PT paga o preço da conciliação

23/12/2013
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Desorganizado e impotente, por obra e graça de sua própria direção, partido é incapaz de reagir aos ataques do STF, que assume o papel de articulador ideológico do ódio de classe da burguesia
 
Na Europa medieval, os monarcas absolutistas ordenavam a tortura ou a execução dos criminosos em praça pública, com um claro objetivo político, ou melhor, biopolítico, diria Michel Foucault: tratava-se de propiciar um espetáculo, tanto na acepção banal do termo – criar cenas impactantes, de apelo visual, emocional e afetivo – quanto no sentido de imprimir no imaginário de cada espectador o temor face à possibilidade de, no futuro, ser ele o punido. O espetáculo servia, em resumo, como entretenimento e advertência.
 
A Idade Média ainda não foi superada no Brasil contemporâneo, onde os criminosos continuam sendo expostos e humilhados em praça pública. Mas, claro, não todos os criminosos, apenas aqueles que, pela cor de sua pele, por sua origem social e/ou pela ideologia que defendem - ou que, pelo menos, parecem defender - incorrem na ira do rei. Não há outra maneira de entender a fúria que se abateu contra os réus condenados do mensalão. Um manifesto divulgado no dia 19 de novembro, assinado por centenas de juristas, intelectuais, dirigentes sindicais e de movimentos sociais resume um pouco do que foi o grande espetáculo:
 
“A decisão do presidente do STF de mandar prender os réus da Ação Penal 470 no dia da proclamação da República expõe claro açodamento e ilegalidade. Mais uma vez, prevaleceu o objetivo de fazer do julgamento o exemplo no combate à corrupção. Sem qualquer razão meramente defensável, organizou-se um desfile aéreo, custeado com dinheiro público e com forte apelo midiático, para levar todos os réus a Brasília. Não faz sentido transferir para o regime fechado, no presídio da Papuda, réus que deveriam iniciar o cumprimento das penas já no semiaberto em seus estados de origem. Só o desejo pelo espetáculo justifica. Tal medida, tomada monocraticamente pelo ministro relator Joaquim Barbosa, nos causa profunda preocupação e constitui mais um lamentável capítulo de exceção em um julgamento marcado por sérias violações de garantias constitucionais.”
 
Não foi a fúria da justiça contra o transgressor que se abateu sobre os réus: foi a fúria da Casa Grande contra a Senzala, mas numa situação à primeira vista esdrúxula, repleta de contradições e paradoxos, dificilmente compreensível, mesmo para um observador que conheça razoavelmente a história do Brasil. Os casos mais espetaculares e dramáticos de fúria punitiva, explorados à exaustão por uma mídia sedenta de sangue e vingança, envolveram os três principais réus que, não por acaso, ocuparam postos importantes no PT - José Dirceu, José Genuíno e Delúbio Soares – partido ao qual é filiada a presidente Dilma Rousseff.
 
Joaquim Barbosa, o seu principal e mais furioso algoz – que agiu com requintes sádicos, no caso de José Genoíno - foi integrado ao STF por ninguém menos que o então presidente Luís Inácio Lula da Silva. E os réus, por sua vez, estão longe de representar uma ameaça ao capital: ao contrário, sob sua direção, o PT curvou-se às determinações dos banqueiros e sufocou o quanto pode a organização independente dos trabalhadores. Fiéis escudeiros dos patrões, os réus não deveriam ser objeto de um ódio tão grande.
 
Tudo, enfim, parece estar fora de lugar nessa história, que mais se assemelha a um conto narrado por um louco, repleto de sons e fúria, sem sentido algum – para tomar de empréstimo a definição que Macbeth dá ao ato de existir. Mas não é assim. Uma lógica muito sólida e implacável costura os fatos, até compor um mosaico perfeitamente coerente e legível.
 
Em primeiro lugar, a expressão da burguesia como classe econômica – a detentora dos meios de produção – nem sempre coincide com a expressão da burguesia como produtora de ideologia. Os patrões, sem dúvida, estão contentes com o PT. Quando se tratou de gerir os negócios burgueses, o partido que nasceu como porta-voz da Senzala aceitou o lugar a ele designado pela Casa Grande. “Lula é o cara”, diz Barack Obama. Mas os centros produtores da ideologia burguesa odeiam o PT, apesar de tudo. Os arrogantes, reacionários, conservadores e podres senhores de engenho simplesmente nunca aceitaram a ideia de entregar o Planalto a um retirante nordestino ou a uma ex-integrante da guerrilha. Ter o PT como capataz eficiente do latifúndio é uma coisa; aceita-lo como convidado à mesa principal é outra, bem diferente. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, diria o filósofo Genoíno, em tempos mais felizes.
 
Segundo, por uma série bem conhecida de circunstâncias históricas, o STF foi levado à condição de promover contra o PT a guerra que os partidos burgueses foram incapazes de travar no âmbito do Congresso. Dado que a burguesia ideológica encontra-se destituída de seus partidos políticos próprios – reduzidos à mísera insignificância do PSDB e do DEM -, o STF foi levado a agir como o carrasco do rei, para lembrar à ralé miúda o que acontece quando ela começa a acreditar que deixou a Senzala para se tornar parte da Casa Grande. O fato de o principal feitor ser negro, de berço bastante pobre e “amigo” de Lula só acrescenta ironia aos fatos, mas não terá sido nem a primeira e certamente nem a última vez que alguém devota ódio semelhante às suas próprias origens sociais.
 
Por fim, o PT paga o preço da conciliação de classe. A impotência política frente aos ataques do STF tem a sua raiz no processo de desorganização que o próprio PT criou, fazendo da CUT uma reunião de eunucos sindicais e de boa parte dos movimentos sociais meras plateias que, vez ou outra, encenam algumas críticas ao governo federal. Isso tudo foi claramente demonstrado pela “jornadas de junho”, que dispensaram solenemente o concurso do PT e da CUT, quando não os hostilizaram abertamente.
 
Como resultado, as características mais arcaicas do estado brasileiro manifestam sua força e impõem suas regras e formas à esfera pública. O rei estala a chibata.
 
José Arbex Jr.
Revista Caros Amigos, São Paulo, dezembro de 2013
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