Entrevista de Dom Pedro Casaldáliga

Onde não há utopia, não há futuro

09/01/2009
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Dom Pedro Casaldáliga tem sido uma voz firme na defesa de que, para o socialismo novo, a utopia continua.  E esclarece: a utopia de que falamos, a compartimos com milhões de pessoas que nos precederam, dando inclusive o seu sangue, e com milhões que hoje vivem e lutam e marcham e  cantam.  Para ele, esta utopia está em construção, somos operários da utopia.

Mesmo convivendo com o “irmão Parkinson”, como ele
mesmo define a doença de Parkinson –uma enfermidade neurológica que afeta os movimentos da pessoa, causa tremores, lentidão de movimentos, rigidez muscular, desequilíbrio além de alterações na fala e na escrita– carinhosamente respondeu às nossas perguntas.  E, nesta entrevista ao Brasil de Fato, Casaldáliga fala do “absurdo criminal de constituir a sociedade em duas sociedades de fato: a oligarquia privilegiada, intocável, e todo o imenso resto de humanidade jogada à fome, ao sem-sentido, à violência enlouquecida”.  Defende que, hoje, só a participação ativa, pioneira, de movimentos sociais pode retificar o rumo de uma política de privilégio para uns poucos e de exclusão para a desesperada maioria.  E adverte: o latifúndio continua a ser um pecado estrutural no Brasil
e em toda Nossa América.

Bras
il de Fato – Como o senhor tem visto a devastadora crise que já afeta todos os países e principalmente a classe trabalhadora?

Dom Pedro Casaldáliga –
Com muita indignação e revolta; com uma sensação de impotência e ao mesmo tempo a vontade radical de denunciar e combater os grandes causadores dessa crise.  Esquecemos fácil demais que a crise fundamentalmente é provocada pelo capitalismo neoliberal.  Irrita ver governantes e toda a oligarquia
justificando que as economias nacionais devam servir ao capital financeiro.  Os pobres devem salvar economicamente os ricos.  Os bancos substituem a mesa da família, as carteiras da escola, os equipamentos dos hospitais...

Eu estava comentando ontém [19 de dezembro] com uns companheiros de missão que a avalanche de demissões acabará justificando uma avalanche de assaltos, por desespero.  Está crescendo cada dia mais o absurdo criminal de constituir a sociedade em duas sociedades de fato: a oligarquia privilegiada, intocável, e todo o imenso resto de humanidade jogada à fome, ao sem-sentido, à violência enlouquecida.  Fecham-se as empresas, quando não conseguem um lucro voraz, e se fecha o futuro de um trabalho digno, de uma sociedade verdadeiramente humana.

- Como o senhor analisa o papel dos movimentos sociais frente à atual conjuntura?

Já faz um bom tempo que, sobretudo no Terceiro Mundo (concretamente no nosso Brasil, na Nossa América), se vem proclamando por cientistas sociais e dirigentes populares que hoje só a participação ativa, pioneira, de movimentos sociais pode retificar o rumo de uma política de privilégio para uns poucos e de exclusão para a desesperada maioria.  Os partidos e os sindicatos têm ainda sua vez; devem conservá-la ou reivindicá-la.  Sindicato e partido são mediações políticas indispensáveis; mas o movimento social organizado, presente no dia-a-dia do povo, é sempre mais urgente, como uma espécie de “vanguarda coletiva”.

Diante deste cenário, na sua avaliação, quais são as alternativas para os pobres do mundo hoje?

A alternativa é acreditar mesmo que “Outro Mundo é Possível” e se entregar individualmente e em comunidade ou grupo solidário e ir fazendo real esse “mundo possível”.  O capitalismo neoliberal é raiz dessa crise e somente há um caminho para a justiça e a paz reinarem no mundo: socializar as estruturas contestando de fato a desigualdade socioeconômica, a absolutização da propriedade e a própria existência de um Primeiro Mundo e um Terceiro Mundo, para ir construindo um só Mundo, igualitário e plural.  Com frequência respondo a jornalistas e amizades do Primeiro Mundo que somente a construção de um mundo só (e não dois ou três ou quatro) poderá salvar a humanidade.  É utopia, uma utopia “necessária como o pão de cada dia”.  Onde não há utopia não há futuro.

No próximo mês de janeiro o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) completa 25 anos.  O senhor, como incansável defensor dos camponeses pobres e inspirador do movimento, vê hoje a luta pela terra de que maneira?

O MST completa, então, seus 25 anos de luta, de enxada, de poesia, de profecia ao pé da estrada e da rua.  Segundo muitos analistas o MST está sendo o movimento popular melhor organizado e mais eficaz “de fato”.  Sabe muito bem o MST que “a terra é mais que terra”, e por isso está se volcando, pertinaz, esperançado, na conquista comunitária da terra, na educação de qualidade, na saúde para todos, numa atitude permanente de solidariedade, em colaboração gratuita e fraterna com todos os outros movimentos populares.

Que mensagem o senhor diria hoje para os milhares de trabalhadores e militantes do MST espalhados por todo o país?

Os 25 anos do MST são uma data a celebrar, dando graças ao povo da terra e ao Deus da terra e da vida, reafirmando os princípios que norteiam o objetivo e a prática do MST.  Recordando a palavra de Jesus de Nazaré: “não podeis servir a Deus e ao dinheiro”; não podeis servir ao latifúndio e à reforma agrária.  O latifúndio continua a ser um pecado estrutural no Brasil e em toda Nossa América.

O senhor tem dito que “Para um socialismo novo, a utopia continua”.  Quais devem ser os caminhos (ou o caminho) para seguirmos na construção desse socialismo novo e garantir sempre que a utopia continue?

Que o MST continue a ser um abanderado desse “socialismo novo” e de uma verdadeira reforma agrária e agrícola, inserido na Via Campesina, na procura e no feitio de uma nova América.  Que mantenha viva e produtiva de esperança a memória dos nossos mártires, sangue fecundo, os melhores companheiros e companheiras da caminhada.  Que siga entrando, plantando, cantando, contestando, com aquela esperança que não falha porque tem inclusive a garantia do Deus da Terra, da Vida, do Amor.

“O latifúndio continua a ser um pecado estrutural
no Brasil e em toda Nossa América
Pedro Casaldáliga, bispo emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia

Brasil de Fato - de 1º a 7 de janeiro de 2009 – edição 305
http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/entrevistas/onde-nao-ha-utopi...

https://www.alainet.org/pt/articulo/131782
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