Chile: não é só o balançar do pêndulo

20/12/2017
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Foto: Catalina Tapia
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O segundo turno da eleição presidencial chilena deu a vitória ao empresário e ex-presidente direitista Sebastián Piñera e confirma que a onda conservadora ainda não acabou. Com uma participação de 49%, razoável para os padrões chilenos (a do primeiro turno foi de 47%), conseguiu 54,6% dos votos ante 45,4% de Alejandro Guillier, o candidato da Nova Maioria, aliança do centro-esquerda tradicional apoiada por Michelle Bachelet.

 

No primeiro turno, Guillier teve 22,7%, que somados aos votos do progressista Marco Enríquez-Ominami (5,7%) e da democrata-cristã Carolina Goic (5,9%), que o apoiaram no segundo turno e de Beatriz Sánchez (20,3%), da também centro-esquerdista Frente Ampla, que se recusou a fazê-lo, totalizariam 54,6%, mais que a soma dos votos no primeiro turno de Piñera (36,6%) e José Antonio Kast (7,9%), o candidato da ultradireita mais francamente pinochetista.

 

Enquanto os eleitores deste respaldaram Piñera sem hesitação e festejaram sua vitória desfilando pelas avenidas de Santiago com o busto do tirano morto em 2006 sem ser julgado por seus crimes, o centro-esquerda se dividiu.

 

Houve, para começar, uma divisão dos votos da centrista Goic entre a ala democrata e a ala cristã: esta última veio a votar em Piñera por se oporem ao aborto e a imigração. Mas isso, por si só, não teria sido decisivo. Foram os eleitores da Frente Ampla que decidiram a eleição ao recusarem ir às urnas e apoiar o candidato de Bachelet.

 

A responsabilidade pelo resultado não é, porém, só da maioria das lideranças e dos 14 partidos da Frente Ampla que pediram a abstenção ou liberaram o voto, mas também da Nova Maioria. Esta, com exceção do mandato anterior de Piñera, de 2010 a 2014, governou a maior parte do tempo desde a restauração da democracia em 1990, mas por muito tempo limitou-se, na prática, a gerir com uma face humana o massacrante sistema neoliberal construído pela ditadura de Augusto Pinochet, amenizando-o com políticas assistenciais aos menos favorecidos.

 

Se a cautela se afigurava justificada no início dos anos 1990, quando a possibilidade de Pinochet e seus seguidores articularem um novo golpe parecia real, ficou mais difícil defendê-la a partir da detenção temporária do ex-ditador em Londres em 1998, quando ficaram claros os limites do apoio interno e internacional à ultradireita chilena.

 

Entretanto, as reformas promovidas pelos governos de presidentes socialistas, a partir de Ricardo Lagos, empossado em 2000, foram pouco além de mudanças institucionais pouco relevantes para o quotidiano da maioria.

 

Por exemplo, em 2006 foram abolidos os senadores “designados” pelas Forças Armadas, presidente e Supremo, impostos por Pinochet com o objetivo explícito de bloquear tentativas de desfazer as amarras institucionais por ele deixadas, mas nem por isso se chegou a mexer na educação e na previdência privatizadas.

 

Nos anos 1980, a ditadura aboliu a previdência pública (exceto para os militares), substituindo-o por Administradoras de Fundos de Pensão (AFPs) privadas, para as quais cada trabalhador ativo no setor formal (mas não os empregadores) é obrigado a recolher 12% do seu salário e dos quais elas cobram 2% de taxa de administração. Calculava-se e apregoava-se na época, e ainda nos anos 1990, que o sistema proporcionaria aposentadorias esplêndidas, muito melhores que as do sistema público.

 

Na vida real, as taxas de crescimento econômico projetadas na época mostraram-se pura fantasia e consequentemente também a esperada valorização das ações e títulos das carteiras das AFPs. Os trabalhadores podem trocar de AFP se não estiverem satisfeitos, mas as diferenças de rendimento entre uma e outra são insignificantes.

 

O resultado é que em 2015, a média das aposentadorias era R$ 820 e 90% dos aposentados recebia até R$ 700, pouco mais de metade do salário mínimo chileno. Muitos recebem uma aposentadoria irrisória ou nada, visto que a realidade os empurrou para a economia informal durante a maior parte de suas carreiras e não lhes sobrou o que poupar.

 

O quadro da educação, igualmente privatizada por Pinochet sob a orientação de Milton Friedman, não é muito melhor. Cerca de 60% do orçamento do Ministério da Educação é destinado a subvencionar escolas particulares, o que, em nome de promover a concorrência e a livre escolha, reproduz e amplia as desigualdades.

 

Mesmo subvencionadas, as boas escolas privadas burlam as exigências oficiais e vetam alunos de origem humilde para garantir seu desempenho e perfil social. Continuam tão elitistas quanto antes e as elites pagam menos do que poderiam, graças à subvenção que sai dos bolsos dos mais pobres.

 

Nas escolas públicas, a gratuidade vai só até o ensino fundamental e não abrange materiais e uniformes obrigatórios. No ensino médio, apenas as famílias mais pobres são em tese isentas de contribuição, mas estas são pressionadas, humilhadas e na prática excluídas.

 

Para as demais, a soma das mensalidades pagas pelos pais com a subvenção nacional é em geral insuficiente para uma qualidade adequada de ensino, embora o problema seja amenizado nas cidades e bairros mais ricos por subvenções municipais adicionais.

 

Não há ensino superior gratuito e os alunos sem recursos têm de recorrer ao crédito educativo e arcar com dívidas da ordem de 30 mil dólares a juros de 5% ou mais, que levarão até 20 anos para pagar.  O quadro da saúde é semelhante ou pior. Junte-se um crescimento econômico menos do que espetacular e o resultado é a falta de perspectivas pessoais e políticas para a maioria.

 

Ao contrário dos idosos mal aposentados, os estudantes têm energia e disposição para protestar, como ficou claro desde a “revolução dos pinguins” (pelo conservador uniforme escolar de jaqueta com gravata escuras e camisa branca) promovido por secundaristas de abril a junho de 2006, início do primeiro governo Bachelet.

 

Ao chegar às universidades, essa geração retomou as mesmas reivindicações – nacionalização e gratuidade do ensino – em 2011, no governo de Piñera, que se somaram a protestos trabalhistas e indígenas. Este respondia que “nada é de graça nesta vida”, mas percebeu a insatisfação juvenil e procurou minimizar seus efeitos eleitorais com o fim do voto obrigatório em 2012.

 

A abstenção na eleição do ano seguinte foi de 59% no segundo turno e ainda mais alta entre os jovens, por pura descrença na possibilidade de conseguir mudanças significativas pelo voto. Isso não impediu, no ano seguinte, a derrota da candidata apoiada por Piñera – Evelyn Matthei, sua ministra do Trabalho – por Bachelet, que havia terminado seu mandato anterior com alta aprovação.

 

Desta vez, a presidenta socialista deu mais importância às reivindicações dos jovens e ao seu alheamento crescente em relação à Concertación do centro-esquerda, renomeada Nova Maioria após incorporar o Partido Comunista e enviou ao Parlamento projetos de reformas mais profundas, inclusive a reestatização parcial da Previdência e a ampliação da educação gratuita.

 

Entretanto, não teve maioria suficiente para emendas constitucionais e leis orgânicas e sua proposta de Constituinte não decolou. A economia foi prejudicada pela queda dos preços do cobre e o sistema político pela revelação de uma série de escândalos de corrupção – até então considerados impensáveis no Chile – que salpicaram tanto a direita quanto o centro-esquerda.

 

Tudo isso colaborou para que boa parte da insatisfação expressa por estudantes, indígenas e trabalhadores em 2011 se dirigisse para a construção dos novos partidos que vieram a formar a Frente Ampla – um espectro que vai do social-liberalismo à esquerda radical, mas tem como centro de gravidade os autonomistas, ou seja, libertários de esquerda.

 

Obtiveram uma votação comparável à da própria Nova Maioria, dividiram praticamente ao meio os votos do centro-esquerda e obtiveram uma bancada significativa no Congresso. Piñera e seus aliados terão 72 dos 155 deputados, Nova Maioria 43, PDC 14, Frente Ampla 20 e haverá ainda 5 de partidos menores e um independente.

 

Criou-se uma situação algo parecida com a da Espanha, na qual a divisão da esquerda entre forças tradicionais (principalmente o PSOE) e novas (principalmente o Podemos) facilita à direita mais reacionária exercer o poder, pelo menos no curto e médio prazo. Piñera prometeu reverter as pequenas reformas do segundo governo Bachelet, interromper a expansão da educação universitária gratuita e modificar suas reformas fiscais e trabalhistas criticadas pelo empresariado.

 

Enquanto isso, como na Espanha, os impasses e a polarização política tenderão a crescer sem encontrar saída, gerando tensão e instabilidade. O primeiro perdedor deve ser o PDC: o espaço para o centrismo tende a encolher ainda mais. Nesta eleição, o partido deixou a aliança com a qual elegeu dois presidentes nos anos 1990 por julgar estar perdendo espaço e ter dificuldades crescentes para impor seus candidatos nas primárias da coalizão, mas o voo solo mostrou que, fora dela, o partido tende a se tornar ainda menos relevante.

 

A longo prazo, talvez o entusiasmo e adesão das novas gerações torne a Frente Ampla a maior força da esquerda, capaz de disputar de fato o poder. Mas é de recear que, nesse momento, sua extrema diversidade ideológica torne muito difícil formular e aplicar uma política consistente.

 

São muitos partidos, cujas bases não estão, como as da esquerda tradicional, em trabalhadores sindicalizados que valorizam a coesão, a disciplina e a negociação coletiva, mas em um novo tipo de proletariado mais jovem e com um modo de vida mais precário e independente de organizações, apegado a suas individualidades e identidades, com ideais ambiciosos e variados dos quais não abre mão por acordos mesmo com aliados relativamente próximos.

 

Se o centro-esquerda não consegue mais avançar por excesso de compromissos e falta de ousadia, o excesso de ousadia e falta de compromissos cria seu próprio risco de paralisia, como mostrou o Syriza grego. Após desafiar a Troika e por meses e convocar um referendo no qual o povo respaldou seu desafio, fragmentou-se quando teve de decidir o seu rumo.

 

A corrente do primeiro-ministro Aléxis Tsipras capitulou ante os poderes financeiros globais e aceitou um acordo pouco diferente daqueles feitos pelo centro-esquerda e centro-direita tradicionais que tanto criticara, desdenhando tanto os esforços de seu ex-ministro da Fazenda Yannis Varoufakis para criar uma moeda e um sistema financeiro alternativos quanto os do grupo da ex-presidenta do Parlamento Zoe Konstantopoulou para auditar a dívida externa e declarar sua ilegalidade. O futuro dirá se outros desfechos serão possíveis, mas essa experiência não foi promissora.

 

20/12/2017

https://www.cartacapital.com.br/internacional/chile-nao-e-so-o-balancar-do-pendulo

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/189996
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