Viva Paraguay!
22/04/2008
- Opinión
“Viva Paraguay!”, grita a viejita, muito altiva e orgulhosa, envolvida pela bandeira tricolor - vermelha, azul e branca - de seu país. “Viva!”, respondem dezenas de pessoas eufóricas que, no bar, acompanham pela televisão o pronunciamento do Tribunal Superior da Justiça Eleitoral que reconhece a vitória, nas urnas, do ex-bispo católico Fernando Lugo. No lado de fora, uma multidão imensa toma as ruas; a pé e de carro, todos se dirigem espontaneamente à praça localizada bem diante do Panteón Nacional de los Héroes. Cantam, desfraldam a bandeira nacional, dançam, gritam palavras de ordem – “Y llora Blanca, llora”, “que se vaya Nicanor”, “el pueblo unido jamás será vencido”, às vezes substituída por “Lugo querido jamás serás vencido”, “se siente, Lugo presidente”, além de outras menos suaves, como “acima, abajo, Nicanor al carajo”. É 20 de abril, noite de lua cheia – aliás, cheíssima, plena de luz e de graça -, e todos, talvez pela primeira vez em suas vidas, estão orgulhosos de serem paraguaios. Eles enterram seis décadas de autoritarismo colorado, incluindo 35 anos da ditadura sangrenta e corrupta de Alfredo Stroessner (1954 – 1989). O Paraguai renasce das cinzas.
"Hoje queremos renovar o nosso compromisso com o povo paraguaio, com os mais humildes, com os mais pobres e a maioria do povo, que é um povo jovem. (...) Hoje assemelha-se aos 14 e 15 de Maio de 1811 [data da independência do país]. Vocês são os grandes responsáveis pelo 20 de Abril de 2008. Finalmente, além de dizer que nós os estimamos, e estamos com vocês comprometidos, pedimos: nunca nos abandonem”, declara Lugo, no alto de um palanque improvisado na praça, para o delírio da multidão. Sim, sem dúvida, a imensa maioria do povo é formada por jovens e por descendentes dos guaranis, gente permanentemente humilhada e, eventualmente, escravizada pela elite branca. Hoje, eles dão o troco. Significativamente, o movimento liderado por Lugo é conhecido, entre os paraguaios, como Frente Tekojoja, nome guarani cujo significado é “viver entre iguais”.
Totalizadas as urnas, o líder da Alianza Patriótica para el Cambio (APC), que inclui a Frente Tekojoja, obteve 40,8% de um total de 1.726.906 votos válidos (participaram 65% dos quase 2,9 milhões de paraguaios aptos); sua principal oponente, Blanca Ovelar, candidata do Partido Colorado e apoiada pelo presidente Nicanor Duarte, conquistou 30,7% dos votos, o general reformado Lino Oviedo ficou com 22% e o empresário Pedro Fadul, da frente Pátria Querida, com 2,4%. Estes são os números, mas números podem confundir e obscurecer, ainda quando pretendem dizer a mais rigorosa verdade. Os meros dez pontos percentuais que separam Lugo de Blanca, algo como 170 mil votos, representam um vasto abismo entre um país orgulhoso, potencialmente capaz de tomar os próprios destinos em suas mãos, e aquilo que, até agora, era o Paraguai: um quintal das operações da CIA, uma grande hacienda governada com base no terror policial e repressivo, por corruptos, contrabandistas e narcotraficantes, um país espoliado, com boa parte de seu território ocupado por latifundiários brasileiros, e explorado de modo vil pelo Tratado energético de Itaipu, firmado em 26 de abril de 1973, entre duas ditaduras, a brasileira e a de Stroessner.
Claro, claro, claro: uma eleição não resolverá, de uma tacada, uma herança maldita de seis décadas, para não falar do legado deixado pela destruição do país arquitetada pela Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai), entre 1864 e 1870, sob as ordens do imperialismo inglês. Seria uma tolice infantil imaginar algo do tipo, ainda mais quando se sabe que a frente liderada por Lugo abarca sete partidos que defendem as mais distintas ideologias, além de duas dezenas de movimentos sociais das mais diversas origens. Será um governo duro, difícil, com imensos desafios pela frente. Mas, por enquanto, o principal está feito. O período colorado acabou, e um novo capítulo se abre na história da América do Sul, mais uma vez com o protagonismo decisivo dos jovens e dos povos originários. E foram eles, sem dúvida, que venceram as eleições. Toda a campanha de Blanca Ovelar foi feita com base no medo: cerca de um terço da população adulta paraguaia é (ou era) filiada ao Partido Colorado, não necessariamente por convicção, mas por ser uma via obrigatória aos que queriam fazer carreira no funcionalismo público ou que, simplesmente, não ousavam enfrentar as tremendas pressões políticas feitas pela “máquina”; toda essa gente foi constrangida a votar em Blanca. Os votos decisivos foram dados por aqueles que estavam fora do alcance punitivo colorado: os jovens e os camponeses guaranis.
Lugo fez uma campanha voltada para eles. Os dois pontos principais de seu programa são: reforma agrária imediata, com conseqüências importantes para os latifundiários brasileiros produtores de soja, proprietários de grandes áreas ao leste do país, e a revisão do Tratado de Itaipu – em princípio, válido até 2020 - , mediante o qual o Paraguai se compromete a vender ao Brasil, ao preço de custo, todo o excedente de energia elétrica (tudo o que sobra após o seu uso pelo próprio Paraguai). Segundo o engenheiro Ricardo Canese, secretário de Relações Internacionais do Tekojoja – um sujeito simpático, meio parecido com o ator italiano Giancarlo Giannini quando jovem -, o Paraguai perde, com isso, 3,6 bilhões de dólares por ano. Não é difícil imaginar o que isso significa para o país, quando se recorda que o seu PIB é de 7,5 bilhões de dólares.
Caso Lugo consiga, de fato, implementar o seu programa, não faltarão gritos na imprensa burguesa brasileira, incitando o país à guerra contra aqueles que querem “prejudicar os interesses dos nossos empresários da soja” e /ou ignorar acordos internacionais, exatamente como aconteceu no ruidoso caso da Petrobras com a Bolívia de Evo Morales. Se e quando isso acontecer, será dever de todo brasileiro democrático, politicamente consciente, ou simplesmente de boa fé rejeitar as provocações vis daqueles que vivem de parasitar as riquezas alheias e estender as sua mãos aos nuestros hermanos de Paraguay que, neste momento, dão um exemplo histórico de ousadia, soberania e fé no futuro.
Talvez seja a hora de se cumprir como profecia o desejo expresso pelo poeta paraguaio Elvio Romero, em 1947 (providencialmente relembrado por João Pedro Stedile): “Y en un murmullo solar, / se encenderán los caminos.”
- O jornalista José Arbex Jr acompanhou as eleições, em Assunção, como observador internacional, a convite da Frente Tekojoja.
"Hoje queremos renovar o nosso compromisso com o povo paraguaio, com os mais humildes, com os mais pobres e a maioria do povo, que é um povo jovem. (...) Hoje assemelha-se aos 14 e 15 de Maio de 1811 [data da independência do país]. Vocês são os grandes responsáveis pelo 20 de Abril de 2008. Finalmente, além de dizer que nós os estimamos, e estamos com vocês comprometidos, pedimos: nunca nos abandonem”, declara Lugo, no alto de um palanque improvisado na praça, para o delírio da multidão. Sim, sem dúvida, a imensa maioria do povo é formada por jovens e por descendentes dos guaranis, gente permanentemente humilhada e, eventualmente, escravizada pela elite branca. Hoje, eles dão o troco. Significativamente, o movimento liderado por Lugo é conhecido, entre os paraguaios, como Frente Tekojoja, nome guarani cujo significado é “viver entre iguais”.
Totalizadas as urnas, o líder da Alianza Patriótica para el Cambio (APC), que inclui a Frente Tekojoja, obteve 40,8% de um total de 1.726.906 votos válidos (participaram 65% dos quase 2,9 milhões de paraguaios aptos); sua principal oponente, Blanca Ovelar, candidata do Partido Colorado e apoiada pelo presidente Nicanor Duarte, conquistou 30,7% dos votos, o general reformado Lino Oviedo ficou com 22% e o empresário Pedro Fadul, da frente Pátria Querida, com 2,4%. Estes são os números, mas números podem confundir e obscurecer, ainda quando pretendem dizer a mais rigorosa verdade. Os meros dez pontos percentuais que separam Lugo de Blanca, algo como 170 mil votos, representam um vasto abismo entre um país orgulhoso, potencialmente capaz de tomar os próprios destinos em suas mãos, e aquilo que, até agora, era o Paraguai: um quintal das operações da CIA, uma grande hacienda governada com base no terror policial e repressivo, por corruptos, contrabandistas e narcotraficantes, um país espoliado, com boa parte de seu território ocupado por latifundiários brasileiros, e explorado de modo vil pelo Tratado energético de Itaipu, firmado em 26 de abril de 1973, entre duas ditaduras, a brasileira e a de Stroessner.
Claro, claro, claro: uma eleição não resolverá, de uma tacada, uma herança maldita de seis décadas, para não falar do legado deixado pela destruição do país arquitetada pela Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai), entre 1864 e 1870, sob as ordens do imperialismo inglês. Seria uma tolice infantil imaginar algo do tipo, ainda mais quando se sabe que a frente liderada por Lugo abarca sete partidos que defendem as mais distintas ideologias, além de duas dezenas de movimentos sociais das mais diversas origens. Será um governo duro, difícil, com imensos desafios pela frente. Mas, por enquanto, o principal está feito. O período colorado acabou, e um novo capítulo se abre na história da América do Sul, mais uma vez com o protagonismo decisivo dos jovens e dos povos originários. E foram eles, sem dúvida, que venceram as eleições. Toda a campanha de Blanca Ovelar foi feita com base no medo: cerca de um terço da população adulta paraguaia é (ou era) filiada ao Partido Colorado, não necessariamente por convicção, mas por ser uma via obrigatória aos que queriam fazer carreira no funcionalismo público ou que, simplesmente, não ousavam enfrentar as tremendas pressões políticas feitas pela “máquina”; toda essa gente foi constrangida a votar em Blanca. Os votos decisivos foram dados por aqueles que estavam fora do alcance punitivo colorado: os jovens e os camponeses guaranis.
Lugo fez uma campanha voltada para eles. Os dois pontos principais de seu programa são: reforma agrária imediata, com conseqüências importantes para os latifundiários brasileiros produtores de soja, proprietários de grandes áreas ao leste do país, e a revisão do Tratado de Itaipu – em princípio, válido até 2020 - , mediante o qual o Paraguai se compromete a vender ao Brasil, ao preço de custo, todo o excedente de energia elétrica (tudo o que sobra após o seu uso pelo próprio Paraguai). Segundo o engenheiro Ricardo Canese, secretário de Relações Internacionais do Tekojoja – um sujeito simpático, meio parecido com o ator italiano Giancarlo Giannini quando jovem -, o Paraguai perde, com isso, 3,6 bilhões de dólares por ano. Não é difícil imaginar o que isso significa para o país, quando se recorda que o seu PIB é de 7,5 bilhões de dólares.
Caso Lugo consiga, de fato, implementar o seu programa, não faltarão gritos na imprensa burguesa brasileira, incitando o país à guerra contra aqueles que querem “prejudicar os interesses dos nossos empresários da soja” e /ou ignorar acordos internacionais, exatamente como aconteceu no ruidoso caso da Petrobras com a Bolívia de Evo Morales. Se e quando isso acontecer, será dever de todo brasileiro democrático, politicamente consciente, ou simplesmente de boa fé rejeitar as provocações vis daqueles que vivem de parasitar as riquezas alheias e estender as sua mãos aos nuestros hermanos de Paraguay que, neste momento, dão um exemplo histórico de ousadia, soberania e fé no futuro.
Talvez seja a hora de se cumprir como profecia o desejo expresso pelo poeta paraguaio Elvio Romero, em 1947 (providencialmente relembrado por João Pedro Stedile): “Y en un murmullo solar, / se encenderán los caminos.”
- O jornalista José Arbex Jr acompanhou as eleições, em Assunção, como observador internacional, a convite da Frente Tekojoja.
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