A crise que gostaríamos de viver

03/07/2014
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Visões apocalípticas são recorrentes desde que a China iniciou as reformas de seu socialismo, em 1978. Também não é novidade o esforço do país para reduzir seu ritmo de crescimento a um patamar próximo de 7% ao ano. Se mantidos em dois dígitos, esse índice pressiona exageradamente a produção e a importação de matérias-primas e os meios de transporte, resultando em tensões inflacionárias indesejáveis. Tais esforços finalmente estão tendo sucesso
 
Não são poucos os analistas ocidentais que afirmam ter certeza que a China está próxima de uma crise sem precedentes. Baseiam-se no fato de que o ritmo de crescimento da economia do país baixou para 7,5%, em 2013, e tende para o índice de 7,2% em 2014. Além disso, não acreditam que seu mercado interno seja capaz sequer de sustentar o consumo do ritmo acima. Ainda segundo eles, o consumo na China representa apenas 36% do PIB, cerca da metade do registrado nos Estados Unidos e na Europa Ocidental. Isso refletiria um baixo rendimento familiar. Em tais condições, a crise recessiva chinesa seria questão de meses.
 
Visões apocalípticas, assim como o ceticismo sobre os planos chineses de desenvolvimento, têm sido recorrentes desde que a China iniciou as reformas de seu socialismo, em 1978. Por outro lado, não é novidade o esforço do país, desde o final dos anos 1990, para reduzir seu ritmo de crescimento a um patamar próximo de 7% ao ano. Ritmos de crescimento de dois dígitos pressionavam exageradamente a produção e a importação de matérias-primas e os meios de transporte, resultando em tensões inflacionárias indesejáveis. Tais esforços, por mais de dez anos, finalmente estão tendo sucesso, parcialmente em virtude da crise mundial que atingiu as grandes economias capitalistas.
 
Apesar disso, mesmo baixando seu crescimento, a China continua mantendo a posição da economia que mais cresce no mundo. Paradoxalmente, confronta-se tanto com as previsões de uma crise recessiva profunda quanto com a possibilidade de ultrapassar a economia norte-americana, pela paridade de poder de compra (PPP), antes do que se supunha. A metodologia de PPP foi instituída pelo FMI, em 2005, para entender como a China podia crescer a altas taxas anuais apesar dos salários relativamente baixos em termos internacionais. Através do Programa Internacional de Comparação, o corpo técnico do FMI finalmente entendeu a diferença entre salários nominais e salários reais.
 
Pela PPP, entre 2005 e 2011, a economia chinesa passou de 43% para 87% da norte-americana. Esse salto na participação da economia mundial, tendo como parâmetro a dos EUA, a maior do mundo, não foi apenas da China. Tendo por base a mesma metodologia de medição do PIB pela PPP, desde 2011 ocorreu uma transformação radical no cenário internacional, com o aumento do peso relativo dos países emergentes. A Índia quase duplicou seu PIB como proporção do norte-americano nesse período, para 37,1%, o que a colocou à frente do Japão, cuja economia representava 28,2% da dos EUA. O Brasil cresceu cerca de um terço, de 12,8% para 18,1%, tornando-se a sétima economia mundial, à frente da francesa e da inglesa.
Levando em conta esse processo, nas projeções do Banco Mundial e do FMI o PIB chinês, pela PPP, alcançaria US$ 22,4 trilhões em 2019, superando o dos EUA em US$ 300 bilhões. No entanto, o crescimento da economia norte-americana apresenta índices inferiores a 3% ao ano, apontando a possibilidade de a China se tornar a maior economia do mundo, em termos de PPP, em 2014, se mantiver o ritmo de 7% a 7,5%. Para os EUA, a mudança representará a perda da liderança detida desde 1872.
 
Apesar disso, as autoridades chinesas têm alertado que o índice de PPP é apenas um dos diversos indicadores econômicos e que a China continua sendo um país em desenvolvimento. Elas reiteram que nos outros indicadores, como o PIB nominal (paridade entre moedas), a economia chinesa permanece sendo metade da norte-americana, talvez só a superando por volta de 2030. Em termos de PIB per capita, o país ainda está longe de alcançar os mais avançados, mesmo quando medido em PPP. A renda per capita chinesa alcançou US$ 10 mil, um quinto dos US$ 50 mil dos norte-americanos e um pouco abaixo dos US$ 13,46 mil do PIB per capita do Brasil.  
 
A China também não completou ainda seu processo de transição de uma economia baseada principalmente nas exportações para uma economia baseada principalmente no mercado interno. O consumo no país representa metade do consumo nos Estados Unidos e na Europa Ocidental. Embora alguns analistas ocidentais considerem que tal nível baixo reflete um baixo rendimento familiar, os analistas chineses acusam sobretudo a elevada taxa de poupança doméstica como responsável pela baixa participação do consumo em seu PIB.
 
A elevação no rendimento familiar chinês tem ocorrido através dos aumentos salariais e do contínuo deslocamento de trabalhadores agrícolas para empregos nas cidades, com rendas salariais maiores. Em 2013, pela primeira vez na história do país, a população urbana ultrapassou a rural na participação no total da população chinesa. O ritmo de crescimento de 7% também está articulado à geração de cerca de 10 milhões de postos de trabalho por ano, de modo a garantir o contínuo aumento da massa salarial e, portanto, do poder de compra. Assim, o problema da redução da taxa de poupança das famílias chinesas tende a se tornar um dos pontos-chave da expansão do mercado interno.

Por outro lado, as obras de infraestrutura estão urbanizando as áreas rurais e estimulando o mercado interno de emprego e consumo. Elas incluem a interligação do país através de sistemas modernos de energia e transportes, a implantação de serviços públicos, principalmente de educação e saúde, e programas de proteção e recuperação ambiental. Paralelamente, o programa de inovação científica e tecnológica pretende transformar o sistema industrial chinês do made in China em made by China. Em outras palavras, a China procura manter um ritmo de expansão que lhe permita realizar taxas crescentes de emprego, elevar a renda, fortalecer o mercado interno e dar um salto tecnológico.
 
Não é por acaso que a taxa de importações da China mantém um crescimento anual de 7%. A tendência é que aumente sua demanda por alimentos e diversos outros produtos industriais, minerais e agrícolas. Em 2013, as importações do país se elevaram a 10,8% das importações mundiais. Em sentido inverso, as empresas chinesas devem continuar seu processo de exportação de capitais e produtos, à medida que se amplie a acumulação interna, se elevem os salários do mercado interno de trabalho e forem sendo reduzidas as taxas médias de lucro. Ao mesmo tempo em que sua participação nas importações mundiais deverá continuar subindo, a China deve manter a posição de maior exportador entre todos os países. Apesar da crise mundial, suas vendas cresceram 8% em 2013, com participação de 11,8% nas exportações globais.
 
No comércio com o Brasil, de acordo com o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), a China totalizou US$ 83,3 bilhões em 2013, um aumento de 10% em relação a 2012. As exportações brasileiras somaram US$ 46 bilhões, um acréscimo de 12%, enquanto as importações alcançaram US$ 37,3 bilhões, 9% a mais que em 2012, com um saldo US$ 8,7 bilhões a favor do Brasil. Esses resultados representaram um crescimento de 8% em relação ao pico de 2011 no comércio entre os dois países, que foi de US$ 77,1 bilhões.
 
Em 2013, a expansão das exportações brasileiras deveu-se principalmente às vendas de soja, que aumentaram cerca de 40%, em volume e valor, em comparação com 2012. As vendas desse grão ultrapassaram as de minério de ferro e de óleos brutos de petróleo. As três juntas representaram 81% de todas as exportações do Brasil para a China. Paralelamente, cresceram as exportações brasileiras de celulose (27,1%), açúcares (62,7%) e couros e peles (26,3%), enquanto caíram as de aeronaves (64,8%), carne de frango e óleo de soja. Portanto, há uma séria lacuna nas exportações de manufaturados para a China, relacionada com a baixa competitividade da indústria brasileira.
 
Em 2013, as importações brasileiras oriundas da China concentraram-se em máquinas e aparelhos elétricos e mecânicos, correspondendo a 50,9% do total. As compras de máquinas e aparelhos elétricos cresceram 10,8%, enquanto as de máquinas e aparelhos mecânicos subiram 13,7%. Também registraram aumento as importações de produtos químicos orgânicos (21,6%), veículos automóveis e tratores (11,9%). Aqui falta uma avaliação mais precisa sobre a importação de bens de capital capazes de contribuir decisivamente para a reindustrialização brasileira e para a melhoria da competitividade de seus produtos industriais.   
 
Em relação à entrada dos investimentos chineses no Brasil, não há uma situação extraordinária. Esses investimentos ainda estão defasados em relação aos realizados na Ásia, África, América do Norte, Europa e no resto da América do Sul. Estão longe de corresponder ao potencial investidor chinês e não tiveram um impacto macroeconômico correspondente na industrialização brasileira. Apesar da associação de duas petroleiras chinesas com a Petrobras para a exploração e produção do campo de Libra, a maior parte dos investimentos chineses esteve relacionada à troca de controle entre empresas estrangeiras. Exemplos disso foram a compra da Repsol Brasil pela Sinopec, de 40% de um campo de petróleo da norueguesa Statoil pela Sinochem e de sete concessionárias de energia da espanhola Abengoa pela State Grid.
 
A China tem uma política industrial explícita, de curso rápido e prazos determinados de vigência, com projetos executivos prontos para a atração de investimentos destinados ao adensamento de suas cadeias produtivas e à elevação do nível científico e tecnológico de suas empresas. Entre estas se destacam as estatais de nível nacional ou central, que compreendem mais de 120 grandes corporações dos setores estratégicos da economia chinesa – o que reflete uma das características básicas de sua economia.
 
O fato de mais de 90% do capital investido pela China no Brasil ser proveniente de empresas estatais daquele grupo estratégico reflete o quanto tais investimentos fazem parte de uma política de Estado de longo prazo. Em tese, isso propicia condições muito favoráveis para que o Brasil aproveite as potencialidades chinesas para intensificar sua industrialização – ou sua reindustrialização –, o que ajudaria o país a alcançar taxas de crescimento de 5% a 7% ao ano. E talvez nos permitisse vivenciar uma “crise” idêntica à que a China está sendo acusada de enfrentar com seu crescimento anual de “apenas” 7% a 7,5%.  
 
- Wladimir Pomar é escritor, integra o Conselho de Redação de Teoria e Debate
 
Teoria e Debate, Edição 126, 03 julho 2014
 
https://www.alainet.org/pt/articulo/86906
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