água e do aumento em mais de 100% das tarifas. A Companhia Geral das Águas tinha obtido o direito de privatizar as concessões dos serviços de água e esgoto da província em 1993. Mas o súbito aumento do preço dos serviços de água e esgoto, de 104%, em média, provocou o protesto dos consumidores da província: Os primeiros a se organizarem foram os pequenos vilarejos do interior da província, na região de produção de cana-de-açúcar, onde já existe uma longa tradição de luta. No início, sete cidadezinhas formaram uma Comissão de Coordenação e criaram a Associação de Defesa dos Consumidores de Tucumán.”

O governo da província começou por apresentar um pedido de sanções contra a empresa após a descoberta de elementos contaminados na água encanada. Diante do boicote de pagamento, primeiramente a Générale des Eaux ameaçou os consumidores com a suspensão dos serviços e, em seguida, tentou renegociar o contrato para, finalmente, retirar-se, recusando-se a cumprir as obrigações contratuais. Então, passou a atacar os consumidores de Tucumán junto ao ICSID (International Center for Settlement of Investment Disputes), organismo do Banco Mundial que se pronunciou favoravelmente à província. A partir daí, uma mudança de governo retirou dos consumidores a sustentação legal do boicote aos pagamentos” (Poupeau, F. Le Monde).

Também em La Paz, o bairro mais pobre da cidade, El Alto,  que teve papel destacado no movimento que, em outubro de 2003, derrubou o governo de Gonzalo de Lozada, nos dá uma clara demonstração das conseqüências de se estabelecer uma regra universal de regulação que desconsidera as práticas de gestão comunais, muitas das quais, ali, originárias da cultura Aymará e Quéchua. Com a privatização retirou-se daquelas populações o controle dos seus recursos com o conseqüente aumento dos preços impedindo-se, assim, o acesso dos mais pobres à água. Desde que a distribuição da água passou a ser administrada pela empresa francesa Lyonaise des Eaux, através do Consórcio Águas del Illimani, seus preços aumentaram 600% (de 2 bolivianos para 12) e o preço pela instalação que era de 730 bolivianos antes da privatização passou a 1.100 bolivianos e a água abundante não está acessível para a população.

Em 2000, em Cochabamba (Bolívia) ocorreu um conflito intenso que ficou conhecido como a Guerra da Água e que ensejou, assim, como em Tucumán, na Argentina, novas formas de gestão democrática com ampla participação protagônica da população, ali conhecido como Cabildo Abierto (Ver Revista no. 2 do Observatório Social da América Latina). Cabe, nesse caso, destacar um componente original do affair Cochabamba, onde o Consórcio liderado pela empresa estadunidense Bechtel obteve a concessão mediante um expediente jurídico inusitado: uma cláusula de confidencialidade! É surpreendente que uma concessão pública seja feita com um expediente que proíba sua divulgação! Até aqui, conhecia-se o argumento da razão de Estado para se garantir o sigilo de algumas informações e decisões que se considerava  estratégicas para o Estado. Entretanto, uma cláusula de confidencialidade para não revelar os termos de uma concessão de exploração de serviços de água, mostra o quanto não se pode transportar para o espaço público as regras da empresa privada, onde o direito do proprietário está protegido e acima do interesse público[12].

Caberia destacar, ainda, no Brasil, o caso do Riachão afluente do rio Pacuí na bacia do São Francisco no município de Montes Claros, norte de Minas Gerais, onde a falta de água vem se agravando com a implantação de pivôs centrais por parte de grandes proprietários irrigantes. Na região, o conflito vem se acentuando pela expansão de várias monoculturas empresariais, seja de eucaliptos, pinnus alba e pinnus elliotis para fazer carvão vegetal ou matéria prima para a indústria de celulose. Nessa mesma região, o movimento camponês lançou no município de Manga, em 1996, um tipo de manifestação que desde então se repete em todo o país- a  Romaria das Águas. O movimento ganhou uma radicalidade tal que lançou mão de uma manifestação até ali inusitada – a greve de sede. Lembremos que na greve de fome o manifestante se mantém vivo muitos dias se alimentando de água, o que não acontece na greve de sede. A importância da água não podia se manifestar de modo mais contundente!

As resistências à mercantilização e à privatização da água vêm se tornando cada vez mais freqüentes em todo mundo. Em vários casos o processo foi interrompido: Cochabamba e La Paz (Bolívia), Montreal, Vancouver e Moncton (Canadá), em Nova Orleans, na Costa Rica, na África do Sul, em várias regiões da Índia, da Bélgica, em várias municipalidades da França que voltaram a ter serviços públicos de água administradas diretamente pelo Estado ou por meio de autogestão, como em Cochabamba, Bolívia. Vários conflitos foram registrados ainda nas Filipinas, no Senegal, em Mali, na Alemanha, no Brasil, na Argentina, em Burkina-Fasso, em Gana e na Itália[13].

Cresce por todo o lado por meio das lutas pela reapropriação pública da água a compreensão de quais são os verdadeiros interesses que vêm se movendo em torno do atual debate por novas formas de gestão e controle da água. “As empresas multinacionais de água estão conseguindo cada vez mais o controle das águas do mundo. Os organismos financeiros internacionais seguem fomentando a expansão internacional dessas empresas e os acordos internacionais de livre comércio lhes permitirão exercer ainda maior influência no setor da água. Não obstante, essas empresas sempre têm posto seus interesses de lucro privado acima das necessidades da população e os organismos financeiros internacionais e as instituições que regem o comércio até agora não tem garantido que as privatizações da água não prejudiquem aos povos e ao ambiente” (Amigos da Terra - “Sed de Ganancias”. Consultar o sítio www.foei.org').

“Vender água no mercado aberto não atende as necessidades de pessoas sedentas e pobres”, nos diz a canadense Maude Barlow. “Pelo contrário, a água privatizada é entregue àqueles que podem pagar por ela, tais como cidades e indivíduos ricos e indústrias que usam água intensivamente, como as de tecnologia de ponta e agricultura. (Barlow, Maude “Ouro Azul”. Consultar www.canadians.org).

As denúncias em relação à privatização da água referem-se, quase sempre, às conseqüências socioambientais decorrentes da integração das economias locais a um mercado que se quer nacional e mundialmente unificado o que, cada vez mais, vem implicando não somente uma orientação da produção para o comércio exterior, mas também a intensificação da exploração dos recursos naturais. Maude Barlow mostrou como “os países reduzem as taxas locais e as normas de proteção ambiental para permanecer competitivos. (...) Os governos ficam, então, com uma capacidade fiscal reduzida para recuperar as águas poluídas e construir infra-estruturas para proteger a água; ao mesmo tempo, torna-se mais difícil regulamentarem a prevenção de poluições posteriores.”

A GUERRA DA ÁGUA

Estamos, na verdade, imersos numa guerra mundial envolvendo a água, mas não uma guerra no estilo clássico, com exércitos se enfrentando ou com bombardeios. Não, a guerra pelo controle e gestão da água vem sendo disputada na Organização Mundial do Comércio, discutidas no Fórum Econômico de Davos, nas reuniões do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional onde se decide um novo ‘código das águas’ que quer torná-la uma mercadoria e, para isso, é preciso primeiro privar os homens e mulheres comuns do acesso a ela. Sem privatização não há mercantilização no sentido capitalista. Mas as decisões feitas nesses fóruns da globalização do dinheiro não podem prescindir da materialidade concreta da água para mover a agricultura, a indústria, as cidades, a vida. Assim, há que concretamente se apropriar da água nos lugares onde ela está e onde soem estar as populações com outros usos da água para a vida. Assim, como as guerras não se ganham com bombardeios, embora gere pânico e horror, há que se fazer presente no território de onde a água não pode ser abstraída porque ela atravessa toda a sociedade e seus lugares. Daí, em todo lugar onde se tenta se apropriar da água há resistência.

A guerra global pelo controle da água tem especificidades ligadas à sua própria natureza. A água não é uma commoditty como se vem tratando tudo a partir momento em que se torna hegemônica essa mentalidade mercantil, liberal e privatista. Observemos o que diz Jerson Kelman, diretor da ANA: “A água bruta não é uma commodity, como o petróleo, uma vez que não existe um mercado disposto a consumir grandes quantidades de água a um preço que compense os custos de transporte. Nem tampouco se prevê o surgimento desse mercado porque a maior parte do consumo de água doce do mundo se consome na irrigação.

Para que se tenha uma idéia de quanta água é necessária para produzir alimentos, posso dar o seguinte exemplo: para produzir um quilo de milho são necessários mil litros de água. Um quilo de frango, cerca de dois mil litros. Vamos imaginar uma pessoa com pouca criatividade culinária que coma diariamente 200 g de frango e 800 g de milho. É só fazer as contas para concluir que essa pessoa come cerca de 1200 litros de água por dia, uma quantidade de água 500 vezes maior do que a que bebe. Naturalmente, esse cidadão não poderia pagar pela água que come o mesmo que paga pela água que bebe.

(...) Uma coisa é o comércio internacional de água mineral, que pode atingir altíssimos preços unitários, mas que ocorre em escala relativamente modesta, apenas para atender às necessidades de beber. Outra coisa seria o comércio a granel de água bruta, como insumo agrícola. Devido à grande quantidade consumida per capita, não seria sustentável que os preços unitários fossem muito elevados. E como custa muito caro transportar água, o que faz mais sentido é exportar alimentos, e não água. Esta é, aliás, a grande vocação do Brasil” (EA, ano 12, no. 01, janeiros/abril de 2003: pág. 12). Assim como Lester Brown já havia assinalado, as diferentes lucratividades possíveis com a mesma quantidade de água, maior na indústria que na agricultura, por exemplo, vemos aqui a que pode levar esse mesmo raciocínio – água para exportação se sobrepondo à água para consumo humano direto e, tudo indica, serão os conflitos sociais que advirão entre a lógica privatista e liberal e a de uso comum que decidirão as novas regulações da água.

Assim, vê-se como está sendo decidida a guerra global da água. Os governos, como salientou acima Maude Barlow, diminuem as tarifas para serem competitivos e o preço da água necessária para produzir commodities é subestimado, até porque seria impossível exportar, caso o preço fosse unificado. O que se revela, com isso, é todo o limite de regras universais com que o discurso liberal-econômico procura se revestir e, ainda, como a natureza continua transferindo uma riqueza, no caso a água, sem a qual a produção não seria possível, haja vista o preço que seria necessário pagar, caso tivesse que incorporar a água plenamente utilizada ao valor final da commodity.

A análise da água requer, o tempo todo, que se a considere na sua geograficidade, isto é, na inscrição concreta da sociedade na sua geografia, com as suas diferentes escalas local, regional, nacional e mundial imbricadas num processo complexo de articulação ecológico e político. Só assim se  explica a transferência dos países ricos em capital para os países ricos em água de várias atividades altamente consumidoras, como assinalamos para as indústrias de papel e celulose e de alumínio.

A desordem ecológica global está, na verdade, associada ao processo que des-locou completamente a relação entre lugar de extração, de transformação e produção da matéria e o lugar de consumo com a revolução (nas relações sociais e de poder por meio da tecnologia) industrial. Com a maior eficácia energética foi possível explorar minerais em proporções ínfimas quanto à sua concentração nas diferentes jazidas existentes na geografia do planeta, assim como na sua natureza nanométrica. Os rejeitos ou foram deixados nos locais onde as pessoas valem menos – nunca é demais lembrar o racismo subjacente ao sistema-mundo moderno-colonial – e os produtos foram e são levados limpos para os lugares e pessoas que podiam e podem gozar os proveitos, diz-se a qualidade de vida, desde que não se incluam os custos dos seus rejeitos nem se lembre aos bem-nascidos dessa mosca pousando em sua sopa, parodiando Raul Seixas, que é a injustiça ambiental em que se ancora seu  modo de vida.

Dada a importância do tema da água é fundamental que ouçamos a observação de Boaventura de Sousa Santos que, rompendo com a colonialidade do saber e do poder, nos convida a que não desperdicemos as múltiplas experiências que a humanidade nos legou e que o primeiro-mundismo não nos deixa enxergar. Diferentes instituições foram criadas por diferentes povos ao longo da história (e suas geografias) estabelecendo regras as mais variadas de uso da água. Os povos árabes e arabizados detém a esse respeito uma grande tradição de convivência com a água em áreas desérticas e semi-áridas. Os espanhóis são herdeiros de muitas dessas regras para lidar com la sequía e suas lições podem ser aprendidas em Yerma de Garcia Lorca. Os sertanejos do nordeste brasileiro desenvolveram toda uma sabedoria que vai da previsão do tempo, que mereceu, inclusive, a atenção da NASA pelo seu elevado índice de precisão, ao aproveitamento máximo do mínimo de água com que têm que se haver diante da irregularidade das precipitações, com suas culturas de vazante, conforme destaca o geógrafo Aziz Ab’Saber. Os chineses, hindus, os maias e os aztecas, que chegaram a ser chamadas pelos historiadores de civilizações do regadio, têm tradições que merecem ser estudadas, agora que a água parece convocar a todos a buscar novas formas de gestão e controle. Portanto, caso não se queira desperdiçar, mais uma vez, por preconceito, a diversidade de experiências que a humanidade desenvolveu, como é característico do etnocentrismo ocidental, não nos faltará inspiração para buscarmos soluções, sublinhe-se, no plural.

Tudo indica que o planeta como um todo começa a dizer, tanto ecológica como politicamente, que o local já não é isolável, tal como o foi durante o período áureo do colonialismo e do imperialismo clássicos. O desafio ambiental ambiental nos conclama à solidariedade e a pensar para além do individualismo fóbico. E como não há instituições que não sejam instituídas, é bom prestarmos atenção aos sujeitos instituintes que estão pondo esse-mundo-que-aí-está em xeque e que apontam, com sua lutas, que um outro mundo não só é possível, como necessário.

* Carlos Walter Porto-Gonçalves. Geógrafo, Doutor em Ciências pela UFRJ e Coordenador do Programa de Pós-graduação em Geografia da UFF. Ex-Presidente da Associação dos Geógrafos Brasileiros (1998-2000) é autor de diversos artigos e livros publicados no Brasil e no exterior.



[1] - Aliás, a água doce disponível sob a forma líquida depende, fundamentalmente: (1) da radiação solar exercendo o trabalho de evaporação-condensação-precipitação e da sua distribuição segundo as latitudes; (2) da conformação geológica e pedogenética que condiciona o armazenamento nos aqüíferos e lençóis freáticos e; (3) do relevo, que condiciona o escoamento, configurando as bacias hidrográficas que, por sua vez, ensejam  dinâmicas hídricas locais e regionais. Sublinhe-se que essas dinâmicas hídricas locais e regionais estão imbricadas na dinâmica global do planeta que, por sua vez, está condicionada não só pela radiação solar mas, também, por mudanças climáticas globais que, cada vez mais, contam entre suas causas não mais aquelas exclusivamente naturais – vide o efeito estufa e a atual mudança climática global.

[2] - Aqui também perda de diversidade ecológica e diversidade cultural parecem caminhar juntas.

[3] - Explosão demográfica, bomba populacional, baby boom, eis alguma dessas expressões de um verdadeiro terrorismo demográfico.

[4] - O espaço urbano é o locus por excelência da economia de mercado. Afinal, o ambiente urbano torna praticamente impossível a chamada economia natural, isto é, aquela que não requer a mediação mercantil. Assim, a economia gerada pelo expansão da população urbanizada introduz a mediação do ilimitado nas relações sociedade-natureza por meio do dinheiro. A tensão entre o simbólico, o dinheiro, e a materialidade do mundo se instaura enquanto questão ambiental.

[5] - Jogou ainda um papel importante nesse avanço do agronegócio o fato dessas regiões de chapada estarem, até muito recentemente, nos anos 70, em grande parte com um uso extensivo para fins de pastagens para gado e para fins de extrativismo (de pequi, de baru, de fava d’anta, entre tantas espécies) num sistema de uso da terra que combinava uso familiar da terra, no fundo dos vales, com uso comum das chapadas conhecidas em muitos lugares como gerais[5]. O fato de serem terras de uso comum, gerais, muito facilitou a grilagem, quando não a concessão pelo Estado para os grandes empresários em detrimento dos camponeses, quilombolas e indígenas que, hoje, vêm se mobilizando para recuperar seus direitos a essas terras e aperfeiçoar seu modo de vida em condições menos limitadas do que as que vêm sendo submetidos. Afinal, na tradição do direito romano, terra que não tem um dono, não tem dono e, com isso, ignora-se as diferentes modalidades de apropriação coletiva, comunitária e de uso comum dos recursos naturais muito mais generalizadas no Brasil do que se tem admitido, como bem destacam Alfredo Wagner, Nazareno de Campos e Porto-Gonçalves entre outros.

[6] - Uma leitura possível do título da obra maior de Guimarães Rosa – “Grande Sertões, Veredas” – dá conta dessa unidade na diversidade de paisagens que compõem os Cerrados: o Grande Sertão, os Gerais, sendo as chapadas, e Veredas onde os camponeses têm suas casas, as baixadas nos fundos de vales.

[7] - Inclusive com baixíssima eficiência no seu uso, haja vista o enorme desperdício que, avalia-se, em 70% a perda por evaporação.

[8] - Não olvidemos que também eram os pobres que eram invocados pelos políticos então chamados de populistas e oligárquicos, com a ‘indústria da seca’ e da ‘bica d’água’.

[9] - Aproprio-me, aqui, literalmente, do título de um painel do Congresso Anual de Desenvolvimento Econômico patrocinado pelo FMI e pelo Banco Mundial, onde estiveram reunidos representantes de governos de 84 países com corporações e instituições financeiras internacionais (Ver Maude Barlow em “O Ouro Azul” em www.canadians.org).

[10] - É o que vêm propondo não só os novos teóricos da justiça social e da democracia, como vários seguidores de John Rawls, mas também alguns intelectuais e cientistas progressistas, como o Prêmio Nobel de economia Amartya Sem, conforme nos diz Ricardo Petrella.

[11] - Definiu-se, ainda, que cada Estado membro da OMC deve submeter as solicitações de liberalização que espera dos outros membros. As formuladas pela União Européia, até aqui, principalmente para o Canadá, Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia, Egito e a África do Sul, insistem sobre a liberalização dos serviços de água  (Ler ATTAC nº 338, do dia 7 de junho 2002 jornal@attac.org).

[12] - Sublinhemos, de passagem, que grande parte do problema ambiental se deve exatamente ao segredo comercial que protege o proprietário de não revelar as substâncias e os processos com que opera expondo,  antes de tudo, o trabalhador a conviver com substâncias que, depois, são lançadas como resíduos sólidos, líquidos e gasosos no ambiente. A falta de democracia no interior das empresas, nas fábricas e fazendas é, de fato, o maior dos empecilhos para que o ambiente seja cuidado desde a produção e não a partir dos seus efeitos.  Afinal, o efeito estufa, como o próprio nome indica, é efeito e deveríamos estar cuidando de evitar a sua produção e não dos seus efeitos. Mas, para isso seria necessário que democratizássemos a empresa, instituição de poder que, diga-se de passagem, menos sensível tem sido à democracia.

[13] - Depois do segundo Fórum Social Mundial de Porto Alegre foi criada a Coalizão Mundial contra a Privatização e a Mercantilização da Água no dia 23 de maio de 2002 em Créteil, pelos representantes de cerca de trinta organizações vindos da Malásia, Índia, Gana, Marrocos, da França, da Itália, da Suíça, da Espanha, do Canadá, dos Estados Unidos, do Brasil, da Bolívia, da Argentina, do Equador e do Chile.

https://www.alainet.org/pt/articulo/109465
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