Ainda a crise nas idéias

18/05/2010
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A crise nas idéias de alguns pensadores da atualidade se reflete, também, na maneira como analisam a globalização e a confundem com a política da superpotência. Segundo eles, os EUA pregam uma economia mundial de livre jogo dos mercados e das moedas flutuantes, que se converta em um espaço de livre circulação de mercadorias, empresas e capitais, como condição para a construção da civilização, segundo seu próprio modelo. Dessa globalização não faria parte a livre circulação da força de trabalho e das populações.
 
Para realizar esse tipo de globalização, a superpotência teria ressuscitado o discurso ideológico da velha Economia Política clássica inglesa, segundo a qual cada país deveria se especializar no que fizesse melhor para desenvolver seu comércio exterior. Com essa doutrina, a superpotência controlaria a moeda mundial, disporia dos principais bancos e do mais forte mercado de capitais, teria espalhado suas filiais, suas marcas e aspirações de consumo por todo o planeta, e consolidaria sua hegemonia.
 
Nesse contexto, as distâncias entre o centro e a periferia, assim como os gastos com armamentos, não seriam reduzidos. As soberanias nacionais e suas eventuais pretensões desenvolvimentistas não passariam de um sonho irrealizável, pois elas se atrofiariam ainda mais com o auxílio do discurso ambientalista radical, que ataca o progresso humano como um fator de destruição do mundo. Mesmo a vertente ambientalista não radical, com seu hipotético desenvolvimento sustentável, também deixaria implícita a necessidade de conter padrões de vida e ter um "xerife" mundial.
 
Em outras palavras, bem vistas as coisas, só haveria uma tendência e um discurso mundial. O pensamento único de Washington teria aplainado tudo. Como diriam nossos neoliberais, a exemplo de FHC, não há outra solução. Eis aonde nos levou a síndrome do manual na análise da globalização. Transformou críticos do neoliberalismo em seus contrários. Isto é, em arautos do pensamento único, ao desconsiderarem a profundidade da crise da superpotência, assim como a diversidade e multiplicidade dos fenômenos da globalização, que não estão saindo exatamente como a doutrina neoliberal da superpotência propugnava.
 
O erro e a crise de idéias desses pensadores de esquerda residem justamente em não considerarem que o processo de transformação dos Estados Unidos em superpotência, e de suas empresas nacionais e multinacionais em transnacionais, conformando uma nova onda de globalização, resultou num processo extremamente complexo e contraditório, no qual o neoliberalismo foi apenas uma versão ideológica e política relacionada com os interesses das grandes corporações empresariais.
 
As corporações transnacionais, ao buscarem desesperadamente o aumento de sua taxa média de lucros, ou de suas margens de rentabilidade, e converterem o mundo em um espaço para a livre circulação das mercadorias, das empresas, dos capitais e, em certa medida, também da força de trabalho e das populações, acabaram gerando conseqüências que não estavam em seus planos ideológicos e políticos.
 
Esses planos preliminares continham apenas o investimento na aquisição da propriedade de empresas de países periféricos, com plantas já existentes. As empresas rentáveis ou lucrativas eram mantidas, enquanto as demais eram simplesmente fechadas. Ou seja, na prática, os investimentos das corporações causavam um processo de quebra dos parques produtivos nacionais, de desindustrialização, aumentando a dependência desses países em relação às potências centrais. Foi assim com o Brasil de Collor e FHC.
 
No entanto, vários outros países possuíam políticas de desenvolvimento e analisaram a globalização como parte da crise de realização de lucros das grandes corporações. Com isso, vislumbraram a possibilidade de aplicar uma outra vertente à globalização, tendo em vista serem países basicamente agrários, que possuíam vastas populações rurais de baixa renda. Ou seja, uma força de trabalho abundante e potencialmente de baixos salários, que poderia reduzir a crise de realização de lucros das corporações. Por outro lado, poderia industrializar o país se as corporações fossem levadas a implantar novas plantas industriais em seus territórios.
 
As transnacionais viram-se, então, na contingência de ter que transferir parte de suas cadeias produtivas, ou mesmo cadeias produtivas completas, para países e regiões de populações agrárias de baixa renda. Com isso, abriram as comportas para que políticas nacionais de desenvolvimento transformassem países agrários em países agrário-industriais ou industriais. Regiões, antes consideradas economicamente inviáveis, começaram a ser industrializadas, vislumbrando um futuro diferente.
 
Considerar isso como um simples desbordamento de filiais das transnacionais é não entender o significado, para esses países, do desenvolvimento das forças produtivas e da transformação de populações agrárias em populações de trabalhadores industriais, em especial quando aplicam políticas que combinam a existência de vários tipos de propriedade e dão às propriedades pública e estatal um papel estratégico.
 
Ignorar, desdenhar ou omitir essa nova realidade mundial, em que a superpotência, o Japão e os países capitalistas da Europa se encontram numa crise, cuja solução ainda não é visível, e em que surgiram novas potências que, embora com forte presença das transnacionais, possuem empresas nacionais, estatais e privadas, que estão se desenvolvendo como concorrentes das transnacionais, seja no mercado doméstico, seja no mercado internacional, pode ser bem mais do que uma simples crise de idéais. Pode ser uma crise aguda da síndrome do manual, impedindo-os de enxergar os novos parâmetros em jogo.
 
- Wladimir Pomar é analista político e escritor.
https://www.alainet.org/pt/articulo/141583
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