Hitler também sorria

29/09/2002
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Vi há alguns anos, na capa de um livro, uma fotografia que nunca mais esqueci: mostrava um Hitler bondoso, com uma criança no colo, cercado por outras, com as quais conversava em um descampado. Estavam todos calmos, alegres e descontraídos, completamente espontâneos. Fiquei perturbado ao contemplar assim, tão humano, o construtor do regime mais odioso de que tivemos notícia no século XX. Hitler sempre nos foi mostrado em imagens histéricas e caricatas, vociferando, ameaçando, contorcendo-se, de modo que nos habituamos a imaginar que seu cotidiano era assim. Em parte por isso, temos dificuldades em compreender como milhões de pessoas puderam tolerá-lo, aceitá-lo, respeitá-lo ou segui-lo. Logo me dei conta de que os contemporâneos do nazismo, especialmente os alemães e os povos sob sua influência, devem ter visto milhares de vezes esse outro tipo de imagem, hoje tão rara Hitler sorrindo, caminhando entre assessores, abraçando pessoas, agitando bandeirolas, explicando com calma as suas posições, mesmo quando representavam um ultimato a alguém. Também me dei conta de que era um desserviço à democracia sonegar isso às novas gerações. Como poderíamos reconhecer um eventual retorno do fascismo, ou de outro tipo de barbárie, se só fôssemos capazes de imaginá-lo em formas grotescas e repugnantes? E se ele retornasse com outra roupagem, mais amigável, cativante e charmosa? Tenho pensado nisso quando vejo o presidente George W. Bush explicar os novos procedimentos e doutrinas do Estado norte-americano. Ele fala pausadamente, franze a testa, cerca-se de crianças e cachorrinhos, comporta-se como um amigo mais experiente. Mas aquela bendita foto de Hitler me vacinou contra aparências, ao me mostrar que o pior dos ditadores, em sua época, também exibia-se assim. Bush e Hitler não são comparáveis. Tampouco o mundo e a sociedade norte-americana de hoje são comparáveis ao mundo e à sociedade alemã de setenta anos atrás. Mas é forçoso reconhecer que os Estados Unidos têm emitido uma seqüência de sinais perturbadores, que precisam receber atenção mais sistemática. Algo está mudando ali, rapidamente, e para pior. A notória imbecilidade do presidente não é explicação suficiente. Começo a pensar em coisas mais graves. Como todos se lembram, Bush perdeu as últimas eleições presidenciais por mais de meio milhão de votos, mas conseguiu reverter essa desvantagem mediante uma grosseira manipulação dos resultados na Flórida, governada por seu irmão. Obteve assim maioria no colégio eleitoral (só então a imprensa nos explicou que a escolha do presidente dos Estados Unidos não é feita por meio de eleições diretas). Naquela ocasião, bizarramente, uma mesma senhora acumulava as funções de responsável pelo processo eleitoral na Flórida, secretária de Justiça desse estado (subordinada, pois, ao irmão de Bush) e coordenadora oficial da candidatura do próprio Bush. Ela e seus amigos impediram uma recontagem decente, apesar de haver ali uma diferença mínima entre os candidatos oitocentos votos , com enormes evidências de fraude. Oitocentos votos que decidiriam uma eleição nacional em um país de 250 milhões de habitantes. Nenhum outro presidente seria empossado nessas condições com tanta pressa e impunidade. Se fosse do Terceiro Mundo, ele e seu país carregariam consigo a marca do ridículo, que as agências de notícias não nos deixariam esquecer. Se fosse adversário dos Estados Unidos, não obteria reconhecimento internacional e seria "legitimamente" derrubado. A acusação de golpe de Estado contaria com evidências demolidoras. Mas Bush assumiu com estranha facilidade, sem precisar prestar contas a ninguém. Ficou claro que forças poderosas consideravam muito importante tê-lo na presidência, mesmo pagando o alto preço de sacrificar as aparências democráticas do sistema político norte-americano. Desde então, e especialmente depois dos atentados de 11 de setembro, o regime vem se fechando. Algumas medidas, apoiadas pelo presidente ou seus seguidores, soam ridículas, como a crescente separação de meninos e meninas em escolas ou a proibição do ensino da teoria de Darwin em vários estados. Outras, no entanto, são indiscutivelmente sérias. Por exemplo, o governo americano deixou de reconhecer direitos individuais elementares, mantendo hoje quase mil pessoas presas por simples suspeita, sem acusação formal, sem prazos e sem processo judicial regular. De novo, isso seria um escândalo se ocorresse em qualquer outro lugar. Em paralelo, está sendo preparada a fusão de 25 agências de segurança em uma só mega-agência cuja base de operações será uma rede de um milhão de espiões dentro do próprio país. Nenhuma democracia resiste a um aparato assim, que por sua natureza age na sombra, se infiltra, chantageia, dissemina desconfianças, produz dossiês e, com o tempo, acumula enorme poder. É da semente de um Estado policial que se trata. O ideário democrático, peça fundamental para a legitimação da sociedade norte-americana diante de si e do mundo, está sob ameaça. Em paralelo, houve na economia duas novidades: o escândalo das bolsas e o fim do longo ciclo expansivo da década de 1990. As repercussões disso também são significativas, dentro e fora dos Estados Unidos. Ao contrário do que ocorre no Brasil, as grandes corporações americanas são sociedades anônimas, com gerência profissional e ações negociadas em bolsas. Lá, a poupança das famílias é tradicionalmente aplicada em ações, o que gerou a imagem de um "capitalismo de massas", motivo de orgulho daquele país. Desde 1992, no entanto, Hyman Minsky, prêmio Nobel de economia, adverte que o sistema norte-americano havia transitado para um novo estágio, que denominou "capitalismo administrador de dinheiro" (grosso modo, isso corresponde à famosa acumulação D D', de Marx). Comandando esse sistema não estão mais os capitães de indústria, mas sim os administradores de ativos líquidos (títulos, ações, participações, cotas, papéis de todo tipo, inclusive papéis que representam apenas papéis). Imersos em um ambiente altamente competitivo, esses executivos são avaliados por sua capacidade de valorizar no curto prazo as carteiras que administram, e suas remunerações dependem desses resultados. Eles são, pois, intrinsecamente especulativos, flexíveis, inquietos, agressivos e, no limite, inescrupulosos, pois só sobrevivem se conseguirem farejar as próximas boas jogadas. Se não forem predadores competentes, acabam sendo caçados. Nesse contexto, a generalização de fraudes contábeis não foi um acidente. Elas levaram à falência milhões de acionistas pequenos e médios, mas criaram alguns milhares de novos milionários, que durante anos receberam remunerações proporcionais àqueles lucros fictícios. Na seqüência dos fatos, entre três e cinco trilhões de dólares (ou seja, entre seis e dez vezes o produto interno bruto do Brasil) desapareceram das bolsas norte-americanas. As pessoas passaram a guardar sua poupança sob o colchão. Além dos impactos práticos e objetivos na economia, isso tem uma importante dimensão ideológica e simbólica. Um segundo componente essencial da auto-imagem dos Estados Unidos a idéia do "capitalismo de massas" foi duramente golpeado. Esse "capitalismo administrador de dinheiro" é, por definição, cada vez mais, uma economia rentista. Ou seja, parte crescente de sua riqueza não decorre da atividade produtiva, stricto sensu, mas de simples rendas, que podem resultar de fusões e aquisições de empresas já existentes, da compra e venda de ativos, da especulação em mercados futuros, da exploração de marcas e patentes, da manipulação de expectativas, da gerência de contratos, da intermediação financeira e de outras operações com ativos intangíveis, como direitos autorais e intelectuais. Para manter aquecido esse fluxo de rendas, é preciso ampliar o alcance dessa forma de gestão da riqueza, subordinando a ela mais atividades econômicas, mais gente e mais espaço geográfico. A isso, nos últimos anos, deu-se o nome de globalização. O bom funcionamento de um sistema baseado na expansão do capital rentista depende crucialmente da imposição, ao mundo, de uma ordem jurídica que estabeleça os "direitos" a essas rendas e de uma ordem política que assegure que esses "direitos" serão acatados. Depende, pois, de um forte poder estatal, único garantidor eficaz desses ordenamentos formais. Não se trata mais, bem entendido, de um Estado de bem-estar, mas de um Estado dotado da capacidade de impor regras (ou "contratos") ao mundo e fazê-las respeitar. Tal Estado precisa deter muitos instrumentos de poder, entre os quais a hegemonia militar, o mais decisivo de todos. Juntam-se então a fome e a vontade de comer. Pois os gastos militares ajudam a manter aquecidos setores decisivos da economia americana, que, como vimos, entrou em um ciclo recessivo. A contínua expansão desses gastos, por sua vez, só pode legitimar-se em um ambiente permanente de tensão e de guerra, real ou iminente. Se a isso somarmos a necessidade de manter aberto o acesso a insumos indispensáveis ao modo de vida norte-americano sendo o petróleo o principal deles , tudo o que vem ocorrendo ganha coerência, sem que seja necessário apelar à imbecilidade de Bush. Estamos diante de ingredientes que, conjugados, abrem um período de enormes incertezas e crises: um enfraquecimento da democracia no interior dos Estados Unidos, com deslocamento do poder em direção aos especialistas em segurança; a ruptura do pacto americano de um "capitalismo de massas"; a expansão da esfera rentista na economia capitalista, agora pressionada pela abertura de um ciclo recessivo; e a questão do petróleo. Tudo isso converge, no âmbito das relações internacionais, para o desprezo pela ordem jurídica tradicional, baseada na soberania dos povos, a escalada dos discursos belicosos e uma chocante banalização da guerra, algo que não se via desde a ascensão do Terceiro Reich. Bush, com certeza, não tem nada a ver com nazismo. Mas, não esqueçamos: Hitler também sorria. * César Benjamin integra a coordenação nacional do Movimento Consulta Popular e é autor de A opção brasileira (Rio de Janeiro, Contraponto Editora, 1998, nona edição).
https://www.alainet.org/pt/articulo/106444?language=es
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