João Paulo II, O Papa político

12/10/2003
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Só quem ignora a história do papado pensa que os sucessores de Pedro são tão- somente líderes espirituais. Aliás, toda a história do Ocidente, do período medieval à formação dos Estados europeus, do colonialismo ao descobrimento da América, confunde-se com a do papado. Seu poder já não utiliza armas, como durante as Cruzadas, mas é exercido de modo inconteste sobre a consciência de milhões de fiéis, cuja fé religiosa reconhece nele a suprema autoridade da Igreja católica. Chefe do Estado do Vaticano, o papa ainda não abre mão de suas prerrogativas políticas. Deste ponto de vista, o trono de Pedro abriga, hoje, o único monarca absoluto do Ocidente. Suas decisões têm força de lei e impõem obediência na fé, sem admitir contestação de qualquer instância. Conta-se nos claustros que João Paulo II, indagado com quem se reúne para tomar decisões, teria respondido: "Ajoelho-me". Um colóquio entre quatro pessoas: o papa, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Filho da Polônia dominada pelos nazistas e, em seguida, pelos comunistas, João Paulo II nunca conheceu o limite entre fé e política. Devido à sua atribulada história, a Polônia sempre teve suas fronteiras demarcadas mais pela fé católica que pela extensão territorial. Essa fé assegurou a unidade da nação e evitou que fosse assimilada pelos regimes estrangeiros que a dominaram. Eleito papa aos 58 anos, em pleno vigor, Wojtyla não relutou em apoiar os movimentos favoráveis à erradicação do comunismo. Tornou-se, sem escrúpulos, patrono do sindicato Solidariedade e de seu líder, Lech Walesa, apoiando-os explicitamente. Mais do que anticomunista, a postura do papa é anti-autoritária. Ao visitar o Brasil pela primeira vez, em 1980, rechaçou as honrarias da ditadura militar, recebeu Lula e outros dirigentes sindicais incentivadores de greves, e abençoou o professor Dalmo Dalari, da Comissão de Justiça e Paz da arquidiocese de São Paulo, que fora torturado na véspera da chegada do pontífice. Nunca João Paulo II se deixou manipular pela Casa Branca, com quem sempre manteve relações apenas diplomáticas, sem proximidade, sobretudo após o escândalo do caso Marcinkus, o monsenhor norte-americano que se valeu de sua função no Vaticano para favorecer negociatas bancárias. Por mais fortes que tenham sido as pressões, João Paulo II jamais cortou relações diplomáticas com o Iraque de Saddam Hussein, a Líbia de Kadafi e a Cuba de Fidel. Ao visitar a Ilha, em 1998, não receou elogiar seus avanços sociais, em especial na saúde e na educação. Fez duras críticas ao neoliberalismo e ao atual modelo de globalização. E, neste ano, penitenciou-se da aprovação dada à invasão do Iraque, em 1991, retirando do Bush filho o apoio tácito que dera ao Bush pai. O mundo religioso, como o político, é repleto de mentiras bem contadas. Como a maçã do Paraíso, o cavalo do qual são Paulo teria caído na estrada de Damasco, e o gesto de Verônica limpando o rosto de Jesus. Na Bíblia não há maçã, cavalo ou Verônica. Do mesmo modo, diz-se que João Paulo II teria condenado a Teologia da Libertação. Isso é tão falso quanto o boato de que Leonardo Boff teria sido condenado pelo Vaticano e abandonado a Igreja. Boff foi apenas censurado, permanece em comunhão com a Igreja e, como padre, padre morrerá, embora tenha optado pela vida leiga e se afastado do exercício do ministério sacerdotal. Há mais de vinte anos a Teologia da Libertação incluía em sua agenda temas como a dívida externa, o capitalismo, os direitos dos pobres. Por isso, era vista com reservas por setores do Vaticano. Hoje, qualquer pronunciamento do papa que aborde a questão social trata criticamente dos mesmos temas. E ninguém o acusa de sofrer influência da Teologia da Libertação. No entanto, não há dúvida de que esta chegou à praça de São Pedro. João Paulo II nunca se recusou a intermediar conflitos internacionais, como na disputa do canal de Beagle, entre Chile e Argentina; na guerra entre israelenses e palestinos (recebeu Arafat inúmeras vezes e advoga a internacionalização de Jerusalém), nos massacres ocorridos na África. Papa da paz, Wojtyla rompeu os muros do Vaticano e saiu pelo mundo afora em incansável peregrinação em prol dos valores evangélicos, da justica social, da família e da globalização da solidariedade. Num mundo que exalta, como valor, a competitividade, a palavra do sucessor de Pedro é, no mínimo, incômoda para o sistema que se baseia na apropriação privada da riqueza, e alento à esperança de bilhões de seres humanos excluídos do direitos humanos. A vida de João Paulo II, após 25 anos de pontificado, entrou em contagem regressiva. Ele mesmo não temeu abordar, na data de seu nascimento, a 18 de maio, o espectro da morte. E o fez como homem de fé, que a encara, não como fatalidade, mas sim como destino e ingresso na eterna/idade - onde a vida é terna, impregnada do amor de Deus. Não será rápido o próximo conclave - a reunião dos cardeais eleitores do novo papa. Após João Paulo II, não se poderá escolher um pontífice que fuja da mídia e evite peregrinar pelo mundo. Nem será escolhido um cardeal muito jovem, para que o próximo pontificado não seja tão longo como o atual, nem tão idoso, para que não seja demasiadamente breve. O escolhido deverá ser um cardeal entre 65 e 73 anos, poliglota, aberto à mídia e eqüidistante entre o progressismo social e o fundamentalismo conservador. E que tenha familiaridade com a Cúria Romana. Esta tentará retomar seu controle do papado, perdido com João Paulo II. Mas, entre os italianos, poucos se enquadram nesse perfil. No Brasil, dois cardeais são fortes candidatos: dom Geraldo Magela, arcebispo de Salvador e presidente da CNBB, e dom Cláudio Hummes, arcebispo de São Paulo, que pregou o último retiro do papa. No entanto, são conjecturas. O principal eleitor, o Espírito Santo, costuma surpreender, como nas eleições do bom velhinho João XXIII; na de João Paulo I, o papa sorriso; e na de João Paulo II, o polonês que derrubou um monopólio italiano de quinhentos anos. * Frei Betto é escritor, autor do romance sobre Jesus "Entre todos os homens" (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/pt/articulo/108556
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