Ligações perigosas - o controle da biodiversidade mundial: o caso do ICBG

18/12/2003
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Face à geografia política que o mundo de hoje nos oferece, onde o domínio da tecnologia está de um lado e a diversidade biológica e cultural de outro[1], os Estados e as empresas do complexo químico-farmacêutico-alimentar situados no pólo hegemônico do padrão de poder mundial se lançam numa busca sistemática para controlar os recursos genéticos.

Para isso a tríade Estado-Empresa-Ciência nos mostra como a especificidade de cada lado se complementa para garantir as estratégias de controle. A relação entre Estado e Empresa permite por em prática estratégias de legitimação por meio de Universidades usando, para isso, tanto mecanismos de pressão econômica como militar. A cientista social mexicana Ana Esther Ceceña tem salientado que ‘a articulação das decisões militares e os projetos de investigação da natureza ou de apoio ao desenvolvimento não é evidente. Só se percebe ao revisar os cruzamentos entre universidades e agências de investigação, o Departamento de Defesa, o de Energia e o de Saúde, assim como a composição dos diretórios ou conselhos de administração de organismos aparentemente não governamentais e/ou agências governamentais’ (Ceceña: 2001: 22). É o que se depreende do programa estratégico envolvendo empresas e universidades constituído pelo governo dos EUA visando o controle da biodiversidade à escala mundial e, assim, garantir a primazia no campo da biotecnologia (remédios, sementes e bioquímicos em geral) - ICBG.

Trata-se do International Cooperative Biodiversity Group (ICBG) programa que vem contando, inclusive, com apoio de instituições multilateriais, como o Banco Mundial. O ICBG é coordenado pelo Technical Assesment Group (TAG) formado por 3 órgãos estatais dos EUA, a saber: Serviço de Agricultura Estrangeira (FAS), a Fundação Nacional de Ciência (NSF) e o Instituto Nacional de Saúde[2] (NIH). Atente-se para a tríade – Agricultura, Ciência e Saúde.

O Programa está organizado de forma a garantir o mais amplo controle possível por parte do Estado norte-americano em benefício de empresas cujos proprietários são residentes no país. Tal Programa se realiza por meio de Programas Associados divididos em três linhas estratégicas, a saber: 1- Conservação da Natureza; 2- Desenvolvimento Econômico e 3- Descobrimento de Drogas Medicinais.  Em todos os Programas devem estar presentes empresas que ao financiarem parte das investigações podem patentear os resultados das pesquisas. Observe-se que o componente jurídico está presente nas equipes interdisciplinares dos diferentes programas associados visando garantir a propriedade formal em favor das empresas.

Para garantir o controle político num setor de tamanha importância estratégica, qualquer que seja o Programa Associado, a instituição-líder só pode ser uma organização não-lucrativa dos Estados Unidos. São elas que formulam os termos de referência para os diferentes Programas Associados do qual podem participar instituições, lucrativas ou não, aí sim, de países diferentes. Destaque-se que todos os Programas Associados estão sendo desenvolvidos em países da América Latina, África e Ásia.

É interessante observar a sutileza na relação entre Estado e Empresa,  assim como a geopolítica implicada no ICBG. Atentemos, antes de tudo, que a instituição líder de qualquer programa de pesquisa deve ser, além de estadunidense, uma instituição não-lucrativa e, deste modo, o Estado procura garantir seu papel enquanto mediador entre as grandes corporações interessadas no campo. É importante sublinhar esse caráter de projeto estratégico nacional dos EUA, na medida que o nacionalismo tem sido um dos principais alvos de críticas quando se intenta praticá-lo em favor dos interesses de outros países, sobretudo aqueles do pólo dominado no padrão de poder mundial. Devemos observar, ainda, que garantido o controle por uma entidade estadunidense pode-se estabelecer relações com grandes corporações mesmo de outros países, como é o caso da Molecular Nature Limited[3], fundada em 1999, que é de Gales, na Grã Bretanha (Gimenez: 2001: 176).

É preciso observar que essas investigações implicam investimentos elevados e a relação entre Estado e Grandes Corporações se reveste, particularmente nesse caso, de um caráter estratégico central para ambos. As grandes corporações necessitam de segurança, sem o que não podem operar nos países onde estão as informações genéticas. O Estado, no caso os EUA, garante essa segurança não só pelo poderio militar incontestável, como pela pressão que a diplomacia dos EUA exerce para que se aprove legislações favoráveis ao ‘livre acesso’ aos recursos genéticos, como a leis que garantam barreiras de acesso por meio da propriedade[4] (propriedade privada intelectual, patentes). Por outro lado, essas investigações do ICBG, além de procurarem garantir o controle sobre esses recursos genéticos estratégicos, estão relacionadas a pesquisas sobre doenças tropicais, como as que se desenvolvem na Ásia e na África, que permitem, entre outras coisas, encontrar antídotos contra vírus e bactérias endêmicas de áreas tropicais que possam prejudicar uma eventual ação do exército dos EUA nessas áreas quando julgarem ameaçados seus interesses (Ceceña, 2001: 25). Observe-se que, no caso em que uma região estratégica seja considerada de risco do ponto de vista político, é o próprio exército dos EUA que assume diretamente o papel de instituição-líder, como na Nigéria (Veja Quadro Institucional abaixo).

A dimensão geopolítica do ICBG ganha maior relevância quando observamos que, além de ser grande o montante de capital exigido para pesquisas nesse campo[5], as políticas de ajuste estrutural recomendadas pelos organismos multilaterais vem diminuindo, de modo significativo, a capacidade de investimentos em ciência e tecnologia naqueles países que, mesmo fora dos centros tradicionais de desenvolvimento científico, conseguiram montar estruturas de investigações importantes, como o Brasil, a Argentina, o México, entre outros. Uma das conseqüências mais graves dessa diminuição de verbas para pesquisa é a busca de financiamento por parte dos pesquisadores num verdadeiro mercado de varejo e, com isso, toda uma massa crítica de cientistas acaba se envolvendo com projetos cujos objetivos políticos estratégicos desconhecem. Deste modo, contribuem para reforçar as desiguais relações de poder que tanto caracterizam o mundo de hoje, como as implicadas nesse projeto do ICBG.

Os procedimentos das pesquisas no ICBG envolve uma divisão do trabalho onde, quase sempre, (1) a coleta de informações e obtenção de extratos naturais pelas instituições associadas juntos às comunidades camponesas, indígenas, quilombolas, pescadores e ribeirinhos que, invariavelmente, (2) são enviadas às universidades estadunidenses para provas em laboratório e identificação de princípios ativos que possam levar (3) à obtenção de patentes e proteção legal para a comercialização dos produtos por parte das empresas associadas. Registre-se que, no ICBG, todas as empresas são estadunidenses ou do Reino Unido.

Estamos diante, pois, de um verdadeiro complexo industrial-científico de caráter estratégico, o que torna provável que a relação entre Estado e Grandes Corporações seja da mesma natureza da que assistimos recentemente  entre o Estado e as grandes cadeias de comunicação na guerra dos EUA contra o governo do Iraque, quando essas empresas da mídia assumiram publicamente uma perspectiva pró-governamental. Afinal, ali também ficara evidente a imbricação dos interesses estratégicos do Estado com as grandes corporações do mundo das comunicações.

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A CURA DO CÂNCER: ENTRE O INTERESSE

PÚBLICO E O PRIVADO

O GAO - General Accounting Office -, o tribunal de contas dos EUA, em recente relatório[6] dá conta dos destinos dos gastos públicos envolvidos num acordo firmado em 1991 entre o Estado, por meio do Instituto Nacional da Saúde – NIH -, e a empresa Bristol-Myers-Squibb (BMS) para pesquisa e desenvolvimento, para viabilizar a chegada ao mercado de uma droga contra o câncer que viria a ser conhecida como Taxol ou, por seu nome genérico, paclitaxel. O princípio ativo havia sido isolado desde 1971 por pesquisadores Universidade do Estado da Flórida, com financiamento do Instituto nacional de Saúde, a partir de um arbusto conhecido como teixo-do-pacífico (Taxus brevifolia) sem que o GAO, nesse caso, informe como chegou a esse arbusto, se por informações obtidas a partir do conhecimento das populações da região ou não. Entretanto, independentemente de ter havido ou não apropriação de conhecimento alheio, em 2001, o Taxol (paclitaxel) tornou-se o remédio mais vendido em todo o mundo contra o câncer e certos tumores como o sarcoma de Kaposi (associado à AIDS). Entre 1993 e 2002 faturou-se com o Taxol (paclitaxel) US$ 9 bilhões de dólares! Observemos qual o destino desse negócio e dos gastos públicos e privados nele implicados. De acordo com o Relatório do GAO, as verbas públicas despendidas na sua criação foi de US$ 484 milhões de dólares e a Bristol-Myers-Squibb investiu cerca de US$ 1 bilhão de dólares, inclusive propaganda e publicidade. O interessante é que dos US$ 9 bilhões de dólares faturados pela empresa, cerca de US$ 687 milhões de dólares foram pagos pelo próprio sistema público de saúde dos EUA. O poder público, por sua vez, recebeu somente US$ 35 milhões de dólares como royalties (0,5% do faturamento). Vale a pena contabilizar: o poder público gastou US$ 484 milhões de dólares em pesquisa e pagou US$ 687 milhões de dólares para que pudesse usar um remédio cujo princípio ativo havia sido alcançado com recursos públicos do qual recebeu somente US$ 35 milhões de dólares! Um verdadeiro negócio da ... (antigamente dir-se-ia da China) época em que o Estado perde seu sentido público e torna-se subordinado aos grandes grupos corporativos, até mesmo num setor como o de saúde. A julgar pelo parecer do Relatório que afirma que ‘o benefício para a saúde pública ficou claramente demonstrado, pois havia poucos tratamentos para mulheres com câncer de ovário ou de mama quando o Taxol chegou ao mercado’, cabe indagar quantas mulheres poderiam ter sido tratadas se, simplesmente, os preços do remédio fossem mais baratos do que foram com esses lucros que o próprio relatório indica.

O ICBG, DIREITOS PATRIMONIAIS E INDIVIDUAIS SOBRE RECURSOS GENÉTICOS

O conhecimento científico tem sido invocado para legitimar programas como ICBG, sobretudo, em nome dos benefícios que estariam trazendo à humanidade. O campo da saúde se coloca como dos mais visados para legitimar essas pesquisas. Haveria uma ética sublime na cura e, muito embora, a cura possa ser obtida a partir de diferentes matrizes de racionalidade, a racionalidade científica ocidental se apresenta como sendo a única com pretensões a ser universal. Entretanto, para esse conhecimento que seria de interesse universal não se admite que venha a se tornar patrimônio comum da humanidade como, freqüentemente, se insinua para a riqueza em diversidade biológica de regiões como a Amazônia e a América Central e Caribe.

É o que se vê numa das questões mais controversas implicadas na divisão de trabalho desigual estabelecida no escopo do ICBG e que diz respeito à obtenção de informações e que vem sendo conhecida como biopirataria. Na verdade, a biopirataria significaria aquilo que os cientistas chamam de coleta ao azar, isto é, aquela prática em que o recolhimento das espécies vivas se dá sem nenhum critério prévio, ou seja, aleatoriamente. É o sistema mais caro de coleta. O que temos visto dominar, na prática, não é propriamente biopirataria mas, sim, etno-biopirataria posto que o que se recolhe são as informações sistematizadas pelas comunidades camponesas, indígenas ou de afrodescendentes. Não é a planta ou o animal que se leva simplesmente mas, sim, a informação construída por uma determinado povo por meio de sua cultura. Assim, falar de biopirataria é estar se olvidando dos prováveis direitos que teriam as populações que tradicionalmente teceram seus conhecimentos em íntima relação com os ecossistemas.

As razões invocadas para não se reconhecer esses direitos vão desde (1) o fato de que a maior parte dessas populações não fizeram registro por escrito dos seus conhecimentos; (2) que não se pode individualizar quem, nessas comunidades, detém o conhecimento; (3) mesmo entre as diferentes comunidades qual delas deve receber e; (4) até mesmo não se poder distinguir facilmente entre os países que detém conhecimentos similares a quem se deve reconhecer os direitos de propriedade. Deste modo, o conhecimento dessas populações é apropriado e seus possíveis direitos são ignorados pelo simples fato de não fundarem suas relações sociais, via de regra comunitárias, com base no indivíduo, e toda a rede discursiva e jurídico-política que daí deriva e que tem na propriedade privada individual seu eixo de sustentação a que o direito romano dá a sistematização formal.

Já indicamos que o conhecimento se acha inscrito na língua de cada povo e, como toda língua, trata-se de uma construção social e, portanto, trata-se de um patrimônio comum e não plenamente individualizável. Só a ignorância dessa realidade pode levar ao ridículo do patenteamento de uma espécie viva como o cupuaçu, como se viu recentemente.

Os conflitos derivados de diferentes modos de apropriação da natureza tem sido cada vez mais freqüentes já tendo atingido, inclusive, o próprio ICBG. O Conselho dos Povos Indígenas Aguaruna e Huambisa, no Peru, se negou a firmar um convênio de cooperação “quando pediu uma cópia do contrato em espanhol, [e] o ICBG não o entregou porque supostamente não havia recursos suficientes [para a tradução]. A RAFI – Rural Advancement Foundation International – assegura que o projeto iniciou a coleta de amostras vegetais em 1995 sem que o Conselho Indígena Aguaruna e Huambisa tenha dado sua aprovação” (Gimenez, 2001: 184).

É interessante observar as condições contratuais propostas que revelam muito das verdadeiras intenções dos proponentes dessas investigações e como avaliam os diferentes participantes do projeto. Segundo a RAFI, “a subsidiária da Monsanto doará à Universidade de Washington 15.000 dólares por um período de 4 anos com o fim de que seja utilizado para o benefício dos participantes na coleta. Também pagarão um prêmio de até 1% se o produto objeto da licença “incorpora o extrato vegetal, o produto natural ou sintético, ou seu análogo, ou o isômero do mesmo presentes no dito extrato vegetal”. [...] A metade desse 1% será utilizado para reembolsar às instituições individuais pelos gastos que tenham realizado durante a coleta. O dinheiro restante se divide em 4 partes iguais a serem repartidas entre os 4 participantes, um dos quais se denomina ‘comunidade ou povo indígena, ou outros colaboradores dentro ou fora da área de coleta, de quem se obteve a informação original que conduziu ao desenvolvimento de quaisquer patentes que cubram o produto objeto da licença” (Gimenez, idem: 185).

Este projeto do ICBG realizado nos contrafortes andinos das selvas amazônicas do Peru, sob a direção do Dr. Walter Lewis, da Universidade de Washington, está centrado na busca de possíveis agentes virais, sobretudo contra vírus que afetem as vias respiratórias, o herpes, leveduras patogênicas e  tuberculose. Em agosto de 2000, o projeto apresentou seus primeiros resultados anunciando que 46% das 1250 plantas examinadas apresentavam uma certa atividade que impede o crescimento do mycobacterium tuberculosis, a bactéria que causa a tuberculose. Está em elaboração um novo medicamento, devidamente patenteado, cujas origens do seu conhecimento advém das culturas das selvas andino-amazônicas peruanas[7] (Gimenez, idem 185).

Uma das principais controvérsias que se abre nos dias que correm tem sido sobre a propriedade intelectual sobre o material genético. Tem sido sistematicamente ignorado os prováveis direitos que as populações tradicionais teriam recusando-se, simplesmente, que essas comunidades sejam entes jurídicos. Sendo assim, as empresas, unidades jurídicas (e de poder) que são, ficam à vontade para reivindicar direitos de propriedade sobre conhecimentos ancestrais de outros povos e culturas. A Organização Mundial sobre Propriedade Intelectual – OMPI [8] - avaliou, em 1995, em nada mais nada menos que 45 bilhões de dólares, o valor dos produtos farmacêuticos derivados da medicina tradicional comercializados no mercado internacional.

Também no México, como analisa Silvia Ribeiro, há tensões no programa do ICBG, no caso o ICBG Zonas Áridas. Como determinam as normas do ICBG, estabeleceu-se há uma década um contrato trilateral, financiado pelo governos dos EUA entre o Jardim Botânico da Universidade Autônoma do México - UNAM, a Universidade do Arizona e a empresa Wyeth, a nona maior do mundo. O conflito se explicita quando se sabe que a Wyeth é uma das empresas que formam parte da associação PhRMA (Pharmaceutical Research and Manufacturers of America), que exerce um pesado lobby junto a governos e a organizações internacionais, como a Organização Mundial da Saúde e a OMC, buscando criar normas que fortaleçam seus direitos de barreira, como os de patentes. Segundo nos informa Silvia Ribeiro, “este ano, na lista que remete anualmente ao  Departamento de Comércio para que aplique a lei Special 301 dos Estados Unidos (represálias comerciais), propõem que o México esteja na "lista prioritária de países observados", devido, entre outras coisas, ao aumento de licenças de medicamentos genéricos. Segundo PhRMA, que não se preocupa que ao mesmo tempo suas companhias estejam se alimentando dos recursos e conhecimentos "genéricos" dos povos indígenas do México, este país é "o maior mercado de farmacêuticos da América Latina, com um valor estimado de 6 bilhões de dólares em vendas durante 2002. É o único mercado dessa região que segundo estimativas crescerá em 2003" e, portanto, se lhes permite seguir com estas políticas "terão um impacto devastador na indústria de investigação farmacêutica". Assim, uma empresa que forma parte de uma instituição tão poderosa como a PhRMA desenvolve pesquisas num país, onde inclusive se apropria dos conhecimentos das populações originárias, ao mesmo tempo que pressiona para que as leis sejam aquelas que protejam seus interesses de barreira (patentes).

Um argumento que as empresas transnacionais invocam com freqüência para defender seus direitos de barreira por meio de patentes é que devem recuperar os gastos de investigação e desenvolvimento de medicamentos. Entretanto, segundo dados do Programa de Nações Unidas para o Desenvolvimento, dos 1.223 medicamentos novos produzidos entre 1976 e 1996, somente 13 eram para enfermidades tropicais, e destes somente quatro foram produzidos pelo setor privado[9]. Um outro estudo, este realizado  pelo Escritório de Avaliação Tecnológica dos Estados Unidos, que abarcou 25 anos de produção farmacêutica, mostrou que 97 % dos produtos lançados no mercado não eram mais que cópias de remédios já existentes, em que se fez algumas mudanças cosméticas para prolongar o monopólio da patente quando a original estava por expirar. Dos 3% restantes, 70 % haviam sido produzidos por laboratórios públicos. E dos remédios realmente novos produzidas pelo setor privado, a metade teve que ser retirada do mercado devido a efeitos secundários que não haviam sido estudados previamente. Isso é o que vale a "pesquisa" das transnacionais farmacêuticas, conforme Silvia Ribeiro[10].

Na verdade, o núcleo do problema, como diz Silvia Ribeiro, é que as poderosas transnacionais do ramo farmacêutico - 10 empresas que controlam 58.4 % do mercado mundial: Pfizer+Pharmacia, Glaxo Smith Kline, Merck & Co., Bristol-Myers Squibb, Astra Zeneca, Aventis, Johnson & Johnson, Novartis, Wyeth e Eli Lilly- lutam para que os remédios que existem no mundo sejam exclusivamente para venda em farmácias, com patentes devidamente estabelecidas que, pelas razões já aludidas, são monopolizadas por elas. Para lograr isto que, diga-se de passagem, nada tem a ver com a saúde propriamente dita, vêm procurando derrubar vários obstáculos como, por exemplo, desarmar os sistemas de saúde autônomos das comunidades locais para convertê-los em consumidores obrigatórios de produtos farmacêuticos comerciais: estima-se que 80 % da população rural do mundo utiliza, sobretudo, plantas medicinais para cuidar da saúde.

Desde a introdução, em 1994, dos Aspectos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (ADPIC, em português, ou TRIP por sua sigla em inglês) previa-se que a aplicação das leis de patentes teria exceções por razões de saúde pública: nesses casos seria permitido emitir licenças obrigatórias para fabricação nacional de remédios e realizar importações paralelas (comprar um produto mesmo com patente válida no país de outro país onde se vende mais barato).

Na Declaração de Doha emitida na reunião da OMC realizada em novembro de 2001, em função das pressões e protestos de países do terceiro mundo e organizações internacionais da sociedade civil, foram  ratificadas as exceções que já existiam. Desde então, entretanto, as instâncias de negociação dos ADPIC (TRIPs) têm sido no sentido de piorar os termos existentes. Os países sedes das transnacionais farmacêuticas - Estados Unidos e a União Européia, com leves variações, têm buscado reduzir o âmbito de aplicação das exceções, seja reduzindo o número de enfermidades aplicáveis, por exemplo, somente malária, tuberculose e AIDs; seja como fizeram ainda recentemente, declarando que a SARS, conhecida popularmente como pneumonia asiática, por ser uma pneumonia atípica não poderia entrar nessas exceções; enfim, manipulando o termo "razões de saúde pública" que consta no documento oficial dos TRIPS para que só seja válido em situações de "extrema urgência", o que abre espaço para avaliações de ocasião. Ainda recentemente, os Estados Unidos declararam que somente o grupo de países "menos desenvolvidos", os 48 extremamente pobres segundo as Nações Unidas, poderia fazer uso do direito às exceções por razões de saúde pública.

O que está em jogo com a discussão sobre genéricos e patentes vai muito além de interesses particulares ou de qualquer país em particular, como sustenta Silvia Ribeiro. Vimos, com o próprio relatório do Tribunal de Contas dos EUA para o caso do remédio Taxol-paclitaxel contra o câncer, como o interesse público, que deveria predominar ainda mais num campo como o da saúde, vem sendo subvertido ao ser dominado por uma lógica empresarial, inclusive com o beneplácito do Estado. E aqui, estamos vendo, não é somente a questão econômica que está implicada. Trata-se, ainda, do direito das populações dos países do terceiro mundo de usar e produzir os remédios que suas populações necessitam, sem depender nem submeter-se aos ditames das multinacionais, e de parar o saque de recursos e conhecimentos indígenas e camponeses não aceitando o sistemas de patente, tal como vem sendo imposto.

O ICBG e AS ORGANIZAÇÕES NEO-GOVERNAMENTAIS

Além da relação Estado-Empresas acima analisado há, ainda, a relação Estado-Organizações Não-Governamentais. É o que se pode depreender do  quadro institucional do ICBG que apresentamos abaixo e que nos permite identificar esse envolvimento de entidades conhecidas como não-governamentais. No caso do ICBG essa denominação é, no mínimo, indevida na medida que se trata de um programa de clara natureza estratégica do Estado, no caso os EUA.

Não é a primeira vez que se observa as relações íntimas entre entidades não-governamentais e projetos estratégicos do governo dos EUA. Relembremos que o forte sentimento anti-imperialista, particularmente anti-americano, vigente na América Latina e Caribe no anos 50 e 60, fez com que o governo dos EUA se esmerasse em encontrar uma estratégia que garantisse sua hegemonia na região. Para isso, lançou o Programa Aliança Para o Progresso, em inícios dos anos 60, como contra-estratégia diante da Revolução cubana e o fez por meio de uma série de entidades religiosas com fins humanitários, como a Charitas[11]. Ali, pela primeira vez, se teve notícia de que um Estado, no caso os EUA, lançou mão de entidades não-governamentais como parte de uma estratégia de caráter geopolítico[12].

Para nos restringirmos ao campo ambiental assinalemos que às vésperas da Rio 92 foi lançada, pelo então Presidente George Bush, a Iniciativa para as Américas. Nela estava explicitada que toda a estratégia do governo dos EUA se faria por meio de entidades não-governamentais, o que ensejou uma ampla reunião de vários movimentos sociais e outras entidades da América Latina e Caribe, realizada em Las Leñas, Argentina, onde se lançou em resposta a Iniciativa de los Pueblos contra aquela estratégia do governo dos EUA em colaboração com entidades assim nem-tanto-não-governamentais.

A presença de entidades que se recobrem com o caráter de não-governamental, como Conservation International que aparece como parte do ICBG, obriga-nos a repensar esse caráter e a buscar uma melhor conceituação desse tipo de entidade. Mais correto seria chamá-las de organizações neo-governamentais na medida que assinalam novas formas de relação do Estado com instituições da chamada sociedade civil. Afinal, pelo que se pode depreender do Quadro Institucional abaixo, não podemos continuar a chamar como não-governamentais entidades que estão implicadas em Programas de caráter geopolítico explícitos, como é o caso do ICBG.

Isso nos conduz a ficarmos alertas com relação a qualquer proposta de unidade de conservação ambiental, sobretudo em áreas de elevada diversidade biológica que, como vimos, é quase sempre também de grande diversidade cultural, como são os casos da área onde pretendem implantar o Plano Puebla-Panamá, ou dos Cerrados ou da Amazônia, na medida que podem comportar estratégias de controle de biodiversidade, sobretudo quando envolvem recursos provenientes dos países hegemônicos ou apoiados por instituições multilaterais, como o Banco Mundial, por exemplo. Essas áreas podem estar sendo protegidas enquanto reserva de valor, como um verdadeiro latifúndio genético (Gonçalves, 2002).

Nenhuma entidade não-governamental pode garantir efetivamente que seu projeto não esteja conformado por uma estratégia de controle da biodiversidade do planeta por parte de algum Estado e das grandes corporações que as financiam. A boa fé de jovens recém-formados nas universidades e a exigüidade de oportunidades no mercado de trabalho, essa quase sempre derivada da redução de gastos públicos recomendados pelas próprias instituições  multilaterais que financiam esses projetos (Banco Mundial, sobretudo), tem feito com que esses jovens que buscam uma ONG[13] sejam freqüentemente um alvo fácil para as estratégias de países que têm recursos para financiar projetos, como o ICBG deixa claro. Oferecer a eles a áurea de que estão implicados numa missão nobre de salvação do planeta, quase sempre se aproveitando de formações acadêmicas reducionistas onde, por exemplo, a formação de um biólogo nada ensina acerca de geopolítica, os leva a serem quase sempre alienados das implicações geopolíticas do trabalho que desenvolvem.

Ofereço a seguir um quadro em que se pode verificar as íntimas relações implicadas no ICBG envolvendo a estratégia do governo estadunidense, as corporações empresariais transnacionais, as universidades do primeiro e do terceiro mundo em posições hierarquizadas para garantir o fluxo de informação do sul para o Norte e as grandes organizações neo-governamentais. Atentemos que muitas dessas ONGs têm seus quadros ocupando posições chaves na formulação de políticas junto a países tomados como incapazes de formular estratégias políticas para a conservação da natureza[14]. Caberia uma análise cuidadosa das contratações com verbas do Banco Mundial de quadros para a área de meio ambiente do governo brasileiro e dos postos que vêm ocupando, sobretudo após a Rio 92. Tudo indica que estamos diante de uma verdadeira onguização patrocinada por uma organização como o Banco Mundial que, a rigor, é constituída pelos Estados, mas cujos membros não são diretamente ligados aos governos, sobretudo os do pólo dominado do padrão de poder geopolítico mundial. Pelo caráter estratégico que a biodiversidade comporta hoje, trata-se de um caso de enormes implicações políticas, como deixam claras as ligações perigosas que o ICBG revela.

Por tudo que observamos até aqui, podemos afirmar que o desafio ambiental contemporâneo está politizado de ponta a ponta. Não devemos, enquanto cientistas, ver nessa politização algo negativo ou positivo, seja do ponto de vista moral ou ético mas, sim, que a política está implicada até a medula nas questões que nos ocupamos. Assim, olvidar as implicações políticas inscritas na problemática ambiental é não captar uma dimensão concreta que dela faz parte. Impossível, portanto, enfrentar o desafio ambiental contemporâneo sem considerar as suas complexas implicações políticas.

QUADRO INSTITUCIONAL DO ICBG

COORDENAÇÃO GERAL – TAG

PAÍSES

Instituição

Líder

Instituição

Associada A[15]

Instituição

Associada B[16]

Empresas

México

- ICBG Maya -

University of Georgia

 

ECOSUR

Molecular Nature Ltda

(Grã Bretanha)

Panamá

Smithonian

Tropical Research Inst.

Walter Reed Army Inst. Of Research; Conservation International; Gorgos Memorial Inst. of Health in Panama; Nature Foundation in Panama; Honsen’s Disease Center in Louisiana

Universidad de Panama

Monsonia Co.

(EUA)

Madagascar

Suriname

Virginia Polythecnic

Inst.

Missouri Botanical Garden; Conservation International; National Center for Pharmaceutical Research in Madagascar

 

Bristol-Myers Squibb; Dow Elanco Agrosciences e Surinam’s Medicine Distribution Co.

Camarões

Nigéria

Walter Reedy Army Institute of Research

University of Minessota; University of Utah; Smithonian Institute; Bioresources Developmen and Conservation Program; Pace University of New York; International Center for Ethomedicine and Drug Development in Nigeria; University of Dschang in Camerun

University of Jas

 

Peru

Washington

University

Missouri Botanical Garden

Universidad Gayetana Heredia e Universidad San Marcos

G. D. Searle & Co (subsidiária da Monsanto)

(EUA)

Vietname

Laos

University of Illinois

 

Instituto de

Química do Vietnam

Glaxo Welcome

(Grã-Bretanha)

México

Argentina

Chile

University of Arizona

Honsen’s Disease Center in Louisiana

Universidade Autonoma de México; Instituto Nacional de Tecnologia Agrícola en Argentina; Univ. Pontificia Católica de Chile

Wyeth-Ayerst Lab. e American Cyanamid Co

Fonte: Revista Chiapas n. 12, pág. 174.

* Carlos Walter Porto Gonçalves. Coordenador do Programa de Pós-graduação em geografia da Universidade Federal Fluminense.



[1] - A Europa e os EUA são de uma espantosa pobreza genética, em virtude das monoculturas que o desenvolvimento capitalista vem lhes impondo há séculos. Suas agriculturas, mais os EUA que a Europa, têm enorme dependência de sementes captadas em todo o mundo.

[2] - O NIH é formado pelo Instituto Nacional do Coração, Pulmão e Sangue (NHLBI); pelo Instituto Nacional de Abuso de Drogas (NIDA); pelo Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH); pelo Instituto Nacional de Alergias e Enfermidades Infecciosas (NIAID), o Instituto Nacional do Câncer (NCI) e pelo Centro Internacional Fogarty (FIC) sendo que este último é o Coordenador do Programa de Biodiversidade e, assim, na prática, o diretor do ICBG.

[3] - Empresa que surgiu da venda da gigante do ramo da biotecnologia Xenova Discovery Limited, fundada em 1987.

[4] - Não esqueçamos que a propriedade privada, priva.

[5] - O que exclui a maior parte dos países da América Latina e Caribe, África e Ásia.

[6] - Disponível na internet no endereço www.gao.gov/new.items/d03829.pdf .

[7] - Segundo a RAFI, 35% das plantas dessa região são usadas por outras comunidades em mais de um país.

[9] - Foram as multinacionais farmacêuticas que redigiram o rascunho do capítulo sobre Aspectos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio – ADPIC – (TRIPS) na Organização Mundial do Comércio (OMC), que procura estabelecer o sistema de patentes de seres vivos em todo o mundo. Com o uso desse instrumento procuram combater a produção de medicamentos genéricos e, ainda, se apropria dos recursos genéticos e dos conhecimentos indígenas coletivos tanto dos povos indígenas como dos camponeses.

[10] - Para maiores detalhes consultar em http://alainet.org/listas/info/alai-amlatina o artigo La Cara Humanitaria de la OMC de Silvia Ribeiro.

[11] - Não olvidemos que os primeiros sindicatos de trabalhadores rurais foram criados no Rio Grande do Norte por D. Eugênio Salles com recursos da Aliança para o Progresso para contrarestar o fortíssimo movimento das Ligas Camponesas de então.

[12] - Aqui temos um belo exemplo de como o liberalismo não-governamental pode estar a serviço de interesses poderosos e, ironia, estatais.

[13] - Assinalemos que as ONGs têm sido um laboratório para a precarização das relações de trabalho, agora não mais restrita aos trabalhadores menos especializados. Geralmente nas ONGs não se tem direitos trabalhistas formais – férias remuneradas, aposentadoria, hora extra. Aqui obtém-se um trabalho qualificado ao preço da militância. Talvez assim se entenda porque no planejamento estratégico cada vez mais se use a linguagem religiosa como a definição da Missão, com maiúscula.

[14] - Caberia uma análise cuidadosa das contratações com verbas do Banco  Mundial de quadros para a área de meio ambiente do governo brasileiro e dos postos que vêm ocupando. Tudo indica que estamos diante de uma verdadeira onguização patrocinada por uma organização como o Banco Mundial que, a rigor, é constituída pelos Estados, mas cujos membros não são diretamente ligados aos governos, sobretudo os do pólo dominado do padrão de poder geopolítico mundial. Pelo caráter estratégico da biodiversidade hoje trata-se de um caso de enormes implicações, como deixa claro o ICBG com suas ligações perigosas.

[15] - Instituições com sede em Países Hegemônicos.

[16] - Instituições com sede nos próprios países onde se dá as investigações.

https://www.alainet.org/pt/articulo/108993
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