Os EUA em pré-guerra: ascensão da China e petróleo

13/11/2019
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O senso comum enxerga o presente do devir histórico usualmente com os olhos do desejo. Não há como se exigir diferente. As gerações viventes no início do século 21 são afetadas emocional e materialmente com o agravamento da adversidade entre os povos. E, por isso, muitos se rendem às ilusões que o capitalismo proporciona. Uma dessas, contudo, parece desprovida de sentido na atualidade – a promessa do desenvolvimento.

 

Por outro lado, os interessados em economia política podem acumular, após algumas décadas de leitura e observação, alguma capacidade para avaliar a conjuntura. Ao menos naquilo que lhes parece essencial: os motores das transformações estruturais do sistema internacional. A rivalidade entre os povos, as estratégias nacionais, o valor sistêmico dos territórios, das tecnologias e do dinheiro. É no domínio do tempo, na história e não na matemática das frequências, que as inteligências humanas irão encontrar explicação para a angústia em que se encontram no presente.

 

O objetivo do presente artigo é analisar o inevitável esgotamento da “indústria velha” no ocidente, pano de fundo para a ascensão recente da China e perguntar se o mundo caminha para guerra entre potências.

 

Para isso discute-se que, na conjuntura, compreendida como de pré-guerra, manifesta-se o contraditório, para os EUA, no enfrentamento com a China. Por um lado, deve-se desenvolver a oferta de petróleo para acomodar o crescimento chinês nos próximos anos. Por outro lado, há também urgência, para os EUA, em conter a expansão econômica chinesa no mundo. O contraditório se manifesta entre o imperativo de preservar a paz nos mercados ao mesmo tempo em que se escala o conflito entre as potências.

 

Conforme procuro argumentar, o Ocidente está condenado nos próximos anos a baixas taxas de crescimento. Como fundamentos, dois movimentos combinados: (i) a saturação dos mercados centrais para produtos da “indústria velha” desde os anos 70 e; (ii) a dificuldade tecnológica encontrada para novo impulso associado à “nova indústria”.

 

Em seguida, discuto como a China tem negociado abertura de mercado de trabalho abundante e barato às transnacionais ocidentais desde 2003. Como barganha, a indução de impulso industrializante com autonomia tecnológica no país. O enorme mercado potencial para produtos da “indústria velha” tem garantido a continuidade dos investimentos no gigante asiático. Com isso, efeitos multiplicadores keynesianos têm levado ao transbordamento da vitalidade chinesa na África e na América do Sul.

 

Aos EUA, diante da ameaça percebida, não restam muitas opções na conjuntura. Na sequência, procuro discutir a estratégia de enfrentamento do Governo D. Trump com a China, evidenciando-se o contraditório nas relações internacionais entre os dois países na conjuntura. Por fim, apresento argumentos e evidências que sugerem que o pêndulo do poder nos EUA deverá ganhar ainda mais potencial nas urnas em 2020, preparando-se o mundo para uma guerra entre potências.

 

1.A reação da “velha indústria” norte-americana diante da ameaça chinesa

 

A vitalidade do crescimento chinês no século 21 tem levado o establishment norte-americano ao diagnóstico de que o capitalismo com planejamento de longo prazo e capacidade de alinhamento de esforços triunfa em tempos de crise. Pois bem, o tamanho da ameaça chinesa colocou os EUA diante do desafio urgente de reduzir as taxas de crescimento chinesas a patamares comparáveis aos ocidentais. Isto significa, em outras palavras, frear a enorme inércia industrializante posta em marcha. Uma industrialização que se projeta sobre um oceano de potencial mercadológico para produtos da “indústria velha” na Ásia.

 

Neste contexto, não surpreende que a partir de 2016 tenha ascendido ao poder nos EUA empreiteiro bem-sucedido, com apoio da Opus Dei católica, de judeus conservadores e de evangélicos pentecostais. O ocidente na sua versão conservadora-liberal, alinhada com princípios favoráveis à concentração de poder autoritário e princípios de enfrentamento direto e unilateral.

 

1.1.Decadência da indústria velha e tendência à estagnação com desemprego desde os anos 70

 

Em Coutinho e Belluzzo (1982)[1] mostrou-se que durante a década de setenta do século 20 a longa onda de industrialização iniciada cerca de cem anos antes exibia sinais de esvaziamento. Entre estes sinais, o mais importante parecia ser a dificuldade crescente para comercialização da produção de duráveis. As transnacionais experimentaram desde o pós-guerra, ao menos na América do Norte e Europa, gastos exponencialmente crescentes em propaganda e marketing, mas sem que este esforço se traduzisse em receita bruta compensatória.

 

A causa desta dificuldade, por sua vez, seria o progressivo esgotamento das combinações possíveis (inovações) de produtos pertencentes ao paradigma tecnológico eletricidade-metalurgia-química. Quanto menor o ritmo de inovações radicais na “velha indústria”, mais maduros os mercados passaram a se tornar, forçando-se as economias centrais a baixas taxas de crescimento e tendência ao desemprego.

 

Nos últimos 50 anos, o capitalismo não foi capaz de produzir alternativas tecnológicas que justificassem novas ondas centenárias de industrialização pelo planeta. Muito pelo contrário, a digitech, a nanotech e biotech não passaram pelo processo de maturidade necessário à ignição de novas formas de industrialização.

 

Ao invés de matéria inanimada, a “nova indústria” se ocupará de transformar a matéria viva, inteligente. Isso não aconteceu e o mundo sabe disso desde abril de 2003, quando foi anunciado resultado do projeto genoma humano. Por outro lado, a digitech avançou desproporcionalmente, gerando-se impacto negativo na relação entre emprego e investimento (automação em escritórios, fábricas, fazendas e transporte).

 

Após a derrocada do “modelo soviético” ao final dos anos oitenta e, passado estouro da bolha financeira no Japão dez anos mais tarde, os EUA obtiveram sucesso no enquadramento do sistema internacional a baixas taxas de crescimento. Este enquadramento foi, durante a “era da globalização” (1980-2000), realizado através da “diplomacia do dólar”, conforme decifrado pelos professores M. C. Tavares, J. L. Fiori e outros a estes ligados[2].

 

A moeda e o crédito norte-americanos passaram a ser utilizados como instrumento de pressão dos EUA sobre demais Estados. O aperto na liquidez internacional entre 1978 e 2001 impôs juros reais elevados. Diferentes projetos nacional-desenvolvimentistas foram desarticulados financeiramente, incluindo-se o brasileiro (Brasil-Potência). A liberal-democracia não parecia enfrentar ameaças e houve quem proclamasse o fim da história no início dos anos noventa.

 

1.2.Ascensão da China, “permissividade” norte-americana (2008 – 2016) e o enfrentamento recente

 

Com a entrada na OMC em 2003, a China iniciou manobras para acoplagem com o subsistema econômico (e político) ocidental. Contando-se com mercado virgem e quase inesgotável para produtos da “velha indústria”, a estratégia dos “comunistas” foi se oferecer como entreposto industrial com custos de produção imbatíveis em dólares. Para isso incentivou-se contingente abundante de camponeses a deixarem a subsistência e, principalmente, jamais se internacionalizaram as finanças em moeda local.

 

A potência transformadora da industrialização sobre um país das dimensões da China tem sido devastadora para o sistema internacional desde 2003. Naquele ano, a China correspondia a 80% do que o Brasil é hoje em PIB. Em cerca de 15 anos, a atividade econômica chinesa aproximadamente decuplicou, sendo em 2018 maior o valor adicionado na indústria de lá do que nos EUA. Estima-se que, mantidos os crescimentos relativos recentes, a China se tornará economicamente maior que os EUA em menos de 10 anos.

 

Em artigo de H. Clinton[3] publicado em outubro de 2011 apontava-se para estratégia de aproximação pacífica e mercadológica no engajamento dos EUA na Ásia. Na ocasião:

 

Aproveitar o crescimento e o dinamismo da Ásia é fundamental para os interesses econômicos e estratégicos americanos e uma prioridade fundamental para o presidente Obama. Os mercados abertos na Ásia oferecem aos Estados Unidos oportunidades sem precedentes de investimento, comércio e acesso a tecnologia de ponta. Nossa recuperação econômica em casa dependerá das exportações e da capacidade das empresas americanas de explorar a vasta e crescente base de consumidores da Ásia. Estrategicamente, manter a paz e a segurança na Ásia-Pacífico é cada vez mais crucial para o progresso global, seja através da defesa da liberdade de navegação no Mar da China Meridional, combatendo os esforços de proliferação da Coréia do Norte ou garantindo a transparência nas atividades militares dos principais atores da região.

 

Conforme esperado, os EUA modificaram com D. Trump o padrão de resposta que vinha sendo dada à ameaça de ascensão hegemônica chinesa. Na medida em que a China não internacionalizou as finanças em moeda local e, diante de um oceano de reservas internacionais na Ásia, as armas financeiras utilizadas na “diplomacia do dólar” parecem pouco eficazes nos últimos cerca de 15 anos.

 

A capacidade que os EUA dispõem na conjuntura para arrefecer o crescimento chinês é progressivamente minada pelo aumento da importância do mercado interno asiático. Trata-se de um mercado de grandes proporções, que se expande a taxas muito elevadas anualmente, oferecendo-se como escoadouro para capacidade produtiva de último tipo e com crescente conteúdo tecnológico autônomo.

 

Os chineses, antecipando-se ao lento movimento de alternância de poder nos EUA, iniciaram agressiva expansão econômica na América do Sul e África desde 2003. As transnacionais chinesas têm adquirido desde então ativos minerais, em energia e alimentos. No Brasil, os investimentos da China são responsáveis por boa parte do capital estrangeiro produtivo internado no país nos últimos anos, incluindo-se setor petróleo. Desde 2003, totalizaram-se US$ 69,2 bilhões de investimentos chineses apenas em infraestrutura no Brasil. Em 2017, contabilizou-se cerca de um terço do total invertido em infraestrutura no país sul-americano.

 

Em síntese, a estratégia norte-americana de subordinação mercadológica e financeira da China entre 2009 e 2016 parece ter sido superada. A partir de 2017, a elite industrial-militar dos EUA tem dado passos firmes em direção a políticas de enfrentamento direto e unilateral.

 

2.A ascensão chinesa e o imperativo de enfrentamento norte-americano

 

Em 2012 ascendeu ao poder na China Xi Jinping com a promessa de “rejuvenescimento”. Segundo esta doutrina, a China deveria tornar-se próspera e poderosa entre a “família de nações”[4].

 

Em 2013 a China propôs a Iniciativa de Cinturão Rodoviário (BRI em Inglês). Para os 70 países do BRI, estima-se que os projetos em todos os setores já executados, em implementação ou planejados somem cerca de US$ 575 bilhões. Se e quando concluídos, os projetos de transporte da BRI poderiam reduzir o tempo de viagem nos corredores econômicos em 12%, aumentar o comércio entre 2,7% e 9,7%, aumentar a renda em até 3,4% e tirar 7,6 milhões de pessoas da pobreza extrema [Banco Mundial (2018, 2019)[5]].

 

Enquanto as elites financeiras anglo-saxãs praticam sistematicamente a acumulação sem fronteiras nacionais, o que realmente importa é a preservação do ambiente de paz e liberdade nos mercados mundiais. Simultaneamente, as elites da geopolítica do petróleo rabiscam o tabuleiro internacional, construindo-se pelas armas os caminhos para a diminuição populacional no futuro. É desta contradição, entre a aparente paz dos mercados e a força bruta, que resulta a polarização nos EUA contemporâneos.

 

Em abril de 2017, quatro meses após eleito, D. Trump recebeu Xi Jinping nos EUA. Reafirmaram-se intenções de cooperação comercial. Menos de um ano mais tarde, D. Trump iniciou unilateralmente aumento nas tarifas de aço e alumínio, produtos eletrônicos, têxteis e calçados.

 

Em outubro de 2018, em histórico discurso, o vice-presidente dos EUA explicou a racionalidade da guinada norte-americana:

 

O Partido Comunista Chinês usou um arsenal de políticas inconsistentes com o comércio livre e justo, incluindo tarifas, cotas, manipulação de moeda, transferência forçada de tecnologia, roubo de propriedade intelectual e subsídios industriais que são distribuídos como doces para investimentos estrangeiros. Essas políticas construíram a base de fabricação de Pequim, às custas de seus concorrentes – especialmente os Estados Unidos da América. [Pence (out 2018)[6]]

 

Contribuiu igualmente para a agressiva resposta norte-americana a publicação do “Plano Made in China”, documento de política industrial-tecnológica-comercial do governo Chinês. O Plano objetivou coordenar esforços público-privados em corrida tecnológica de amplo espectro até 2025. Ou seja, por volta de 2025 a China estará em condições de liderar vários setores industriais-tecnológicos que, indiscutivelmente, levarão a novo momentum do capitalismo no século 21.

 

O avanço das hostilidades norte-americanas repete os passos já testados contra outros Estados Nacionais no período recente. O levantamento de barreiras comerciais, sanções econômicas contra empresas e, finalmente, restrição de negócios em dólares com bancos locais. Na Venezuela e no Irã, as guerras cibernética, comercial e financeira com os EUA têm levado à ruína econômica os adversários.

 

A guerra comercial transbordou com recentes acusações e sanções a Huawei, gigante das telecomunicações e detentora de tecnologias superiores 5G. O Governo dos EUA proibiu a exportação de aplicativos e dispositivos utilizados em celulares fabricados pela firma. Com pretexto de espionagem evita-se assim o crescimento do controle chinês sobre a comunicação digital nos EUA.

 

Na atualidade há, em Shenzhen, cerca de 10 mil engenheiros trabalhando em uma espécie de projeto Manhatan da Telecom: eliminar a dependência tecnológica chinesa dos EUA neste segmento. A resposta chinesa foi comparável à ameaça em situação de guerra.

 

3.Sobre a crise financeira e o petróleo no período pré-guerra

 

Conforme analisado em artigo recente, enquanto as quantidades de suprimento de petróleo são decididas pelos atores da indústria, os preços são formados nos mercados financeiros. Há dois preços. O que vale para transações hoje (spot) e o montante que é esperado de ser entregue amanhã (futuro). Pois bem, o volume em dólares transacionados em mercados futuros soma cerca de dez vezes o volume spot. Ou seja, os preços de petróleo hoje resultam de movimentos especulativos sobre o futuro político nos territórios produtores. Quanto maior a “insegurança” nos territórios, maiores os riscos futuros e mais instáveis os preços spot se tornam.

 

Ou seja, qualquer ação política dos EUA no Oriente Médio pode ter como consequência a instabilização dos mercados de capitais e, mais grave, impor restrições à continuidade da expansão chinesa. Estes são dois riscos que devem se minimizados pelos EUA antes da escalada do conflito.

 

A China não pode hoje prescindir do fornecimento do Irã e da Arábia Saudita. Sem ambos, o país correria o risco de não dispor de petróleo para manutenção do crescimento. Em situação de disrupção do fluxo de navios na região, a China seria forçada hoje a se envolver no conflito. Caso os EUA acomodem a demanda crescente do gigante asiático na produção do pré-sal, diminui-se o risco político com a China, abrindo-se caminho para eventual ação militar no Oriente Médio.

 

A “demora” do Brasil em escalar a produção de petróleo teve como objetivo preservar as reservas para as gerações futuras enquanto se as utilizariam para a autonomia/soberania em um mundo turbulento porvir. Isso não atendeu à urgência do dominador externo para redirecionar para a China suprimento seguro, fora do Oriente Médio, nos próximos anos.

 

O megaleilão ocorrido no início novembro de 2019 foi marcado pelo apetite da China, que adquiriu, junto com a Petrobrás, os campos mais promissores. A ausência das firmas norte-americanas e europeias apenas sinaliza que o regime de partilha não parece conduzir aos melhores resultados para os adquirentes. Para a elite do petróleo mundial, o regime de concessão é esperado de resultar os maiores ganhos e, para isso, vale a pena esperar mais um pouco.

 

[1] BELLUZZO, L. G. M.; COUTINHO, R. (org.). Desenvolvimento capitalista no Brasil: ensaios sobre a crise. São Paulo: Brasiliense, 1982.

[2] Fiori, J. L. e Tavares, M. C., Poder e Dinheiro: uma economia política da Globalização, Vozes, Petrópolis, 1997.

[3] Clinton, H. America’s Pacific Century, Foreing Policy, Publicado em 11/12/2011 em https://foreignpolicy.com/2011/10/11/americas-pacific-century/)

[4] Pence, M. Remarks by Vice President Pence on the Administration’s Policy Toward China, Hudson Institute, Washington, D.C., Outubro 2018.

[5] Transcrição do discurso de Xi Jinping após eleição para Secretaria do Partido Comunista Chinês em 15 de novembro de 2012. Retirado de https://www.scmp.com/news/18th-party-congress/article/1083153/transcript-xi-jinpings-speech-unveiling-new-chinese em outubro de 2019.

[6] Conjunto de artigos encomendados pelo Banco Mundial e disponíveis em https://www.worldbank.org/en/topic/regional-integration/brief/belt-and-road-initiative

 

- Marco Aurélio Cabral Pinto é professor da Escola de Engenharia da Universidade Federal Fluminense, mestre em administração de empresas pelo COPPEAD/UFRJ, doutor em economia pelo IE/UFRJ. Engenheiro no BNDES e Conselheiro na central sindical CNTU. É colunista do Brasil Debate

 

12/11/2019

http://brasildebate.com.br/os-eua-em-pre-guerra-ascensao-da-china-e-petroleo/

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/203216

China-EEUU

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