Guerra contra o Paraguai: – Se me decifras, te devoro!

16/04/2014
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No Brasil, durante o conflito de 1864-70, não houve oposição política à guerra imperialista que o Estado imperial livrou contra o Uruguai e o Paraguai. Durante a República Velha, quase apenas os positivistas ortodoxos opuseram-se à pesada indenização que gravou o Paraguai, denunciando a agressão inaceitável contra as duas pequenas nações. Após 1930, a história da guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai seguiu sendo espécie de reserva de caça da historiografia nacional-patriótica brasileira, que se limitou no geral a cantar as glórias dos feitos militares marítimos e navais tupiniquins naquelas terras distantes.
 
 Num simplismo constrangedor, a responsabilidade pelos sucessos seguiu sendo lançada sobre as costas largas de Francisco Solano López, descrito como ditador ambicioso, pretensioso, bárbaro e criminal. Dando-se asas à imaginação, ele foi acusado, entre outras peripécias, de tentar conquistar o Uruguai, Corrientes e o Rio Grande do Sul para garantir ao Paraguai uma saída ao mar! Outra sua ambição desmedida teria sido pedir em casamento uma das filhas de dom Pedro! Apologia e história viveram em total contubérnio por longas décadas.
 
 Sequer a historiografia de vocação revisionista nacional, impulsionada originalmente por poderosos intelectuais organizados sob a bandeira do PCB – Caio Prado Júnior, Werneck Sodré, Ruy Facó, Passos Guimarães etc. –, voltou-se sobre o tema para apontar as interpretações e reconstruções arbitrárias dominantes. Não raro, sugeriram aquele conflito como cadinho da constituição de novo exército, mais republicano e mais popular, fortemente responsável pela Abolição, em 1888, e proclamação da República, em 1889. Para essa interpretação, ao menos, algo de bom o conflito terrível teria deixado ao Brasil.
 
 Enquanto, desde o momento do conflito, avançavam na Argentina, no Uruguai e no Paraguai leituras revisionistas dessacralizantes, no Brasil a guerra fratricida seguiu sendo sisuda esfinge, repetindo monotonamente aos historiadores nacionais: Se me decifras, te devoro!
 
 Em 1979, no momento do lançamento da “Abertura lenta, gradual e segura”, que garantiu à ditadura ainda um lustro de vida, ela foi constrangida com a publicação pelo jornalista Julio José Chiavenato de reportagem histórica sobre a grande guerra do Prata. Com título chamativo, Genocídio americano: a guerra do Paraguai, o livro alcançou inesperado sucesso, sem contar com qualquer referência na grande mídia.
 
 A denúncia daquele conflito como crime do Império do Brasil e de seu exército, contra pequeno país que, segundo o autor, destoaria em todas as Américas pelo desenvolvimento econômico e social autônomo, em independência oposta ao imperialismo inglês, conquistou os corações de multidões de ávidos leitores. Eles também viram no livro um ajuste de contas com os malfeitos, disparates e hipocrisias praticados pelos altos oficiais das forças armadas no governo do Brasil, desde 1964. Vivíamos então os anos de poderoso renascimento do movimento sindical e social no Brasil.
 
 Imediatamente atacado pela grande imprensa, por escribas e intelectuais a serviço da ditadura, Genocídio americano realizou enorme estrago nas interpretações monopólicas e monolíticas da historiografia nacional sobre a grande guerra sul-americana, influenciando fortemente os manuais escolares, o ensino universitário, a própria produção historiográfica. Porém, não abriu no país ciclo de investigações revisionistas que poderia apoiar-se na importante bibliografia crítica platina.
 
 Quando do lançamento de Genocídio americano, construía-se a represa Itaipu, a partir de acordos com um Paraguai súcubo do Brasil, desde aquele conflito. Não apenas por isso, a memória da guerra era – e segue sendo – praticamente uma questão de Estado no Brasil. A dimensão político-ideológica de sua importância se expressa no fato de que praticamente todos os patronos atuais das forças armadas brasileiras consagraram-se no Paraguai, à exceção, é claro, dos da Aeronáutica. Não apenas por isso, foi lançado amplo movimento historiográfico de desconstrução e deslegitimação daquela leitura herética dos sucessos.
 
 Um impressionante fogo de artilharia foi aberto contra as defesas mais frágeis do livro ímpio, com destaque para a tese de guerra livrada pelo Império do Brasil, pela Argentina mitrista e pelo Uruguai florista quase exclusivamente por conta do poderoso imperialismo britânico. Posição defendida por alguns trabalhos platinos e internacionais e, havia muito, impugnada pelos autores revisionistas mais argutos e rigorosos. Entre outros senões, foram apontados múltiplos hiatos históricos e propostas apologéticas desmedidas sobre o Paraguai e Solano López, algumas avançadas já antes, durante e imediatamente após a guerra.
 
 Vinte anos mais tarde, sob pleno domínio da maré neoliberal que avassalou o mundo, Genocídio americano encontrava-se já no mais profundo dos infernos da historiografia nacional, para eterno olvido e uma mais fácil educação das novas gerações sob os preceitos de verdadeira restauração da velha historiografia nacional-patriótica, apenas requintada por historiadores profissionais, à sobra das benesses propiciadas pelo Estado.
 
Genocídio americano: a guerra do Paraguai, de J.J. Chiavenato, praticamente deixou de existir, totalmente rejeitado em suas teses de vieses revisionistas e como sugestão pioneira de novos temas, enfoques e fontes, até então desconhecidos, no Brasil. O seu inesperado sucesso foi apresentado como simples produto de tempos, de historiadores e de historiografia terceiro-mundista, esquerdista, marxista, superados pela nova historiografia da guerra do Paraguai, que se pretendeu despida de qualquer ressábio ideológico, ao retomar direta e indiretamente a defesa das glórias pátrias do Brasil e a justificativa de sua ação imperialista e colonialista no Prata.
 
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A revisão da revisão: o Genocídio americano, de J.J. Chiavenato, foi apresentado por Silvânia de Queiroz como dissertação de mestrado, em 23 de setembro de 2010, no Programa de Pós-Graduação em História da UPF (mestrado e doutorado), tendo como banca examinadora a dra. Carla Luciana Silva (Unioeste), a dra. Ana Luiza Setti Reckziegel (UPF) e o dr. Mário Maestri, orientador, (UPF).
 
 Nesse seu estudo, Silvânia de Queiroz volta-se com competência sobre o livro maldito, procurando desvelar, com os instrumentos da epistemologia histórica, as razões profundas de seu singular e inesperado sucesso, por além de seus importantes e indiscutíveis hiatos, tropeços e limitações factuais, históricos, historiográficos e metodológicos. Para tal, delineia o quadro geral do Prata, do Paraguai, da guerra e da historiografia platina, para melhor empreender o sentido da apresentação do conflito no Brasil, como narrativa historiográfica nacional-patriótica e a recepção da crítica a ela posta por Genocídio americano.
 
 Silvânia de Queiroz aborda o quadro geral no qual surgiu e foi consagrada a reportagem história de J.J. Quiavenatto. Historia também a recepção e combate do livro pelos ideólogos do Estado ditatorial, assim como as razões e muitos dos caminhos de seu estrondoso sucesso, com o qual o autor jamais sonhara. Por além dos indiscutíveis tropeços do livro, aborda Genocídio americano como fenômeno cultural, político e social, com enorme repercussão, que a autora estuda nos manuais escolares e entre as gerações atuais de historiadores, então jovens professores e estudantes quando do seu lançamento.
 
 Ao analisar os indiscutíveis hiatos do ensaio, produzido por jornalista sem formação histórica profissional, no contexto do olvido quase completo da guerra pela historiografia acadêmica da época, aponta para os importantes avanços por ele sugeridos, ao introduzir pioneiramente no Brasil, em forma singularmente tardia, a proposta de abandono das narrativas centradas na descrição apologética das grandes batalhas e feitos, em prol da análise do quadro geral diplomático, político, social etc.
 
 Por além das propostas ideológicas, Silvânia de Queiroz restabelece o importante e inarredável papel de Genocídio americano: a guerra do Paraguai, de J.J. Quiavento, nos limites assinalados, na cultura e na historiografia brasileira. Ainda que por linhas tortas.
 
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 QUEIROZ, Silvânia. Revisando a Revisão: Genocídio americano: a Guerra do Paraguai de J.J. Chiavenato. Porto Alegre: FCM Editora, 2014. 374 pp.
 
 
- Mário Maestri é historiador e orientador do Programa de Pós-Graduação em História UPF-RS. E-mail: maestri@via-rs.net
 
Fonte; Correio da Cidadania
 
 
 
 
 
 
 
 
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