Mala captus, bene detentus

Trata-se do direito interno aplicado para justificar detenções e sequestros extraterritoriais, ações incompatíveis com o direito internacional consuetudinário, com a Carta de DDHH.

10/04/2020
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Este artigo é uma análise-resposta ao ocorrido no dia 26 de março passado quando o Procurador Geral dos EUA, sem apresentar uma única prova, enquadrou o Presidente da Venezuela e outros importantes representantes do estado pelos crimes de narcoterrorismo, tráfico de armas e corrupção. Nicolás Maduro é acusado de conspirar junto com as extintas FARC "para inundar os EUA com cocaína e prejudicar a saúde e o bem-estar de nossa nação". Isso sem mencionar a Colômbia, seu sócio político, país responsável por cerca de 70% da cocaína produzida no mundo, segundo o informe da ONU. Os EUA é o maior consumidor de Coca do Planeta.

 

Trata-se de uma ilustrativa leitura para esses tempos de quarentena e que nos faz lembrar os processos vividos pelo ex-presidente Lula no Brasil, pela ex-presidenta Cristina na Argentina e pelo ex-vice-presidente do Equador, Jorge Glass (ainda preso injustamente), num processo recentemente reavivado pela insólita condenação (de novo sem provas), aplicada no dia 7 de março ao ex-presidente Rafael Correa do Equador, na qual foi condenado por um Tribunal da Corte Nacional de Justiça a oito anos de prisão, num julgamento realizado absurdamente em meio à terrível tragédia que vive aquele país pela epidemia do Covid-19, onde centenas de pessoas mortas pelo vírus tem seus corpos abandonados nas ruas até que possam ser recolhidos. Esperamos que seja do interesse de juristas e de todas as pessoas que se preocupam com os direitos políticos e sociais, o respeito às leis internacionais e à soberania dos povos.

 

Não se deve esquecer que o Estado de direito norte-americano tem sido caraterizado como um Estado de direito judicial (Tocqueville).  Seu modelo constitucional de 1787, marcado pela independência do continente, foi um claro protesto contra as leis do Parlamento britânico. Não partilhava o enfoque do legislador virtuoso e onipotente, cego, surdo e mudo frente às transformações sociais. Assume a Constituição como pacto, ato de manifestação de vontade superior de maneira consciente.

 

O lema desse constitucionalismo estadunidense poderia ser o triunfo da razão sobre a história, frente o naturalismo determinista da história dos ingleses. Ao contrário, o naturalismo pensado nos EUA é uma obra premeditada que se quer perfeita e definitiva, enfrentada a natureza consuetudinária e insegura de uma ordem baseada na tradição. Frente a uns privilégios singulares decantados para os ingleses no transcurso do tempo, os direitos naturais nos EUA são conquistados de uma vez e para sempre. Enfim, frente à legitimidade fornecida pelo passado, porque é velho, a Constituição concebida no Estado de direito norte-americano repousa na legitimidade daquilo que se proclama racional, descoberto pelas luzes. (Zaglebelsky).

 

Herança constitucional assumida desde nossos países como benéfica:  figuras como o método de controle de constitucionalidade, Doutrina da Judicial Review of Legislation, em Marburyvs Madison, fundamenta o poder que tem qualquer juiz de aplicar controles aos atos estatais, à luz da Constituição, privilegiando-a ou como o caráter vinculante das decisões destes juízes em resguardo da Constituição, denominada doutrina do precedente ou stare decisis.

 

Juiz criador de direito. Assim aconteceu quando eliminou restrições ao voto feminino, a segregação racial, ou quando protegeu o plano de recuperação de Roosevelt em 1929 para enfrentar a crise econômica do momento. Juiz constitucional, não como boca da lei, senão como ator social que acompanha as mudanças sociais ou as impulsiona.

 

Sem contrapesos ou limites, essa herança benéfica do constitucionalismo norte-americano também tem suas sombras. Uma delas é o precedente legal conhecido como Mala captus, bene detentus: uma captura ilegal, ilegítima, pela força, que vira uma em detenção válida e, consequentemente, em julgamento válido também.

 

Precedente que um duvidoso Promotor, submetido a investigações por sua participação na justificativa legal da detenção de Noriega no Panamá e sua consequente invasão, pretende aplicar a um grupo de venezuelanos, judicializando-os. Nefasto antecedente para o constitucionalismo e para as relações internacionais, já em 1886 (Kervs Illinois), onde tribunais, com a conivência de sua Chancelaria, toleravam e alentavam o sequestro como mecanismo “legítimo” de captura de supostos perpetradores de crimes contra esse país, mas protegidos em território estrangeiro. Exemplos sobram: Frisbievs Collins (1952), Sosa vs Alvarez-Machain (2004), entre outros.

 

Ilógica e ilegal é conduta aplicada às autoridades venezuelanas. Trata-se do direito interno aplicado para justificar detenções e sequestros extraterritoriais, ações incompatíveis com o direito internacional consuetudinário, com a Carta de DDHH e inclusive com a Quarta Emenda de sua própria Constituição. Tudo frente o olhar complacente da ONU, espantalho da suposta proteção e união das nações, que merece desaparecer para dar passo a uma verdadeira união democrática de nações.

 

Grave erro da administração norte-americana, tomada por neoconservadores antipatriotas e globalistas que, junto com Obama, destruíram sua economia. Inimigos do povo norte-americano, e também do povo venezuelano. Somos povos de patriotas, não de globalistas niilistas.

 

Lembrando a significativa contribuição constitucional feita desde os EUA, afastando tristes precedentes como o de “mala captus, bene detentus”, compreendamos que o equilíbrio do mundo precisa uma pátria estadunidense com equilíbrio interno (Jalife). Façamos grandes nossas nações, sem esmagar ninguém.

 

Desde Venezuela, exigimos respeito ao direito internacional, às instituiçõese à nossa liderança honesta e lutadora, como também, uma justiça não subordinada aos amos do poder, em flagrante desrespeito às leis por pura animosidade pessoal. É hora de parar a martirizacão e perseguição de venezuelanos e venezuelanas. Sem cometer nenhum crime, somos objeto de castigos e sanções.

 

Nessa amarga hora planetária o globalismo não só aspira a diminuição do Estado-Nação e da população mundial, senão a sua aniquilação, convertendo-se num sujeito imoral de infinitas pretensões moralizadoras. Juntemos esforços para evitar o esvaziamento moral, financeiro, político e social, expressado num catálogo de normas que deixam de lado a visão ética e bondosa, alcançada desde a democracia e a humanidade. Hoje é tarefa de todos sermos melhores.

 

- Maria Alejandra Díaz é advogada constitucionalista venezuelana, integrante da Assembleia Nacional Constituinte (ANC).

 

Tradução: Anisio Pires

 

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/205826

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