Outra vez a China

19/08/2015
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Como acontece de tempos em tempos, a China voltou negativamente ao noticiário. Internacionalmente, desta vez, porque as bolsas de Xangai e Shenzhen tiveram uma bolha especulativa, porque o yuan foi desvalorizado e porque as taxas de crescimento deverão se manter baixas em “apenas 7% ao ano”.

 

Em termos nacionais, afora isso, porque as relações do Brasil e outros países em desenvolvimento com a China conformariam uma ligação quase colonial, como mercados cativos supridores de matérias-primas para aquele país. Na prática, além de faltar um passo para apresentarem a China como o maior inimigo desses países e da humanidade, algumas dessas interpretações aproveitam a ocasião para criticar o modelo de desenvolvimento industrial capitalista chinês, que seria predador e o principal fator das mudanças climáticas mundiais.

 

Em relação à China nunca é demais lembrar que ela jamais chegou a ser uma economia dominada pelo mercado, embora este tenha aparecido cedo em sua história. A Rota Terrestre da Seda para o ocidente passou a ser trilhada por caravanas de mercadores chineses da dinastia Han e de outras nacionalidades, especialmente árabes e turcos, desde o século 2 antes de nossa era. Nos séculos 14 e 15, frotas oceânicas chinesas navegavam pela Rota Marítima da Seda, negociando com povos do sudeste da Ásia, Índia, Golfo Pérsico e África Oriental. A essa altura, os chineses já construíam embarcações com cascos estanques, lemes e velas triangulares, cujas tripulações se orientavam por meio de bússolas.

 

Ou seja, antes dos europeus, os chineses realizaram um mercantilismo que, embora limitado ao sudeste do Oceano Pacífico e ao Oceano Índico, lhes permitiu acumular grandes riquezas através da venda de seus artesanatos e manufaturas de seda, laca, cerâmicas e porcelanas. Tal riqueza poderia ter se transformado em “capital” se a China houvesse revolucionado sua agricultura, expropriado seus camponeses e os tornado trabalhadores livres para vender sua força de trabalho para os comerciantes manufatureiros. No entanto, o sistema feudal centralizado, com mais de 1.500 anos de existência, foi mais forte e se impôs aos mercadores, impedindo que a China ingressasse no sistema capitalista antes dos europeus.

 

A Rota da Seda marítima foi desativada, a esquadra chinesa destruída, a riqueza entesourada. E a dinastia Ming foi incapaz de resistir aos manchus, que invadiram a China, instauraram a dinastia Qing e consolidaram a regressão feudal. Tal regressão e o atraso técnico da China a tornaram incapaz de enfrentar a segunda onda colonial europeia, realizada pelas novas potências industriais, a partir do século 19. Entre 1840 e 1949, a China viveu sob os domínios manchu e dessas potências capitalistas, às quais fez concessões territoriais, alfandegárias e extraterritoriais para que elas extraíssem as matérias-primas minerais e agrícolas de que suas indústrias necessitavam.

 

Para livrar-se desses domínios, os chineses realizaram, entre 1864 e 1949, inúmeras revoltas, tendo por base fundamental o campesinato. Dentre elas destacaram-se as duas primeiras guerras civis revolucionárias, entre 1924 e 1937, a guerra de resistência contra a invasão japonesa, entre 1937 e 1945, e a terceira guerra civil revolucionária, entre 1947 e 1949.

 

Entre 1950 e 1957, os chineses implementaram a reforma agrária e superaram os três grandes males (fome, desemprego e milhões de sem-teto). Após isso, fizeram várias tentativas para industrializar o país, desenvolver suas forças produtivas e construir uma civilização material e culturalmente elevada, sem passar pelos males do mercado e do capitalismo.

 

Promoveram o Movimento das Cem Flores, para corrigir os desequilíbrios entre a indústria pesada e a agricultura e a indústria leve. Jogaram-se no Grande Salto Adiante para desenvolver a indústria do aço e as áreas irrigadas. Planejaram as Quatro Modernizações, que pareceram a muitos uma imensa concessão ao capitalismo e ao mercado. E mergulharam, em oposição àquelas modernizações, na Revolução Cultural, entre 1966 e 1976.

 

Essa foi a maior tentativa massiva até então conhecida pela humanidade para, através da intensa mobilização popular, ideológica e política, desenvolver as forças produtivas, estabelecer relações de produção e de vida igualitárias e promover a democracia direta. Seus resultados foram um baixo desenvolvimento das forças produtivas e da produtividade, o aumento da escassez, em parte produzido também pelo rápido aumento da população, uma regressão cultural causada pelo fechamento das universidades e danos à democracia popular.

 

O igualitarismo obtido teve como base 400 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza e, como teto, 700 milhões de pobres. A experiência de dez anos de Revolução Cultural demonstrou que não é possível socializar as relações de produção sem ter, por sustentação, forças produtivas (meios de produção e força de trabalho) técnica e cientificamente desenvolvidas. Os chineses tiveram de cair na realidade, já prevista por Marx.

 

O alto desenvolvimento técnico e científico das forças produtivas é uma tarefa histórica do capitalismo e dos instrumentos que herdou das formações históricas anteriores e que elevou a um novo patamar. Isto é, a propriedade privada, as relações assalariadas, a indústria e o mercado. Por outro lado, através da própria experiência, o capitalismo sabia que esse modo de produção gera, constantemente, experiências de socialização, tanto na produção quanto na cultura e na política. E que suas crises o levam a apelar ao Estado, dando-lhe autonomia para salvar o sistema do desastre de sua anarquia produtiva.

 

Em outras palavras, o Estado pode, ao mesmo tempo, desenvolver instrumentos econômicos socialistas e se impor aos capitalistas e ao mercado para realizarem um desenvolvimento menos caótico das forças produtivas. Assim, foi com base na combinação do rescaldo de sua Revolução Cultural, das crescentes dificuldades econômicas do socialismo soviético, das crises do capitalismo e de sua restruturação nos anos 1970, especialmente dos Estados Unidos, e das previsões de Marx sobre a transição do capitalismo para o comunismo que os chineses discutiram suas experiências e decidiram empreender reformas e abertura em seu socialismo, a partir de 1978.

 

Essas reformas têm tido como métodos básicos o passo a passo, sem choques, e experimentações diversas antes de adotar medidas e generalizá-las. O mercado é tomado como indispensável para a determinação do cálculo econômico (demandas, ofertas e preços) e para o revolucionamento das forças produtivas. Nele atuam as empresas estatais, como instrumentos do Estado para orientar o desenvolvimento econômico e social e para conquistar superioridade na competição com as outras formas de propriedade (privadas e sociais). Os monopólios, sejam estatais, sejam privados, não são admitidos porque tendem a promover o congelamento da concorrência, ou da competição, e portanto estimulam a burocratização e a estagnação das forças produtivas.

 

Desse modo, na economia o Estado tem o papel de: planejar a longo prazo; desenvolver projetos macroeconômicos específicos; atuar economicamente no mercado através das empresas estatais, que por sua vez possuem autonomia para competir entre si e com as empresas privadas; atuar econômica e administrativamente sobre o mercado para garantir preços básicos baixos para o conjunto da população; atuar sobre os juros para ampliar os investimentos produtivos; atuar sobre o câmbio para garantir preços competitivos no mercado internacional; atrair investimentos externos no sentido de adensar suas cadeias produtivas e garantir a transferência de inovações científicas e tecnológicas.

 

Nas diferentes áreas sociais o Estado deve: investir pesadamente em educação e em pesquisa e desenvolvimento; garantir o enriquecimento em ondas do conjunto da população; universalizar os serviços públicos de saúde e atendimento médico; ampliar a formação cultural de modo a garantir que, paralelamente à construção de uma nova civilização material, seja edificada uma nova civilização cultural.

 

Esse é o atual sistema socialista chinês. Nele, o Estado e seus instrumentos econômicos e administrativos desempenham papel planejador e diretor no processo de desenvolvimento. Eles operam no sentido de combinar o desenvolvimento social e cultural com o desenvolvimento econômico e combinar a cooperação e o conflito entre as formas sociais e privadas de propriedade. Depois de mais de dez anos de experiências de reforma e abertura, tal sistema foi conceituado, em 1994, como “socialismo de mercado com características chinesas”.

 

Ou seja, não é um socialismo para servir de padrão para ninguém, já que as outras nações que pretendam ingressar em caminhos idênticos possuem características históricas próprias e podem pretender seguir por outros caminhos de transição. Além disso, os chineses reiteraram que se encontram na fase primária da construção socialista. E que tal construção, material e cultural, talvez tenha de atravessar décadas ou mais até alcançar sua fase superior.

 

Afinal, o socialismo chinês ainda enfrenta inúmeros problemas. Há corrupção nos mais diferentes níveis de governo. O desenvolvimento regional ainda é muito desigual. O enriquecimento individual e familiar também é desigual, embora cerca de 800 milhões de pessoas tenham sido elevadas da situação de pobreza para a que comumente se chama de classe média. À poluição herdada de milênios de exploração dos solos e das águas juntou-se a poluição da construção industrial. O produto nacional bruto (PNB) continua menor que o produto interno bruto (PIB) em virtude da grande participação das empresas estrangeiras em sua economia. A grande acumulação de reservas exige que a China exporte capitais, seja na forma de investimentos de empresas chinesas no exterior, seja na forma de empréstimos externos. E a democratização é paulatina e mais vagarosa do que seria desejável.

 

Além disso, a China se confronta com problemas internacionais sobre os quais tem pouca ou nenhuma influência. Ela necessita de paz por longo prazo para poder se desenvolver plenamente, mas se vê obrigada a investir na indústria bélica para se precaver. Necessita de multipolaridade para evitar ser tomada como único perigo ao capitalismo, e por isso precisa investir e ajudar outros países a se desenvolver e a desempenhar um papel mais ativo na arena internacional. Tem necessidade de matérias-primas minerais e agrícolas, mas isso às vezes é tomado como uma ação de tipo colonial, embora a China sempre procure obtê-las através do mercado internacional e jamais tenha se utilizado de canhoneiras para garantir sua obtenção.

 

Olhando em perspectiva, bolhas especulativas nas bolsas de Xangai e Shenzhen, valorizações e desvalorizações do yuan, taxas de crescimento de 7% ao ano, desemprego de 4% ao ano, guerra constante contra corruptores e corruptos, desenvolvimento regional desigual, enriquecimento individual e familiar desigual, presença residual de bolsões populacionais abaixo da linha da pobreza, ou na pobreza, poluição, democratização paulatina e outros problemas internos talvez ainda se mantenham na China por décadas. Num país com tamanha dimensão territorial, populacional e histórica, seria pedir milagres querer resolver seus problemas estruturais em menos de cem anos.

 

Para complicar, a China também não está imune às loucuras do capitalismo em crise. Nem depende dela que cada um dos países com os quais mantém relações diplomáticas, econômicas e comerciais tenha seus próprios planos e projetos de desenvolvimento e coopere e/ou compita com ela no mercado internacional. Ela continuará tendo necessidade de matérias-primas minerais e agrícolas, e depende de quem as tem aproveitar-se disso para investir no próprio desenvolvimento industrial, como é o caso do Brasil.

 

O problema aqui reside em que há poderosas correntes contrárias à retomada da industrialização brasileira. Umas, na utopia de que a desurbanização, a agricultura familiar e o modo indígena de tratar a natureza serão capazes de resolver os problemas nacionais. Outras, com o objetivo de impedir o surgimento de novos concorrentes internos e internacionais e manter o Brasil subordinado aos ditames dos oligopólios estrangeiros aqui implantados, assim como os do sistema financeiro. Todas se contrapõem a que o Brasil possua planos gerais e projetos executivos voltados para a industrialização e que atraiam investimentos chineses para sua efetivação.

 

Por outro lado, como os chineses, na ausência de tais planos e projetos, procuram investir em áreas de seu próprio interesse, fica mais fácil chamá-los de investidores capitalistas interessados na exploração das riquezas brasileiras, embora, em comparação com os investimentos das potências capitalistas no Brasil, participem apenas com um pequeno percentual. Em outras palavras, o Brasil não subordina suas relações econômicas aos projetos nacionais, não aproveita suas vantagens competitivas para importar bens de capital e industrializar-se nem tem projetos para disputar segmentos do crescente e imenso mercado chinês.

 

Resta, para finalizar, a dúvida sobre se o socialismo de mercado com características chinesas será mesmo o caminho de transição do capitalismo ao comunismo na China. Isso, somente a prática e a luta de classes poderão responder. Da mesma forma que a prática demonstrou que o socialismo de tipo soviético, com estatização total, é inviável, somente a prática poderá dizer se países atrasados do ponto de vista capitalista poderão superar o capitalismo através de longas transições socialistas de mercado, com características nacionais.

 

Por isso, independentemente de gostarmos ou não dos chineses, ou dos vietnamitas, ou dos cubanos que agora ingressam por caminho idêntico, acompanhar com isenção teórica suas experiências práticas será indispensável para os socialistas brasileiros terem uma noção mais realista das dificuldades que a superação do capitalismo coloca diante deles. Isso é ainda mais necessário porque voltaram a vicejar as correntes utópicas que acham possível superar o capitalismo retornando a uma felicidade indígena ou camponesa que jamais existiu.

 

- Wladimir Pomar é membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate

 

Teoria e Debate, Edição 139, 19 agosto 2015

http://www.teoriaedebate.org.br/?q=materias/internacional/outra-vez-china&page=0,1#sthash.BV6KiHfH.dpuf

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/171843
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