O velho amigo de Henry Kissinger
03/04/2005
- Opinión
“Sempre admirei pessoas que combinam teoria e prática. Henry
Kissinger é um homem de elevado intelecto. E, inegavelmente,
é um homem de ação. É um raro tipo de homem que pode, com
sucesso, traduzir o pensamento estratégico em políticas
públicas e medidas concretas. Sua grandiosa e importante
produção acadêmica só encontra paralelo em sua contribuição
para a formulação da política externa dos Estados Unidos,
assim ajudando a mudar o mundo em que vivemos, especialmente
nos anos 70. É, portanto, um grande prazer para mim ser um
conferencista, nesta noite, no programa Henry Kissinger de
palestras sobre política externa e relações internacionais.”
O conferencista que presta tão tocante homenagem ao grande
homem é ninguém menos que o ex-presidente Fernando Henrique
Cardoso, durante uma palestra proferida em 23 de fevereiro,
no centro John W. Kluge da Biblioteca do Congresso dos
Estados Unidos. Ao assumir o microfone, FHC agradeceu a
presença de Kissinger, por ele qualificado de “um velho amigo
meu e de todos vocês”. A íntegra da palestra pode ser
encontrada, em inglês, no site do Instituto Fernando Henrique
Cardoso (www.ifhc.org.br/theneed.htm). A íntegra? Não
exatamente. No texto oferecido ao público pelo próprio FHC
você não encontrará a menção ao “velho amigo”, notam os
redatores da revista eletrônica Carta Maior
(cartamaior.uol.com.br), edição de 3 de março. Em
compensação, você pode ver e ouvir a saudação, no site do
centro Kluge (www.loc.gov/loc/kluge/kluge-cardoso.html).
“O velho amigo” foi responsável por alguma das maiores
matanças produzidas nos anos da Guerra Fria (basta lembrar os
horrores do Vietnã, Laos e Cambodja), e teme sair dos Estados
Unidos, tantas são as acusações e pedidos de extradição para
ser levado a julgamento como criminoso de guerra. Isso, por
si só, já seria suficiente para qualquer brasileiro sentir
vergonha de ver um ex-presidente prestar-se a um papel tão
infame. Mas a coisa fica realmente sórdida quando se recorda
que durante a ditadura militar, FHC recorreu ao Chile de
Salvador Allende, em busca de asilo. Foi bem recebido, como
se sabe. E quem foi o mentor intelectual do golpe desferido
por Augusto Pinochet, que resultou na morte de Allende?
Ninguém menos que o “velho amigo”.
Talvez por isso, para não causar embaraços, o representante
do centro Kluge, ao apresentar o palestrante, tenha se
referido apenas de passagem aos anos de exílio de FHC, sem
mencionar a incômoda palavrinha “Chile”. Ás vezes, a memória
causa muito aborrecimento. FHC sabe disso: lembram quando ele
pediu que todos esquecessem os seus escritos? Pois é. Não há
limite para a iniqüidade.
Se a coisa parasse por aí, o escândalo já seria de bom
tamanho. Mas o episódio apenas abre a tampa do bueiro. Deu no
Financial Times, em 25 de fevereiro, como foi bem notado, na
Carta Maior, por Marco Aurélio Weissheimer: FHC participa de
um grupo de monitoramento da situação política da América
Latina, com Carla Hills, mulher de confiança da família Bush
e uma das principais articuladoras da Nafta (Associação de
Livre Comércio da América do Norte). Uma das primeiras
providências do tal grupo, com sede em Washington, foi
encaminhar um relatório à Casa Branca para pedir uma
“presença maior” dos Estados Unidos no hemisfério. O
relatório cita, especificamente, o governo do presidente Hugo
Chávez como exemplo “preocupante” de “desrespeito à
democracia”. A “polarização política” na Venezuela, diz o
velho amigo de Kissinger, ameaça produzir instabilidade em
toda a região andina.
FHC e a torcida do Corinthians sabem perfeitamente bem da
participação da CIA nas tentativas de golpe de Estado para
derrubar Chávez; sabe também que o apelo à “presença maior”
dos Estados Unidos abre uma avenida para uma eventual
intervenção na América Latina, que, aliás, já está em curso
na Amazônia colombiana e equatoriana; e sabe que, não fosse a
heróica resistência de iraquianos e afegãos, a sanha
intervencionista de George Bush teria produzido resultados
ainda mais catastróficos no planeta. O que pretende,
portanto, o “velho amigo” de Kissinger?
Não é absurdo supor que entra em seus cálculos cultivar as
amizades certas em Washington, com o objetivo de facilitar o
caminho para a disputa presidencial brasileira de 2006. Que
tal criar um distanciamento entre a Casa Branca e o governo
Lula, mostrando-se muito mais confiável do que o metalúrgico
do ABC, que sequer fala inglês? Não que o presidente Luiz
Inácio represente qualquer desafio, longe disso, como mostra
a participação vassala brasileira no Haiti. Mas Lula mantém
encontros mais ou menos cordiais com Chávez e acaba de
anunciar um convênio comercial com a Venezuela; e ainda por
cima comete o ultraje de se abster em votações organizadas
pela ONU para condenar Cuba. Não é exatamente o perfil
desejado por Bush.
Em visita ao Brasil, no final de março, o secretário da
Defesa, Donald Rumsfeld cobrou publicamente, ao Planalto, um
posicionamento mais duro contra as Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia e o congelamento das relações com
Caracas. Humanista e pacifista sincero, Rumsfeld condenou o
“terrorismo” das Farc e se disse preocupado com a aquisição,
pela Venezuela, de cem mil fuzis AK-47 russos. Para quê a
Venezuela precisa dessas armas, qual o objetivo de tanta
violência, pergunta a nova versão de Gandhi. Alguém tem uma
sugestão? Rumsfeld não conseguiu tudo o que queria, pelo
menos por enquanto. O governo brasileiro recusou-se a
qualificar as Farc como terroristas, e manteve o princípio de
respeito à soberania nacional, isto é, de não ingerência nos
assuntos internos de outros países. Decididamente, FHC é mais
confiável.
O quadro, então, é esse. O “velho amigo” de Kissinger integra
um “grupo de monitoramento” da América Latina e pede uma
“presença maior” de Bush no hemisfério. FHC não apenas
esqueceu tudo o que escreveu (não que tenha sido um Lênin ou
coisa parecida, mas ao menos pretendia-se dotado de coluna
vertebral), como apagou da memória os Allendes do passado,
para não falar de professores como Florestan Fernandes.
Você convidaria esse sujeito para jantar em sua casa?
* Revista caros amigos abril 2005.
https://www.alainet.org/pt/articulo/111703
Del mismo autor
- Mercosul e Brics: alvos do golpismo 19/10/2016
- Brexit expõe o colapso da (des)ordem burguesa 05/07/2016
- PT paga o preço da conciliação 23/12/2013
- É a conjuntura, estúpido 17/07/2013
- Vamos manter viva a universidade dos trabalhadores! 02/03/2010
- Viva Paraguay! 22/04/2008
- Haja cruz 16/04/2006
- O velho amigo de Henry Kissinger 03/04/2005
- Os assinantes pagam, Veja mente 18/03/2005
- Los subscriptores pagan, el semanario Veja miente 17/03/2005