Um pequeno dicionário

13/07/2006
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Um desembargador aposentado, nestes dias no Brasil, tentou ser humorista à custa dos excluídos da nossa harmoniosa sociedade de classes. Ele publicou um artigo, que mais se devia chamar um termômetro moral da nossa elite, em que pôs o excelso título de “Pequeno dicionário da empregada doméstica”. Não viesse de quem veio, de um indivíduo que ocupou altos cargos na Justiça do país, de um, digamos, escritor, filiado à União Brasileira de Escritores, para maior vergonha da instituição, o artigo seria deitado ao limbo, para o justo repouso no olvido. E nos perdoem por favor a construção da frase especiosa e preciosa até aqui. Se assim nos expressamos, à guisa de exórdio, é porque há que obedecer ao rito e ritual do objeto, ao texto de um expert em Direito Civil, que se publicou no magnífico órgão de imprensa da Associação Paulista dos Magistrados. Mas descansem agora, porque passaremos aos fatos. Melhor dizendo Aos factos Desta forma o elevado ex-homem público deu início ao, como dizê-lo?, ao ao ao, enfim, dizia-o: “Foi por causa do Alfredo. Ele ligou para sua própria casa. A empregada era nova. Ele não a conhecia. Sua mulher, a Esther, digo (ou ele diz), dona Esther, tinha acabado de contratar. A moça era do norte. De Garanhuns. Nada contra, mas....sabe como é. Nós, brasileiros, sabemos! O Alfredo morava num sobrado. O telefone da residência ficava num nicho, embaixo da escada. No décimo segundo toque a Adamacena, a tal da empregada, atendeu: “Alonso!” Na dúvida, o Alfredo perguntou: “De onde falam?” Ao que a Adamacena respondeu: “Debaixo da escada!” Foi aí que o Alfredo começou a catalogar as expressões da serviçal...” Pero este raro instante exordial é tão bom, que nele deveríamos demorar mais um pouco. Mirem só a graça e as graças perpetradas pelo insigne ex-magistrado em um só parágrafo: “A moça era do norte. De Garanhuns. Nada contra, mas ... sabe como é. Nós, brasileiros, sabemos!”. Gizaram, juizaram bem ante tamanha mixórdia de preconceito, pré-asnice e sesquipedal ignorância? Vejam a que mãos somos obrigados a deitar nossas causas e destinos. Em primeiro lugar, Norte e Garanhuns não se encontram em nenhuma geografia, a não ser em determinada oligofrenia média. Garanhuns fica em Pernambuco, Pernambuco fica no Nordeste, e o Norte, bem, os brasileiros informados sabem: o Norte está não só em outro lugar da rosa-dos-ventos no Brasil: o Norte é outro mundo, de clima equatorial, de florestas e de cultura distinto do agreste pernambucano. Em segundo, a sua intenção, mal disfarçada em véus rotos, foi atingir pela origem da “moça do Norte” a cidade de nascimento do Presidente Lula. Errou mais uma vez, com a imprecisão típica dos que se julgam em posições e locais mais avançados. O Presidente Lula é de Caetés, um município vizinho à cidade da moça do norte, que, escrita assim, com o norte em inicial minúscula, pode apenas significar que a moça tem uma direção, sabe aonde vai, e portanto possui mais senso e juízo que o escriba. Mas não nos percamos, não vamos também ficar sem um norte. Dos factos, de fato Segundo o preclaro e excelso ex-magistrado, este seria o “dicionário” das empregadas domésticas, o pequeno dicionário das empregadas para ser lido pelas classes cultas, do gênero e classe de juízes como ele: Denduforno - dentro do forno
Dôdistongo - dor de estômago
Doidimai - doido demais
Dôsitamu - dor de estômago
Gáscabô - o gás acabou
Iscodidente - escova de ente
Issokipómoiá - isto aqui pode molhar
Ládoncovim — lá de onde que eu vim
Lidialcom - litro de álcool
Lidileite - litro de leite
Mardufigo - mal do fígado
Mastumate - massa de tomate
Nossinhora - nossa senhora
Óikichero - olha que cheiro
Óiprocevê - olha pra você ver
Óiuchêro - olha o cheiro
Oncotô - onde que eu estou
Onquié - onde que é
Onquitá - onde está Etc. etc. etc. poderia ser a leitura geral das “palavras” coligidas pelo senhor dicionarista. Se ele fosse um homem culto de facto, e não um culto de fato, da toga que um dia vestiu, saberia que as diversas falas de uma língua não significam uma superioridade cultural, civilizacional, de uma fala sobre a outra. Ora, as pessoas que vêm do interior do Nordeste, e é a elas que a sua brincadeira de mau gosto se refere, pois ele, o ínclito desembargador, vê a si próprio como de outra classe (que para ele quer dizer, de um tipo mais alto e refinado de gente, e não se pergunte o que Molière acha e julga disto), sua excelência parece não saber que os brutos migrantes dos sertões nordestinos carregam, além da miséria, uma gramática que é uma história da língua. Quando eles dizem “figo”, em lugar de “fígado”, ou “hay”, em lugar de “há”, ou “in riba”, em lugar de “em cima”, ou mesmo “joga no mato”, por “deixa fora, joga fora”, essas palavras, esses modos e conteúdos de fala não nasceram de uma carne e sangue e lugar inferiores. Graciliano Ramos, um clássico de homem e de escritor da língua portuguesa, quando estava em dúvida sobre a regência de um verbo, fechava os olhos e procurava a lembrança longínqua da sua infância no sertão de Pernambuco. A gramática normativa mais tarde confirmava a sua recordação. Nunca errei uma regência, ele chegou a comentar certa vez. E Graciliano, sabe-se, escrevia um pouco melhor que o mundo jurídico do Brasil. Esses cortes de sílabas, esse “denduforno” em lugar de “dentro do forno”, esse corte de fonemas na fala de todos os dias, essa aglutinação, é um procedimento comum em todas as falas, do Norte ao Sul do mundo, do Leste ao Oeste do planeta, em todas as classes e gentes e tempos. Diz-se até que é uma obediência à lei do menor esforço. Quem é bom de ouvido sabe que a última sílaba de uma palavra em uma frase não se ouve, adivinha-se pelo sentido. Um “Como vai de saúde?”, sai quase como um “Como vai de sau?”. Se os ingleses transformam consoantes de palavras em vogais, bravo, isto é mesmo um fenômeno lingüístico. Se os norte-americanos pegam os tês e põem em seu lugar erres, isto só pode mesmo ser inglês moderno. Bravo. No Brasil, na região que move a economia, quando um paulista insiste em pronunciar “record” à inglesa, mas com erres à brasileira, ou quando pronuncia “meni”, em lugar de “menu”, está apenas no exercício da sua cultura poliglota. Aplausos. Quando ele, no bar, pede um só, mas ainda assim pede “um chopes”, é uma graça.Viva. Mas um “oxente”, um “arretado”, que traem e trazem a marca da fala de nordestinos, esses baianos, esses nortistas, ah, isto só pode mesmo ser uma prova insofismável de subdesenvolvimento. O que lembra Marx, quando dizia que os proletários se embriagam no bar. Os burgueses vão ao club. O dicionário que falta Prestaria um grande serviço à cultura geral e ao mundo civilizado em particular um juiz que tivesse a coragem de escrever um dicionário da língua bárbara que falam os seus pares. Se não um dicionário, que é obra mais ambiciosa, que exigiria o esforço hercúleo de grupos de advogados recuperados, pelo menos um guia, um roteiro, algo que traduzisse o sentido único, pedante, do latinório vazio de tantas e inumeráveis peças. Um livro que traduzisse, por exemplo, expressões como “cártula chéquica, ergástulo público, peça increpatória” por algo mais simples como “folha de talão de cheques, cadeia e acusação’, respectivamente e nessa ordem, para ser mais pleonástico e preciso. Pensamos em um dicionário, mas pensamos pouco. Seria preciso um renascer das cinzas, como uma fênix, para usar o dizer retórico dos causídicos. Seria necessária uma nova Alexandria, com a sua maravilhosa biblioteca antes do incêndio, para evitar coisas, assaltos à razão como “"V. Exª, data maxima venia, não adentrou as entranhas meritórias doutrinárias e jurisprudenciais acopladas na inicial, que caracterizam, hialinamente, o dano sofrido." Ou mesmo “desvestido do supedâneo jurídico válido o pedido feito”. Que língua é esta? Que povo, que bárbaros são estes, que se posicionam com fatos negros aos ombros e proferem sandices como “com tal proceder, o indigitado tisnou várias regras insculpidas no caderno repressor”, quando querem apenas dizer que o desgraçado réu violou alguns artigos do Código Penal? Que coisas defendidas por togas seriam capazes de transformar uma sentença em “ por não constar as decisões proferidas monocraticamente em cognição exauriente”? Em apelo extremo, em recurso extraordinário, reconhecemos que a fantasia de conceber um dicionário para consertar semelhante mundo é um remédio heróico, que jamais chegaria a um mandado de segurança. Que venha então um diploma provisório, mais conhecido por medida do por enquanto. Um vade-mecum, vá lá. Com uma gota de latim, para ornar e ornejar a burrice e o preconceito de tais excelências togadas. Per omnia secula seculorum.
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