Grafite, o negro

04/05/2005
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Em um capítulo dos insultos, negro safado, negro de merda, macaco, ocupariam um bom e infamante lugar. Que nos perdoem os que não são negros. Não sabem. Ao que um dia foi desonra ser negro, ter a pele escura, os lábios grossos, cabelo “ruim”, nariz chato, uma desonra que vinha menos dessas características físicas, mas da história de escravos, de escravidão, de gente submetida à condição de animais de duas pernas, quis a condição de sobrevivência da desonra no século vinte e um o acréscimo desses adjetivos, safado, de merda, filho da puta, e essa pérola do insulto, que faz de um substantivo uma qualificação, a palavra macaco. Os brancos, os não-negros, não sabem. Gostaríamos de ter uma pequena ajuda da sua imaginação. Uma coisa é dizer-se de alguém que é um negro. Os não-negros vêem nisto um chamamento óbvio, uma evidência da pele, da raça. Uma característica genética, biológica, digamos assim. Uma característica histórica, deveriam saber, e sabem, em momentos de raiva, sabem: esta é uma característica de séculos de servidão. Mas em circunstâncias de paz, de amor e concórdia entre os homens, dizer-se de alguém que é um negro é dizê-lo um ser qualificado, e bem qualificado, se o adjetivo vier antes do nome. O negro Machado de Assis. O negro Cartola. O negro Leônidas. Dizendo melhor, tamanha é a força desse negro, que ele se torna um substantivo, adjetivado pelo nome da pessoa que lhe segue. O negro Padre Antonio Vieira. Percebe-se, pela posição da palavra, o grau de excelência e originalidade do indivíduo, que assim é saudado como se recebesse um tapete vermelho diante e antes de si. Em uma terra de brancos, em tempos de paz, a maior distinção de alguém seria ser recebido como O Negro. Um ser muito raro. Uma qualificação diferente é o negro simplesmente adjetivo, vindo depois do nome. Aqui ele é uma caracterização rebaixadora, quase a desqualificar. Carlos Gomes, o negro. Padre Vieira, o negro. Cervantes, o negro, se assim fosse possível desqualificá-lo. Isto quer dizer que certo homem tem essa mancha, que ele não é tão grande assim, que ele não tem sangue bom, vale dizer, que ele não é da corte e do reino do sangue azul. Se o seu próprio nome, isolado, tem valor, pelo adjetivo descobre-se o ferrete, a marca do servo, de coisa, de bem semovente. Diz-se, pelo adjetivo posposto: não passa de um negro. Esse alguém será na melhor das hipóteses um homem que furtou o seu lugar na sociedade. Ou assaltou, por violência, ou não passa de um farsante, um dissimulado, que deseja estar onde não pode nem deve. Machado de Assis, o negro. Isto diminui para Machado, o negro. Que no final é Machadinho, um negro. Um gênero comum de cavalo baixeiro. Se assim é, se assim se faz com pessoas de reconhecido valor, em momentos de intenção malévola, mas de serena má intenção, o que dizer, o que fazer com pessoas, digo, negros, de menor feito? Em momentos de raiva, de ódio, de explosão de instintos que pedem sangue, como ofender a pessoas, digo, negros? Para estes casos o engenho humano criou o reforço, o pleonasmo da condição histórica: negro de merda, negro filho da puta, acompanhado de cuspes na cara. Ou então macaco, macaquito, uh! uh! uh!, que melhor se faz se acompanhado por gestos simiescos. Em peso, nos estádios de futebol da Europa, ou até nas deslocadas Londres no Hemisfério Sul. Não digam por favor que isto são coisas do futebol, que são coisas da adrenalina, que no calor da partida fere-se, quebram-se pernas, insulta-se e mata-se e depois se esquece. Não digam por favor que isto é coisa restrita ao mundo da partida, do jogo, ou como diria algum súdito da Rainha na América Latina, que esto es fair play. Que jogo limpo? Há muito o futebol deixou de ser somente um jogo, uma partida. Há muito ele é um teatro vivo, uma representação em que todos são atores, dos jogadores ao público, que interferem e mudam os dois atos, em noventa minutos. O autor desse novo drama passou a ser a própria sociedade. Há muito que esse jogo deixou de ser o encontro de duas equipes ideais, de jogadores ideais, que amam o esporte como uma fruição. Aqui, em lugar da confraternização, da comunhão de pessoas, dos ideais olímpicos, mais que nunca, vale tudo: roubos, furtos, assaltos, mutilações, mortes, pela razão mui simples que o importante é ganhar, de qualquer forma e jeito. Ou melhor, de preferência pelos expedientes mais sórdidos. Envenenamento, suborno, água suja, armadilhas, ciladas, agressões que ponham ferimentos no corpo e alma do adversário, do inimigo, daquele que deve ser destruído. Esta é a regra do fair play do novo drama, do novo futebol: ganhar. Se possível sem futebol. Quando o jogador Grafite, da equipe do São Paulo, foi chamado de “negro de mierda”, de “mono negro”, os dirigentes do Quilmes, time argentino, nada viram nisso que merecesse uma denúncia policial. Qué pasa? “Si Grafite se va a ofender porque alguien le dice una grosería, entonces que vaya a jugar con las muñecas. No es para el fútbol". E para esse espanto, para essa estranheza, compreendemos-lhes alguma razão. Ora, desde a Guerra do Paraguai, no século XIX, que argentinos chamavam às tropas brasileiras, fortalecidas por negros bons de morrer, então escravos, de “macaquitos”. A alcunha pegou, e mais voltava e volta nos conflitos, sempre que se desejava e deseja ressaltar as diferenças entre latinos miscigenados, negros, e os latinos menos misturados, os argentinos, que Jorge Luís Borges dizia serem os únicos europeus conhecidos em sua vida. Para não ir muito longe, lembramos que em 1996, ao saber que a seleção de futebol argentina iria jogar contra a seleção do Brasil ou da Nigéria, assim anunciou os adversários o periódico Olé: “Que venham os macacos”. Ora, é natural. Negros, macacos, tudo a ver. Tão natural quanto primos pobres que se insultam, que não se reeducam nem na desgraça, nem mesmo quando a RAF lhes mostra que todos são macacos. Daí que compreendamos que chamar a um atleta negro, que leva o nome de Grafite, de negro de mierda, de negro hijo de puta, e temperar tais naturalidades com cuspidas em seu rosto, nada é demais, para alguns periodistas argentinos. E que completem, mui britanicamente, que faltou a um simples negro o low profile. É histórico. Daí que não entendam o escândalo formado, a polícia, a prisão do jogador argentino, afinal um pobre rapaz, da província, do interior, que somente fez o que todos fazem, há mais de dois séculos. Que pasa? Então os negros deixaram de ser negros? Então deixaram de ser negros de merda, negros filhos de uma puta, monos, macaquitos, como sempre o foram há décadas? “Fueron expresiones que son comunes en un estadio cuando hay fricción e semejante nível de adrenalina”, explicou, pensou em justificar uma autoridade do governo argentino, o Ministro do Interior Aníbal Fernández. Mirem, uma autoridade, um indivíduo que por mais de um motivo deveria ter respeito para com os demais povos e nações. Mas nada achou nos insultos que causasse espanto ou indignação. É cultural, do ministro ao ignorante jovem: nada há de criminoso em maltratar alguém em razão da raça, se este alguém, por supuesto, for um negro em um estádio de futebol. Infelizmente, a hora enviar este artigo já vai longe. Jesús pensa que me farei ausente. Luanda, minha filha, reclama, e diz que hoje eu me atrasei muito, porque não sabe que muito a humanidade vai e está atrasada. Então por aqui terminamos. Mas não saio antes de te dizer, Grafite, que este artigo foi escrito com o coração apertado no espírito, para que do teclado brotassem apenas palavras isentas, ponderadas, serenas. No entanto compreenderás o quanto me segurei, se souberes que o tempo todo ouvia uma composição de Pixinguinha, o chorinho 1 x 0. O que em letras convencionais quer dizer: Um a zero fizeste para nós, Grafite. Que belo gol, homem, os negros de todo o mundo se levantam nos estádios.
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