Terrorismo, um legado da história
03/10/2001
- Opinión
É surpreendente que um fato tão simples pareça escapar à
imensa maioria daqueles que escrevem sobre o terrorismo:
trata-se de uma ação praticada por seres humanos, não por ETs
enfurecidos. Por ser ato humano, só pode ser compreendido como
um resultado da história.
O século 20, em particular, banalizou o terror (isto é, o
uso da violência sistemática, com objetivos políticos, contra
civis ou alvos militares que não estejam em operação de
guerra). Também multiplicou as suas formas.
Existem terroristas que agem em nome de Deus (como os
grupos extremistas islâmicos); os mercenários (milicianos
franceses e norte-americanos que lutam na África); os
nacionalistas (como o IRA e do ETA); e, ainda, os ideológicos
(como o grupo de Tim McVeigh, responsável pela destruição do
prédio de Oaklahoma, em 1995).
Existe também o terrorismo de Estado – a prática de
eliminar populações e alvos civis (como os Estados Unidos, em
Hiroshima e no Vietnã, ou Pol Pot no Camboja), ou a segregação
e chacina de minorias (caso do antigo regime de apartheid na
África do Sul, e o de Israel contra os palestinos), ou ainda a
prática de torturar e assassinar os que pensam diferente
(ditaduras latino-americanas, nos anos 60 e 70).
Claro, o terror não começou no século passado. Ao
contrário, tem uma longa história. Basta lembrar, na era
moderna, o regime implantado na França por Robespierre, em
1793. Ou então o assassinato do czar da Rússia Alexandre
Segundo, em 1881, pela organização Vontade do Povo.
A primeira notícia de um atentado terrorista publicada
por um jornal no Brasil data de maio de 1878. O alvo era o
imperador Guilherme da Prússia. O estopim da Primeira Guerra
foi o assassinato, em 1914, do arquiduque Francisco
Ferdinando pelo estudante Gavrilo Prinzip, membro do grupo
terrorista sérvio Mão Negra.
Até os anos 20, o terrorismo era um fenômeno esporádico.
Ele começou a ganhar abrangência e importância com o
surgimento dos regimes de Josef Stalin e Adolf Hitler. Já no
final dos anos 20, Stalin enviava aos campos de concentração
centenas de milhares de opositores, sem contar os milhões de
camponeses executados durante a coletivização das terras,
entre 1929 e 1932.
Na Alemanha dos anos 30, Hitler perseguiu comunistas,
judeus, ciganos e eslavos. Até o final da Segunda Guerra, em
1945, seriam assassinados seis milhões. Os dois regimes eram
semelhantes, no que se refere ao culto à personalidade do
dirigente e aos poderes da polícia política (KGB e Gestapo).
O totalitarismo deu uma nova dimensão ao terror. Pela
primeira vez na história, a máquina do Estado era colocada a
serviço de ideologias que propunham a eliminação dos
adversários. O terror estendia os seus tentáculos sobre o
conjunto da sociedade. Método semelhante seria adotado por Mao
Tsétung, após a tomada do poder, na China, em outubro de 1949.
O legado do terror foi sintetizado pelo filósofo alemão
Theodor Adorno, com a sua terrível sentença: depois de
Auschwitz, tornou-se impossível fazer poesia. Adorno indagava
o sentido da cultura. Auschwitz aconteceu no país de Schiller,
Goethe, Marx, Bach, Kant... A tecnologia da morte zombou dos
mais elevados ideais da beleza, da verdade e do bem.
Não há limites para a capacidade destrutiva do homem. O
terrorismo ainda daria um gigantesco salto, com Hiroshima e
Nagasáqui, em agosto de 1945. A bomba fez da morte do mundo
uma opção política: bastaria um dos dois lados “apertar o
botão” para iniciar a guerra nuclear – a última da espécie. A
política e o diálogo haviam perdido sua razão de ser.
O “equilíbrio do terror” marcou as cinco décadas da
Guerra Fria. A “banalização do Mal” denunciada por Hannah
Arendt atingia o seu ápice.
O ser humano que emergiu desse processo tornou-se mais
cínico e “duro”, menos solidário. Nos anos 80, a ideologia
neoliberal - “não há sociedade, só indivíduos”, disse Margaret
Thatcher – forneceu o quadro mental perfeito para um mundo
afetivamente devastado, integrado por seres solitários,
atomizados, imersos em suas próprias angústias.
Os Estados Unidos (que, aliás, treinaram Osama Bin Laden
e armaram Sadam Hussein), particularmente, têm uma grande
responsabilidade sobre o clima de terror que emoldura as
relações internacionais. A totalidade de sua política externa
é baseada sobre a força bruta e o total desprezo pela
comunidade das nações.
Basta lembrar a recente ruptura de Washington com o
Protocolo de Kyoto, em nome dos seus específicos interesses
comerciais, ou o abandono da conferência contra o racismo, em
Durban. Não por acaso, em abril os Estados Unidos foram
excluídos da Comissão de Direitos Humanos da ONU. Os motivos
alegados pela Associação Americana dos Juristas falam por si:
“Os Estados Unidos não aderiram a boa parte dos
instrumentos internacionais de direitos humanos vigentes.
Entre outros, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais; os dois protocolos do Pacto de Direitos
Civis e Políticos; a Convenção contra o apartheid; a Convenção
sobre a imprescritibilidade dos crimes de guerra e de lesa-
humanidade; (...) a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados;
a Convenção de Ottawa, de 1997, que proíbe as minas anti-
pessoais (...). Tampouco votou pela criação de uma Corte Penal
Internacional (...). Ao ratificar o Pacto Internacional de
Direitos Civis e Políticos, formulou reservas a numerosos
artigos, entre eles o artigo 6.5, que proíbe a aplicação da
pena capital por delitos cometidos antes dos 18 anos (...). É
um dos dois países do mundo (o outro é a Somália), que não
ratificou a Convenção dos Direitos da Criança.”
A destruição do World Trade Center apenas projetou a
sombra do Gulag, de Auschwitz, de Hiroshima e do Vietnam sobre
Manhattan. Não se pretende, com essa afirmação – é óbvio! –,
justificar aquele ou qualquer outro atentado terrorista, venha
de onde vier. Muito ao contrário.
Pretende-se, apenas, situar o debate no seu lugar
concreto: a história.
https://www.alainet.org/pt/articulo/105349
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