O governo Lula em perspectiva histórica

18/08/2005
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A primeira síntese historiográfica abrangente do Brasil foi feita no início da década de 1850 por Francisco Adolfo de Varnhagen, um destacado intelectual da monarquia. Apesar dos esforços posteriores de Capistrano de Abreu, Manoel Bonfim e outros autores, ela só veio a ser definitivamente superada quase cem anos depois, com a publicação de A formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Jr., em 1942. Entre as inovações que introduziu, Caio percebeu que a colonização do Brasil representou um problema novo, pois os padrões mais conhecidos de dominação usados ao longo da História – a pilhagem de riquezas acumuladas, a cobrança de tributos e o estabelecimento de comércio desigual – não se aplicavam nestas terras sem metais preciosos (no século XVI) e habitadas por tribos dispersas, que viviam no Neolítico. A solução do problema demandou mais de trinta anos e exigiu a invenção de um novo padrão. Organizou-se finalmente uma empresa territorial de grande dimensão, com administração portuguesa, capitais holandeses e venezianos, mão-de-obra indígena e africana, tecnologia desenvolvida em Chipre e matéria-prima dos Açores – a cana. Esses elementos foram articulados em uma holding multinacional movida por força de trabalho escrava, mas regida pelo cálculo econômico e pela busca do lucro. Tudo o que existia aqui – a paisagem, a fauna, a flora e as gentes – teve de ser decomposto e desfeito, depois recomposto e refeito, de outras maneiras, para que o empreendimento mercantil prosperasse. Na origem, diz Caio Prado, não fomos uma nação, nem propriamente uma sociedade. Fomos uma empresa territorial voltada para fora e controlada de fora. A empresa-Brasil sempre deu certo: propiciou bons negócios e gerou altíssimo lucro. Paulatinamente, porém, desenvolveram-se os elementos constitutivos de uma nova nação: “Povoou-se um território semideserto; organizou-se nele uma vida humana que diverge tanto daquela que havia aqui, dos indígenas e suas nações, como também da dos portugueses que empreenderam a ocupação. Criou-se no plano das realizações humanas algo novo (...): uma população bem diferenciada e caracterizada, até etnicamente, habitando determinado território; uma estrutura material particular, constituída na base de elementos próprios; uma organização social definida por relações específicas; finalmente, uma consciência, mais precisamente uma certa ‘atitude’ mental coletiva particular. (...) Esse novo processo histórico se dilatou e se arrasta. Ainda não chegou a o seu termo.” A partir desse olhar, Caio propõe a hipótese forte de que a história do Brasil tem um sentido profundo, o da transformação dessa empresa- para-os-outros, que sempre fomos, em uma nação-para-si, que desejamos ser. Completar esse processo, “fazê-lo chegar ao seu termo” – ou seja, realizar a Revolução Brasileira – é fazer desabrochar a última grande nacionalidade do Ocidente moderno, uma nacionalidade tardia, cujos potenciais permanecem em grande medida incubados. Isso depende, fundamentalmente, do amadurecimento do agente construtor dessa nova nação: o povo brasileiro. Nesse ponto, a obra do historiador Caio Prado precisa ser completada com a do antropólogo Darcy Ribeiro. Apaixonado pelo Brasil, este último nos mostrou que tivemos pelo menos um grande êxito: aos trancos e barrancos, conseguimos fazer um povo-novo a partir dos grupos humanos que o capitalismo mercantil encontrou neste território ou transplantou para cá – na origem, índios destribalizados, brancos deseuropeizados e negros desafricanizados, depois gente do mundo inteiro. Darcy estudou as características fundamentais desse contingente humano filho da modernidade, o maior povo-novo do mundo moderno. Viu que é também um povo-nação, reconhecendo-se como tal, falando uma mesma língua, habitando um território bem-definido e tendo criado o seu próprio Estado. Inverteu radicalmente os velhos argumentos europeus contra nós, afirmando as vantagens da mestiçagem tropical diante de uma pretensa pureza temperada e fria. Debruçado em ampla visão da aventura humana, falou de um povo que ainda está no começo de sua própria história, e cuja identidade – por sua gênese e sua trajetória – não pode basear-se em raça, religião, vocação imperial, xenofobias ou vontade de isolar-se. Nosso povo tem na cultura a sua única razão de existir. A formação do povo brasileiro é um processo muito recente, ainda em curso. A primeira luta verdadeiramente nacional que travamos tem, apenas, cerca de 120 anos: a Abolição da escravatura. Depois, vemos a aparição desse povo como ator político no século XX, mas de forma espasmódica: defendeu o petróleo, barrou golpes militares em 1954 e 1961, realizou o movimento das diretas no início da década de 1980, mobilizou-se para colocar um dos seus na Presidência da República em 1989. Foram os primeiros ensaios, que terminaram inconclusos. Ao lado do imenso êxito, que foi a formação do povo brasileiro, nossa história continua a registrar um tremendo fracasso: esse povo nunca assumiu o controle de sua nação. Mesmo assim, os processos estruturais da sociedade – o crescimento demográfico, a urbanização, a disseminação da informação, a formação de quadros técnicos – apontam inexoravelmente nessa direção. Todos esperávamos que o governo de Lula contribuísse para que o processo histórico avançasse no rumo daquele sentido profundo apontado por Caio Prado, apoiando-se no povo-novo descrito por Darcy Ribeiro. As condições para isso estão dadas. Hoje, porém, é imensa a decepção. Lula optou pelo Brasil empresa-para-os-outros, e anuncia com orgulho que, em seu governo, ele continua indo muito bem, atraindo investidores do mundo todo. Tem razão: segundo as contas do economista João Sicsú, da UFRJ, até o fim deste ano Lula terá pago R$ 450 bilhões aos detentores dos títulos da dívida pública e investido R$ 45 bilhões em educação e R$ 20 bilhões no programa Bolsa Família. Mas isso não é tudo. Dois anos de meio depois de um governo supostamente popular, temos um povo menos organizado, menos informado, menos consciente, mais perplexo e mais descrente de que vale a pena lutar. Ao contrário do que se pensa, o governo Lula é mais conservador na política – especialmente na sua relação com o p ovo – do que na economia. Mente, manipula e desmobiliza. É por isso que não tem salvação. Terminará melancolicamente. Não devemos desesperar. A história não pára. Lula passará, como um tremendo equívoco. O povo brasileiro ainda fará do Brasil o seu lar. Caio Prado e Darcy continuam a nos iluminar nesse caminho. - César Benjamin é autor de A opção brasileira (Contraponto, 1998, nona edição) e Bom combate (Contraponto, 2004). Integra a coordenação nacional do Movimento Consulta Popular. Revista Caros Amigos, agosto de 2005
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