O petróleo é deles
17/06/2004
- Opinión
Coube ao próprio presidente Lula, há pouco mais de um mês,
anunciar discretamente a realização da sexta rodada de licitação
de áreas petrolíferas brasileiras, marcada para o próximo dia 15
de agosto. Nas cinco primeiras rodadas, realizadas durante o
governo de Fernando Henrique Cardoso, empresas estrangeiras
arremataram, a preços simbólicos, áreas descobertas pela
Petrobras, ganhando automaticamente o direito de exportar todo o
óleo delas extraído.
Em 1997, na oposição, o PT votou contra a lei que permitiu isso, e
ao fazê-lo usou adjetivos muito pesados contra o governo de então.
Em 2004, no poder, o PT prepara-se para patrocinar um megaleilão
de áreas onde a Petrobras já encontrou 6,6 bilhões de barris de
petróleo de excelente qualidade, correspondentes a 50% das
reservas nacionais comprovadas.
Que adjetivos merece um partido que age assim?
Nenhum motivo legítimo há para mais esta chocante mudança de
posição. Ao contrário. Toda a evolução do setor petróleo, no
Brasil e no mundo, aponta para a necessidade de fortalecer a
Petrobras e agir com grande cautela. Os argumentos usados por
Fernando Henrique para abrir o setor ao capital estrangeiro
mostraram-se falsos: em vez de pesquisar novas ocorrências, as
empresas privadas entraram apenas nas áreas onde a Petrobras já
havia feito com sucesso a prospecção, uma atividade cara e
arriscada. Compraram bilhetes premiados. É o que se repete agora,
com o leilão dos chamados "blocos azuis", de grande potencial.
Como estamos às vésperas da auto-suficiência na produção
brasileira de petróleo – uma conquista histórica para o Brasil –,
as áreas que o governo Lula entregará às multinacionais só poderão
entrar em operação para exportar. Pelo menos três motivos tornam
essa decisão desastrada.
A geologia brasileira é desfavorável à ocorrência de petróleo, de
modo que não devemos esperar que grandes descobertas se sucedam.
Nossas reservas comprovadas e prováveis, de 16 bilhões de barris,
poderiam garantir um horizonte de autonomia de cerca de dezoito
anos, que será dramaticamente reduzido pela política atual. Graças
ao esforço e à competência das gerações passadas, o Brasil se
tornará auto-suficiente em 2006, mas a política implantada por
Fernando Henrique e confirmada por Lula nos reconduzirá à posição
importadora em bem menos de uma década.
Isso acontece num momento em que dois processos se somam, no
mundo, para sugerir justamente o caminho oposto. De um lado, o
vertiginoso crescimento da China e da Índia, fortemente
dependentes de importações, tem aumentado a demanda mundial e
pressionado os preços para cima. Na próxima década, a China terá
dobrado o seu consumo e precisará obter no exterior mais de 80% de
todo o petróleo de que necessita. A dependência de abastecimento
externo já é de 50% para os Estados Unidos, 60% para a Europa e
100% para o Japão, o que permite antever o potencial de conflito
envolvido nessa questão.
De outro lado, hoje se sabe que as reservas mundiais foram
grosseiramente superestimadas. Em todos os casos, estão sendo
revistas para baixo. Durante a recente epidemia de fraudes
contábeis, as mais respeitáveis multinacionais do setor
apresentaram números falsos para elevar o valor de suas ações. As
reservas da Shell foram infladas em 24%, as da El Paso em 33% e as
da Enron em 30%. Diversos países fizeram o mesmo, inclusive
grandes produtores, como os Emirados Árabes, a Arábia Saudita e o
México. Anunciaram a posse de jazidas entre 20% e 40% maiores do
que as verdadeiras, pois as quotas de produção, definidas no
âmbito da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep),
são proporcionais às reservas declaradas. Há muito menos petróleo
disponível do que se pensava.
Com a elevação do consumo e a descoberta das fraudes, o mercado
mundial mergulhou em grande incerteza. Em cerca de um ano, o preço
passou de 28 dólares para 40 dólares o barril e não apresenta
tendência de queda. Autores insuspeitos anunciam novos choques. O
embaixador Rubens Ricupero escreveu: "A tendência a um aumento
sensível e contínuo no preço do petróleo é estrutural, e não
apenas fruto de manipulações de mercado. O aperto nos preços (...)
pode vir em cinco anos, com mais um choque elevando o barril a 50
dólares." O economista Paul Krugman seguiu a mesma linha: "O
mercado do petróleo está distendido até o limite da ruptura. (...)
Na última vez que os preços atingiram os níveis atuais, pouco
antes da Guerra do Golfo (1991), havia capacidade de produção
excedente no mundo, de modo que havia espaço para enfrentar sérias
perturbações da oferta, caso elas surgissem. Desta vez isso não se
aplica. (...) Novas descobertas têm sido cada vez mais raras.
(...) Os preços do petróleo estão altos e podem subir ainda mais."
Prevê-se que em 2010 atingiremos o pico da produção mundial e
começaremos a ver um declínio na oferta. Alguns, mais assustados,
já falam em petróleo a 100 dólares o barril no fim da próxima
década. O número é especulativo, mas a tendência é certa.
Nesse contexto – com um mercado estressado, preços em alta,
conflitos à vista e às vésperas de um choque anunciado –, o
governo Lula decidiu retirar do controle da Petrobras e entregar a
empresas multinacionais 6,6 bilhões de barris das reservas
comprovadas brasileiras (repito: a metade das reservas comprovadas
brasileiras). Essas empresas farão uma farra de exportações
durante alguns anos. Em troca, nos darão alguns trocados que o
ministro Palocci cuidará de repassar em dia aos bancos
internacionais, nossos credores. Por causa dessa destinação
prevista, a suspensão da licitação, segundo o ministro, "emitiria
um sinal negativo para os mercados".
Que adjetivos merece um governo que age assim?
Petróleo, como se sabe, é recurso não renovável, sem o qual, com a
base técnica atual, nenhuma economia funciona. Um país carente
desse recurso, como o Brasil, e que necessitará, em algum momento,
reencontrar o caminho do desenvolvimento precisa gerenciar com
muito cuidado suas próprias reservas, inserindo-as em um
planejamento estratégico de longo prazo. Perceber isso não depende
de ideologia nem exige formulações sofisticadas. Basta decência.
Invertendo o lema da campanha popular que levou à criação da
Petrobras, o governo Lula decretou que o petróleo é deles. Faltam-
me os adjetivos.
* César Benjamin é autor de A opção brasileira (Contraponto, 1998,
nona edição) e Bom combate (Contraponto, 2004). Escreve uma
análise mensal de economia e política econômica na página
www.outrobrasil.net.
https://www.alainet.org/pt/articulo/110109?language=es
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