Panama Papers: o escândalo dentro do escândalo

22/04/2016
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Houve buscas na sede panamenha da Mossack. Mas a ordem neoliberal é a maior culpada   Foto: inShare policia panama
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O maior impacto da divulgação dos Panama Papers deu-se, como seria de esperar, nos países onde chefes de governo ou seus parentes e auxiliares diretos apareceram como proprietários de offshore suspeitas. Naqueles, bem entendido, cujos governantes não detêm poder absoluto, como o rei saudita Salman e demais monarcas do Golfo.

 

A reação mais rápida foi a da Islândia. No próprio domingo 3 da divulgação, o primeiro-ministro Sigmundur Gunnlaugsson foi apanhado de surpresa pela pergunta sobre sua offshore Wintris.

 

Desconcertado, reclamou de “suspeitarem de algo que não é suspeito” e abandonou a entrevista. Criara a empresa em 2007 e por meio dela comprou 4 milhões de dólares em títulos dos bancos da Islândia, cujo colapso em 2008 provocou uma brutal recessão e forçou o governo a assumi-los. Vinte e seis banqueiros foram presos por fraudes.

 

Em 2009, Sigmundur tornou-se presidente do neoliberal Partido Progressista e deputado, sem declarar a empresa. Meses depois, “vendeu” a metade à esposa por 1 dólar. Na eleição de 2013, venceu os social-democratas, assumiu o governo e em 2015 fez um acordo com os bancos, criticado como demasiado generoso pela oposição. Certamente, sua Wintris lucrou com essa decisão.

 

O primeiro-ministro não se deu por achado. No dia seguinte, negou tudo no Parlamento, enquanto 22 mil manifestantes, 11% da população da capital e imediações, protestavam à porta. Resistiu a renunciar e na terça-feira “afastou-se” com a expectativa de retornar em breve.

 

Só na quinta-feira 7 a pressão de seus companheiros o forçou a abrir mão de vez do cargo para o ministro da Agricultura Sigurdur Johannsson, do mesmo partido. Continuam os ministros da Fazenda e do Interior, também proprietários de offshore intermediadas pela Mossack Fonseca. Aliás, 600 islandeses, 0,3% da população adulta, estão na lista. 

 

Uma movimentação semelhante se viu na República de Malta, onde um ministro e o chefe de gabinete do premier têm offshore, bem como vários empresários aliados do governo trabalhista. Milhares participaram no domingo 10 de um protesto organizado pela oposição conservadora para exigir a demissão do primeiro-ministro Joseph Muscat.

 

O presidente ucraniano Petro Poroshenko é outro dos nomes de mais alto escalão nos Panama Papers. O multimilionário, conhecido como Rei do Chocolate, prometera antes de assumir o governo vender suas indústrias para se concentrar nos problemas da nação.

 

Na realidade, criou uma offshore nas Ilhas Virgens Britânicas em agosto de 2014, auge da guerra com os separatistas de Donetsk e Luhansk, e manteve o controle de suas empresas por meio dessa e de outras duas firmas em Chipre.

 

Além de omitir as empresas de suas declarações de bens e renda e poupar milhões em impostos, Poroshenko violou, ao menos no espírito, as leis ucranianas que proíbem o presidente e qualquer funcionário de conduzir empresas privadas. 

 

O presidente tem maioria parlamentar, mas o efeito negativo sobre a opinião pública soma-se aos da guerra, da crise econômica e da deterioração dos serviços públicos, em boa parte em razão da evasão, através de offshore.

 

Estima-se seu custo ao país em 11,6 bilhões de dólares anuais, um terço do orçamento. Em dezembro, apenas 8% confiavam no seu governo, um número pior do que o de Viktor Yanukovych antes de ser deposto pelo movimento Euromaidan.

 

A revelação também colaborou para o resultado negativo do referendo holandês sobre o tratado de livre-comércio entre Bruxelas e Kiev e dificulta as negociações para substituir o primeiro-ministro Arseniy Yatsenyuk, que renunciou na terça-feira 12, mas permanece no cargo por falta de acordo sobre seu sucessor entre o partido de Poroshenko e seu parceiro de coalizão.

 

O presidente argentino Mauricio Macri viu-se ligado a duas offshore, seu pai Franco a outras duas, seu irmão Gianfranco a mais cinco e seu ex-secretário da Fazenda na prefeitura de Buenos Aires, Néstor Grindetti, a mais uma.

 

Sobre a primeira empresa, a Fleg Trading, criada em 1998 e extinta em 2009, o presidente alega que não participou do capital, foi declarada por seu pai e os valores foram mínimos. Seu objetivo seria estender o sistema “Pago Fácil” ao Brasil e teria permanecido inativa porque o projeto nunca se efetivou.

 

Na verdade o empreendimento foi concretizado em abril de 2001, registra a Junta Comercial de São Paulo. Quanto à segunda, Kagemusha, diz ter vendido sua participação em 2007. 

 

As explicações não satisfazem a oposição, nem os aliados, nem o procurador Federico Delgado, que abriu uma investigação. Isso só traz prejuízos à sua popularidade, que caiu 10 pontos desde a posse há quatro meses devido aos brutais reajustes de tarifas, demissões em massa de funcionários públicos e piora da expectativa inflacionária. Também marca de hipocrisia a recente investigação de acusações de corrupção contra Cristina Kirchner e seus colaboradores.

 

No Reino Unido, o governo David Cameron foi atingido em cheio. O primeiro-ministro teve participação na Blairmore Holdings, fundo offshore de 25 milhões de libras do pai, Ian, corretor de ações que tirou muito proveito da extinção dos controles de capitais por Margaret Thatcher em 1979. Vendeu-a com lucro em 2010, pouco antes de assumir o cargo.

 

Meses depois, com a morte do pai, herdou 300 mil libras, valor pouco inferior ao mínimo sujeito ao imposto de herança de 40% e, algum tempo depois, a mãe o presenteou com outras 200 mil libras para driblar o pagamento de tributos.

 

Sem ser estritamente ilegal, é revoltante para um povo submetido a anos de austeridade, aumentos de impostos e duras penas a pequenos sonegadores em nome da recuperação financeira nacional. Ainda mais porque Cameron combateu as restrições a paraísos fiscais pretendidas por Bruxelas.

 

Foi atacado até à direita, por políticos e jornais conservadores engajados na campanha pela saída do Reino Unido da União Europeia, contestada pelo premier. Isso inclui, ironicamente, The Mail, oficialmente sediado nas Ilhas Bermudas para evadir o Fisco. Sua popularidade é agora inferior à do líder trabalhista Jeremy Corbyn, também combatido por quase toda a mídia como “radical”.

 

Na China, estão envolvidos vários parentes de poderosos, inclusive um cunhado do presidente Xi Jinping e uma filha do ex-premier Li Peng, e a censura bloqueou qualquer pesquisa sobre o assunto na internet. Na Rússia, um compadre e vários aliados de Vladimir Putin recorreram à Mossack Fonseca, talvez para ocultar ganhos ilícitos com contratos estatais. Mídia e governo acusam a CIA de orquestrar o vazamento para prejudicar os inimigos.

 

É um exagero, pois foram atingidos governos simpáticos aos EUA, como os de Poroshenko, Macri e Cameron, mas grande parte da mídia ocidental de fato enviesou a cobertura contra o presidente russo e destacou sua imagem nas reportagens como se o escândalo se referisse principalmente a ele, que não foi pessoalmente citado.

 

A corrupção e o uso de paraísos fiscais por empresários russos são notórios há muito, mas seu país representa uma pequena fração do imenso vazamento: 74 clientes da Mossack Fonseca em um universo de 14.153, 4.198 empresas de um total de 214.488. O círculo de Putin teria movimentado 2 bilhões de dólares, um milésimo dos 2 trilhões supervisionados pelo escritório panamenho em todo o mundo.  

 

Centrar-se no líder russo é ocultar o problema real. De certa forma, todos os 140 políticos na lista são detalhes, assim como Mario Vargas Llosa, Roberto Carlos, Jackie Chan, Lionel Messi e outras celebridades. Pode-se dizer até que é questão menor se parte do dinheiro provém de corrupção, sonegação, lavagem de dinheiro, fraude e crime organizado.

 

Como assinala a reportagem da revista estadunidense The Atlantic, o verdadeiro escândalo está no que é legal. A razão de ser de uma Mossack Fonseca é burlar o espírito das leis sem violá-las formalmente e permitir a privilegiados fugir de impostos (e de dívidas, partilhas de bens e pensões alimentícias) de maneira defensável nos tribunais, apesar de embaraçosa quando exposta. 

 

Em alguns casos, os abusos flagrantemente ilegais do sistema devem ser investigados. Sedes da Mossack Fonseca no Panamá e outros países passaram por buscas policiais e as autoridades fiscais dos países da OCDE farão uma reunião para trocar informações sobre o vazamento.

 

Por outro lado, o Parlamento Europeu votou, na quinta-feira 14, uma lei que pune a divulgação de segredos comerciais por denunciantes e jornalistas, “exceto se revelarem atividade ilegal”.

 

Estima-se que 23 trilhões de dólares, 15% da riqueza privada mundial, estão escondidos em paraísos fiscais. Confidencialmente, mas em geral dentro das leis que ela mesma impõe a governos e parlamentos, uma pequena elite se furta a contribuir para a sociedade, apesar de deter uma fatia desproporcional da riqueza nacional, enquanto as massas arcam com taxas mais altas e serviços deteriorados, em boa parte para salvar banqueiros e empresários de seus próprios erros.

 

É uma engrenagem vital do sistema internacional de concentração de renda posto em movimento pela globalização e pelas reformas neoliberais, principalmente o livre movimento de capitais, desde os governos de Ronald Reagan e Margaret Thatcher. 

 

*Reportagem publicada originalmente na edição 897 de CartaCapital, com o título "O escândalo dentro do escândalo"

 

22/04/2016

http://www.cartacapital.com.br/revista/897/panama-papers-o-escandalo-dentro-do-escandalo

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/176969
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