A farsa da paz no Haiti
22/10/2004
- Opinión
Esta não é a primeira vez, como se sabe, que o Brasil
envia tropas para a Ilha Hispaniola, que o Haiti divide
com a República Dominicana. Já fez isso em 1965, quando o
general ditador Humberto Castelo Branco, também atendendo
a um chamado do presidente dos Estados Unidos (no caso,
Lyndon Johnson), enviou mais de mil soldados como
integrantes de uma Força Internacional de Paz (FIP)
liderada pelos generais brasileiros Hugo Panasco Alvim e
Álvaro da Silva Braga.
Nos anos 60, como agora, os Estados Unidos orquestraram um
golpe para derrubar um presidente livremente eleito. No
caso dominicano, Juan Bosch, vencedor, em dezembro de
1962, das primeiras eleições livres no país após três
décadas da ditadura sangrenta de Rafael Trujillo,
permaneceu apenas sete meses no poder, durante os quais
promulgou uma série de leis de distribuição da terra,
reformas sociais e econômicas. Foi deposto por um golpe
articulado pela CIA, que conduziu uma junta militar ao
poder.
Essa sucessão de fatos levou à eclosão da guerra civil, em
24 de abril de 1965, quando militares partidários de Bosch
iniciaram um levante para restituir-lhe o cargo. Sob o
argumento de que se tratava de uma conspiração urdida por
Fidel Castro, Johnson ordenou o desembarque de 30 mil
fuzileiros navais no país. Para dar legitimidade à
invasão, forçou a criação da FIP na OEA, com o
entusiástico apoio da ditadura brasileira.
No caso atual, o ex-padre católico Jean Bertrand Aristide,
adepto da Teologia da Libertação, venceu as primeiras
eleições democráticas do Haiti, em 1990, com 67% dos
votos; foi deposto por um golpe orquestrado por George
Bush (pai), em setembro de 1991 e reconduzido ao poder, em
1994, com o apoio do então presidente estadunidense Bill
Clinton, interessado, entre outras coisas, em conter a
crise dos refugiados, quando milhares de haitianos
desesperados tentavam entrar clandestinamente em Miami.
Vencido o mandato, em 1995, Aristide teve que esperar até
2000 para concorrer de novo ao cargo. Ganhou, novamente,
em eleições conturbadas (seu partido, o Lavalas, obteve
cerca de 80% dos votos), para de novo ser deposto, em
fevereiro de 2004, por um golpe apoiado por tropas dos
Estados Unidos e localmente liderado por gente como os
torturadores Prosper Avril e Guy Philippe (treinado em
base militar estadunidense no Equador e admirador confesso
de Augusto Pinochet e Ronald Reagan).
George Bush, como Lyndon Johnson há quatro décadas, quis
legitimar a deposição do presidente eleito mediante o
envio de uma "força de paz". Convocou o Brasil para
liderar o circo.
As razões de Castelo Branco, em 1965, eram claras. A
ditadura queria provar sua utilidade a Washington, no jogo
da Guerra Fria. Uma das primeiras medidas adotadas por
Castelo Branco, nesse sentido, foi a ruptura das relações
com Cuba, em 13 de maio de 1964, obtendo de Johnson, em
troca, a aprovação para a concessão de empréstimos
financeiros ao Brasil, interrompidos sob o governo João
Goulart, em 1963.
As razões do governo Lula também são claras. Elas
obedecem, no plano da política externa, à mesma lógica
adotada no da economia: negociar posições com Washington,
no quadro de uma fidelidade canina à estratégia global
adotada pela Casa Branca. Lula mantém no horizonte o
objetivo de conquistar para o Brasil um assento no
Conselho de Segurança da ONU, e em nome disso mostra-se um
parceiro tão confiável quanto os antigos ditadores. Mas a
sua fidelidade não se limita "apenas" a gestos esporádicos
em situações espetaculares.
O governo Lula acata, por exemplo, a política de
militarização da "guerra ao narcoterrorismo" exigida ao
Brasil, desde os anos 80, por Washington (posição
sustentada, doutrinariamente, pela série Documentos de
Santa Fé, síntese da perspectiva neoconservadora para a
América Latina) e plenamente encampada pelo governo FHC. A
guerra ao suposto "narcoterrorismo" legitima a presença de
tropas estadunidenses na Amazônia (Plano Colômbia), e
coloca tanto a Polícia Federal quanto as Forças Armadas do
Brasil no encalço da guerrilha que resiste ao
imperialismo.
Um relatório do Departamento de Estado dos Estados
Unidos, divulgado em março de 2004, elogia as ações do
governo Lula contra o "narcoterrorismo". Cita a
intensificação da "vigilância" das fronteiras por meios
das operações Cobra (Colômbia, financiada por Washington),
Vebra (Venezuela), Pebra (Peru) e Brabo (Bolívia) e
intenção de ampliar a fiscalização para a Guiana, Suriname
e a fronteira tríplice com Argentina e Paraguai.
Que o governo do PT aceite cumprir semelhante papel de
guardião da Casa Branca, como aquele jogado pela ditadura
militar, só prova, mais uma vez, a implacável força do
complemento proposto pelo bom e velho Marx à observação
criada por Hegel: a história se repete... como farsa.
Folha de São Paulo 23. out. 2004.
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