Terrorismo, a maior invenção do Ocidente contemporâneo
05/08/2014
- Opinión
Terrorismo não existe. A frase é forte, afinal você é bombardeado incessantemente há pelo menos 14 anos com imagens, fumaça, choro e o famoso “direito de auto-defesa”. Mas objetivamente, terrorismo não existe. No plano internacional ele não tem uma definição aceita, exatamente pela dificuldade de se diferenciar o terrorismo dos outros tipos de violência. Existem inúmeras decisões do Conselho de Segurança da ONU sobre o terrorismo e nenhuma delas identificando uma definição. Existe até um comitê especial só para tratar de “terrorismo”, mas ele, também, não apresenta uma definição clara. O motivo é simples, terrorismo não existe. O que existe é a violência em maior ou menor grau, em maior ou menor escala e com maior ou menor visibilidade. Existe algo de intrinsecamente “pior” no terrorismo? Creio que não. Todas as formas de violência são abomináveis e é impossível dizer que alguma delas é “pior” que outras. De qualquer forma, o terrorismo é a grande invenção de marketing do mundo ocidental contemporâneo.
Em primeiro lugar, é preciso deixar claro algumas coisas: dizer que o terrorismo não existe não é negar o ataque às Torres Gêmeas, por exemplo. Dizer que o terrorismo não existe não é tornar o Hamas um grupo de pessoas corretas e bondosas. Dizer que o terrorismo não existe não é dizer que o ETA ou o IRA foram invenções dos governos europeus. Existe – e sempre existiu – a torpeza humana, não se trata de negar isso. Trata-se de, ao se tentar verificar de fato o que é terrorismo, nada encontrar aí. Terrorismo é o que os EUA e seus aliados dizem que é, e a mídia repete. Senão vejamos:
Nos discursos dos EUA o Hamas é terrorista, mas Israel não. Vamos às definições: O “Patriot Act” publicado pelos EUA em 2002, logo na esteira dos atentados ao World Trade Center separa “terrorismo internacional” de “terrorismo doméstico”. Não cabe aqui fazer uma extensa análise dos conceitos e por isso vamos ficar apenas com o conceito de “terrorismo internacional” que ocorre fora das fronteiras norte-americanas. Segundo a lei americana (que serviu de base para espionar o mundo inteiro) terrorismo é (1) “intimidar ou coagir população civil”, (2) “influenciar as políticas de governo por intimidação ou coerção” e (3) “afetar a conduta de um governo utilizando meios de destruição em massa, assassinatos ou sequestros”. Segundo a definição acima, qual a diferença entre os foguetes do Hamas e os bombardeios aéreos de Israel sobre escolas e a população civil? Eu diria que, tomados pelos efeitos, Israel é muito mais efetivo no seu terrorismo, afinal foram mais 1800 palestinos mortos (a maioria civis sendo mais de 400 crianças) contra 64 soldados israelenses e apenas três civis. Estamos num ponto da barbárie que se trata sim de comparar vidas. Os dados mostram a desproporcionalidade. Israel está coagindo a população civil de Gaza a se retirar do território usando assassinatos e meios de destruição em massa. A definição americana serve perfeitamente.
O que nós, pessoas comuns, não conseguimos entender é, porque o Hamas é o terrorista apenas. A resposta é: porque terrorismo não existe, é um rótulo que os países do ocidente colocam em determinados movimentos e não em outros. Os dissidentes da Síria que lutam contra Bashar-al-Assad são apoiados pelos EUA e por isso são “rebeldes”. Os dissidentes ucranianos pró-Rússia não são apoiados pelos americanos e por isso são “terroristas”. O Hamas não necessita de maiores explicações. Veja que a definição é tão vaga que tem magistrado brasileiro, totalmente despreparado, enquadrando manifestações no mesmo conceito de “terrorismo”. Afinal elas “coagem a população civil” usando violência (explosivos feitos com desodorante e água).
Retorno ao ponto, não existe “terrorismo”. O que existe são níveis de violência, alguns visíveis e explícitos e outros invisíveis e escondidos. E o terrorismo nem se pode dizer que é “mais” violento que outros absurdos. O que é mais violento, um foguete lançado sobre Israel ou o fechamento de Gaza para itens de necessidade básica como remédios e tijolos para construção de casas, afetando milhões de pessoas? O que é mais violento, um assalto na rua em que te tomam o carro ou desvios de verba pública que deixam milhares sem acesso à saúde ou educação? Como medir violência? Através do seu espectro visível e imediato, apenas? O que é mais violento, uma palmada numa criança ou a indiferença parental. Não consta que o pai do menino Bernardo (RS) tenha batido no filho e essa foi uma das explicações do iluminado magistrado para não ter decretado uma medida mais forte na defesa da criança. Deu no que deu. Estamos acostumados a achar que violência é um soco ou uma palavra de baixo calão. Esquecemos que se pode ser extremamente violento dizendo “Vossa Excelência” antes de qualquer frase, e quem duvida está convidado a assistir uma sessão do STF.
Esse é um mal do Ocidente. Estamos sempre procurando relações de causa e efeito. E fazemos isso muito mal, pois não nos ensinaram corretamente. Achamos que se uma coisa aconteceu antes da outra então é causa daquela. Achamos que se duas coisas estão relacionadas deve haver uma causa para ambas ou uma é causa da outra. E assim nos vendem a história. Se o Hamas lançou um foguete ele deu causa à resposta israelense. Se os manifestantes gritavam contra a polícia, eles deram causa à pancadaria subsequente. E não existe nada mais errado que isto. Esse tipo de análise escolhe deliberadamente o que colocar como causa. Veja, que no caso de Israel não se pergunta o motivo do foguete do Hamas, ele é fruto da “brutalidade”, da “irracionalidade” inerente ao “terrorista”. No caso brasileiro não se pergunta o porquê do protesto e da quebradeira. Solta-se a civilizada “tropa do braço”.
É a tal confusão entre violência visível (ou tornada visível pela mídia) e a violência invisível (especialmente para classes mais abastadas). Confúcio já se perguntava 500 anos antes de Cristo se “violento era o rio, ou violentas eram as margens que constrangiam e domavam esse rio”. Será que o rio sem margens não se tornaria um calmo lago? Será que a única violência que existe é a física, visível? Por que a ofensa é uma coisa intolerável socialmente e palavras polidas que incitam ódio e discriminação são apenas “exercício de opinião”? Chamar alguém de “canalha” dá processo por injúria, mas quando se usam belas palavras para defender o desemprego e a miséria, como “ajuste social” ou “choque de gestão” é aceito sem maiores problemas? Quem é mais violento, um manifestante que dá uma “voadora” num escudo de um policial ou o policial que usa do porrete e do gás de pimenta depois do cidadão dominado? Pense … Quem é mais violento, o juiz que libera banqueiros, políticos e empresários da prisão ou aquele que condena pobres à cadeia por roubar comida?
Voltando ao terrorismo, ele não existe. A violência é a única coisa que existe. E existiu desde que a natureza se formou. Carthago foi derrotada em guerra contra os romanos na antiguidade, teve seus habitantes mortos e jogados de muros por três dias, suas ruínas queimadas e sal jogado no solo pelos conquistadores. E os romanos são “um dos berços da civilização ocidental”. Os católicos durante as Cruzadas atacaram outros cristãos no seio da Europa (como os Cátaros, por exemplo) matando milhares de pessoas e deixando seus corpos expostos como aviso. E os católicos estavam agindo em nome de Deus. As Guerras Religiosas do século XVII racharam a Europa em inomináveis e indizíveis atos, todos cometidos por polidos príncipes e nobres pregadores. A Alemanha nazista foi julgada e condenada pela história, a bomba de Hiroshima não.
Aqueles que detêm o poder nos fazem crer que existe a violência do lado certo da história e aquela que está do lado errado. Sem nos contar que essa escolha de “certo” e “errado” não nos é permitida fazer e apenas aceitar. Roubar uma carteira merece punição imediata, mas fraudar licitações oferece uma bela perspectiva de defesa. Quebrar a vidraça de um banco é crime, mas espancar pessoas na rua como faz a polícia é “contenção”. Os foguetes do Hamas são terrorismo, mas as mais de 400 crianças destroçadas sob ataques em escolas e hospitais feitos por israelenses são “efeitos colaterais do direito de auto-defesa”. A ilha de Cuba fiscalizar a entrada e saída de cidadãos é inaceitável, mas Israel erguer muros e criar os “check points” que inviabilizam a movimentação dos palestinos em Gaza é normal.
Nós precisamos entender que o termo “terrorismo” é usado para que seja induzida uma distinção entre os “bandidos” e os “mocinhos”. E essa distinção muda conforme os interesses dos poderosos. Osama bin Laden era um “combatente da liberdade” em 1979 quando treinado e armado pela CIA para explodir soviéticos. Virou “terrorista” depois dos anos 2000. Saddam Hussein era “o presidente mais progressista e moderno do mundo árabe” quando recebia dinheiro e armas americanas para lutar contra o Irã em 1980. Virou o símbolo do “eixo do mal” nos anos 90. A África do Sul do apartheid era “um regime civilizado e irmão” para americanos e ingleses durante os anos 80, e Mandela um “terrorista” preso. Veja como as coisas mudaram.
Esqueça o termo “terrorismo”, ele não existe. Pense na violência. Pense na violência explícita e na escondida. Na física e na simbólica. Entenda que violência é ofender verbalmente, mas também é fechar o vidro do carro. É defender o desemprego que leva a fome e miséria de muitos pelo “bem do país” ou da “economia”. Violência é dar um soco, mas é também não dar oportunidade. Violência é achar que existem “condições iguais” e que o ser humano pode ser medido por algum critério “meritocrático”. Violência é polidamente defender o preconceito de classe, de credo, de sexo ou de raça. Violência é alterar uma manchete de jornal. É achar que “eu paguei mais” logo posso mais …
Não fiquemos presos ao que não existe. Não fiquemos presos a rótulos vazios que fortalecem desigualdades históricas, sociais ou políticas. Parem com as mortes. Parem de estraçalhar crianças. Parem de ceifar vidas que não conhecem nada além da violência, em seus mais variados aspectos. Não usem desculpas para dizimar inocentes e envenenar o futuro de umas crianças contra outras. Terrorismo não existe. Corpos de civis e crianças mortas é que deveria ser a nossa preocupação. Fome e sede também são formas de violência. E não é porque você come e bebe bem que elas não existem.
.oOo.
- Fernando Horta é historiador, professor, doutorando em Relações Internacionais UNB
6/ago/2014
https://www.alainet.org/pt/articulo/102226
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