Uma Carta Aberta

As trapalhadas de José Serra

13/10/2009
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Estimado Serra,
 
Você sabe que sou muito agradecido ao seu gesto solidário de negociar, em 1973, meu asilo na Embaixada do Panamá no Chile e transportar-me até ela enfrentando a violência dos golpistas chilenos. O fato de você naquele momento estar teoricamente protegido pela sua condição de funcionário internacional não diminuí em nada sua coragem pessoal ao ajudar a mim e a outros companheiros ameaçados pelos militares golpistas. Sobretudo, quando alguns dias depois, você mesmo teve que se “abrigar” (como o presidente Manuel Zelaya) na embaixada da Itália, de onde saiu posteriormente para os Estados Unidos. Dias duros aqueles, como os que vivemos também no Brasil em 1964.
 
Por isto mesmo me supreendem imensamente as suas declarações sobre as “trapalhadas” cometidas pelo governo brasileiro ao “abrigar” o presidente Zelaya para que pudesse encaminhar a luta política para retomar materialmente o cargo que nunca abandonou, pois todos os países membros das Nações Unidas o consideram, em reunião da Assembléia Geral desta instituição, como o presidente legal de Honduras.
 
É lamentável ver como vários políticos e colaboradores da grande imprensa brasileira, além de seus editorialistas, contestam esta impressionante decisão unanime. É impressionante ver o tratamento que se dá ao presidente eleito de uma república amiga aceitando versões abertamente mentirosas sobre uma suposta inconstitucionalidade de suas ações no poder que justificariam um golpe de Estado contra ele.
 
Vejamos algumas destas mentiras assumidas pelos políticos de seu partido e ao que tudo indica por você mesmo:
1- Segundo um jurista do próprio PT, Dr. Dalmo Dallari, por exemplo, em artigo publicado na Folha de São Paulo, o presidente Zelaya teria desobedecido ao artigo constitucional (inclusive, de caráter pétreo) que proíbe a reeleição em Honduras ao propor a realização de uma consulta popular, não vinculatória, durante as próximas eleições presidenciais (a famosa “4ª urna”), sobre a conveniência de convocar um plebiscito, este sim vinculatório, sobre a realização de uma Assembléia Constituinte em Honduras.
 
Portanto, a interpretação de que esta consulta conduziria a uma possível reeleição do presidente Zelaya é um absurdo lógico e jurídico pois já se estaria votando no novo presidente da República quando a população “opinaria” sobre a possibilidade de convocar um plebiscito. Era, pois, materialmente (e não só logicamente) impossível que tal consulta tivesse algo a ver com a possibilidade de reeleição do presidente Manuel Zelaya, como se insinua e se pretende converter em fato jurídico anticonstitucional. Zelaya nunca defendeu a sua reeleição e não propôs nenhuma ação neste sentido. Talvez se esteja tentando extrapolar de maneira absurda para o Presidente Zelaya as condutas de presidentes latino-americanos como Uribe na Colômbia, Fujimori no Peru e Fernando Henrique Cardoso no Brasil, entre vários outros, que sim conseguiram, desde o poder, reformas constitucionais para permitir suas reeleições.
 
Por que você aceitou estas mentiras Serra? Não vê que isto compromete seu partido e você pessoalmente com uma mentira reconhecida mundialmente? Isto sim me parece uma trapalhada.
 
2- No mesmo artigo, o antigo jurista do PT, professor Dalmo Dallari, convalida uma versão mentirosa dos graves acontecimentos em Honduras. Segundo ele o presidente Zelaya foi deposto pela Suprema Corte de Honduras. Não é verdade. O presidente Zelaya não foi “deposto” por ninguém. A Suprema Corte expediu uma ordem de prisão do mesmo depois que ele foi substituído pelo Sr. Micheletti, e expulso para Costa Rica. O ato de “substituição” e não de demissão consistiu no seguinte:
 
No dia 28 de junho, o Congresso de Honduras tomou conhecimento de uma carta falsa, lida pelo seu presidente Micheletti, na qual o Presidente Zelaya se demitia do seu cargo. Foi fundamentado nesta ação criminosa de falsificação que se decidiu dar posse, no seu lugar ao presidente do Congresso. Pretender que um ato fundado numa “falsificação ideológica” seja constitucional é uma afirmação indigna de qualquer constitucionalista. As várias “informações” sobre as “maldades” do Presidente Zelaya feitas pelos mais distintos cúmplices do golpe (Corte Suprema, etc.) não são atos de demissão e sim invenções para reforçar uma situação totalmente ilegal. Se houvesse algum ato legal de demissão nunca se teria necessitado uma carta falsa. Por sinal, o mesmo método tinha sido usado em 2002 no golpe contra Hugo Chávez.
 
Se se necessita uma “prova” de que a Suprema Corte não demitiu o presidente Zelaya, e nem poderia fazê-lo, tome-se o comunicado da mesma, emitido no dia 29 de junho, um dia depois da “substituição” do presidente por ato não identificado com a Suprema Corte:
 
“(…) Con fecha 29 de junio de 2009, a raíz de segundo requerimiento fiscal de fecha 26 de junio de 2009, presentado por el Ministerio Publico, contra el ciudadano José Manuel Zelaya Rosales, a quien se Ie acusa como responsable, a titulo de autor, de los delitos contra la forma de gobierno, traici6n a la patria, abuso de autoridad y usurpaci6n de funciones en perjuicio de la Administración Publica y el Estado de Honduras, la Corte Suprema de Justicia, por unanimidad de votos, ordeno se remitieron las actuaciones al Juzgado de Letras Penal Unificado, para que se continué con el procedimiento ordinario establecido en el Código Procesal Penal, en vista de que el ciudadano Zelaya Rosales a esta fecha ya no ostentaba el carácter de alto funcionario del Estado.” (os erros de digitação e castelhano são próprios do original que se pode consultar em:  http://www.poderjudicial.gob.hn/general/noticias/Comunicado_Especial.htm#)
 
Restaria a sempre repetida afirmação de que sim houve excesso em tirá-lo de sua casa de madrugada e de pijama. Fica sugerida a idéia de que se o tivessem tirado de manhã e já vestido estaríamos num plano constitucional, apesar de que a constituição hondurenha proíbe a extradição de seus cidadãos. Para políticos que compactuaram com o “banimento” e “deportação” de cidadãos brasileiros durante a ditadura militar, esta cláusula constitucional deve parecer exageradamente democrática... Você também acha isto Serra?
 
Em que consiste, pois as trapalhadas do governo brasileiro, Serra? Ter “abrigado” o presidente constitucional de Honduras na sua embaixada? Permitir que ele se manifeste e negocie o seu restabelecimento de seu cargo que o Brasil, a OEA, o Tratado do Rio, a Assembléia das Nações Unidas e o Conselho de Segurança da ONU reconhecem, esta seria a “trapalhada”?
 
Serra, você não vai conquistar a confiança do povo brasileiro com estes “argumentos”. Isto é “politicagem” (e não Política) da pior qualidade. Agora que a presença de Zelaya permitiu retomar o diálogo para a reconstitucionalização de Honduras, suas observações e as de seus aliados que, como vimos, estão até dentro do PT, se mostram uma grande “trapalhada”.
 
É uma pena Serra que você (como tantos outros) abandonou os ideais de nossa juventude para servir a causas tão mesquinhas. De qualquer forma, continuo agradecido a você por ajudar a salvar minha vida e a de meus parentes e companheiros que se “abrigaram”, como você terminou fazendo, nos territórios soberanos daqueles que usaram seu poder para salvar vidas humanas.
 
Do amigo, apesar de nossas diferenças,
 
Theotonio Dos Santos
https://www.alainet.org/pt/active/33675
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