Para Stedile, agora o Brasil tem chance de derrotar o latifúndio
14/07/2003
- Opinión
O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva está disposto a
dar absoluta prioridade para a reforma agrária, afirma João Pedro
Stedile, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST). Junto com os demais integrantes da direção
do MST, Stedile participou de uma audiência com Lula e vários
ministros, no Palácio do Planalto, dia 2. O presidente recebeu o
MST de forma muito simpática. Usou o boné com o logo do movimento,
brincou com uma bola de futebol fabricada nos assentamentos e
chegou a oferecer a um sem-terra um biscoito também produzido
pelos trabalhadores rurais. Foi o suficiente para que a mídia,
expressando o ponto de vista dos latifundiários, provocasse
artificialmente um escândalo nacional.
Na entrevista concedida ao Brasil de Fato, Stedile conta como foi
a reunião, os principais tópicos discutidos e suas impressões
sobre o encontro com Lula. Otimista, Stedile acredita que o Brasil
tem a oportunidade histórica de derrotar o latifúndio atrasado.
Quem é
João Pedro Stedile é um dos fundadores do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e membro da direção Nacional
do Movimento. É formado em Economia pela PUC (Pontifícia
Universidade Católica) de Porto Alegre (RS) e com Pós-Graduação em
Economia pela UNAM (México). Filho de pequenos agricultores,
Stedile nasceu em Lagoa Vermelha (RS) em 26 de dezembro de 1953.
Dentre as várias lutas desenvolvidas, atuou como membro da
Comissão Regional de Produtores de Uva, dos Sindicatos de
Trabalhadores Rurais do Rio Grande do Sul, assessorou a Comissão
Pastoral da Terra no Rio Grande do Sul e, em nível nacional,
trabalhou na Secretaria da Agricultura do Governo do Estado do Rio
Grande do Sul; desde 1979, participa das atividades da luta pela
reforma agrária no Rio Grande do Sul e no Brasil.
Stedile é autor de vários livros: Assentamentos: Uma Resposta
Econômica da Reforma Agrária , A Luta pela Terra no Brasil (também
lançado em italiano – Senza Terra ), A Questão Agrária Hoje – 7ª
edição, Questão Agrária no Brasil , A Reforma Agrária e a Luta do
MST , Brava Gente – a trajetória do MST e a luta pela terra no
Brasil (também publicado em espanhol, pela editora das Madres de
la Plaza de Mayo). Foi entrevistado por praticamente todos os
jornais e revistas de circulação nacional; escreveu inúmeros
ensaios e artigos sobre a questão agrária, publicados no Brasil e
no exterior.
Brasil de Fato – A direção do MST esteve com presidente Lula para
discutir a situação da reforma agrária no país. Qual avaliação o
movimento fez desse encontro?
João Pedro Stedile – A audiência foi muito importante e positiva,
porque permitiu uma avaliação conjunta da oportunidade histórica
que temos para implantar a reforma agrária. Há um entendimento
comum, no governo e nos movimentos sociais, de que existe uma
correlação de forças favorável para derrotar o latifúndio
atrasado. O governo está disposto a priorizar a reforma agrária no
segundo semestre, fazendo inclusive uma autocrítica, de que nesses
primeiros seis meses apenas se preocupou com a política agrícola
(plano safra) e com arrumar a casa. O sinal positivo da audiência
foi tão claro, que o latifúndio atrasado e seus representantes na
imprensa e no parlamento reagiram de forma imediata.
BF – Quais foram as principais reivindicações apresentadas pelo
MST? Qual o compromisso estabelecido por Lula?
Stedile – O MST não levou ao presidente uma pauta de
reivindicações. Levamos um documento com reflexões do que
consideramos necessário para uma verdadeira reforma agrária.
Mostramos ser necessário um processo "massivo", ou seja, para
atender os milhares de pobres no campo, e que a reforma agrária
precisa vir casada com agroindústria, assistência técnica e
educação no meio rural. E em vez de priorizar exportações e o
agronegócio, precisamos de um novo modelo, que priorize a produção
de alimentos, o mercado interno, a geração de empregos e a
distribuição de renda. Essa é a essência de nosso documento. No
Planalto, houve debate, diálogo, não uma pauta. Notamos uma
convergência muito grande de idéias, fruto dos compromissos
históricos dos partidos de esquerda no governo, da pessoa do
presidente e do acúmulo dos movimentos sociais.
BF – De que maneira o presidente pretende priorizar a reforma
agrária? Foram estabelecidos prazos para o cumprimento das metas
pelo Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA)?
Stedile – Primeiro, o governo vai mobilizar vários ministérios,
não só o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Segundo, foi
constituído um grupo interministerial, para um levantamento
concreto de quantas terras públicas e hipotecadas com órgãos
públicos podem ser mobilizadas imediatamente. Terceiro:
compromisso em reestruturar o Incra, com os recursos financeiros e
humanos necessários. Nós apresentamos a idéia de que é possível em
quatro anos de governo assentar no mínimo um milhão de famílias.
O governo prefere trabalhar com uma meta política, fazer uma
reforma agrária "massiva" e com qualidade. Tudo vai depender da
capacidade dos movimentos sociais e da correlação de forças. Se
pudermos, vamos conquistar um milhão. E o governo se comprometeu a
preparar nas próximas semanas um plano nacional de reforma
agrária, que considere todas as idéias que apresentamos. Será a
principal ferramenta para um grande programa de geração de
empregos no país.
BF – Qual o novo modelo de assentamento apresentado pelo MST? No
que ele se difere do anterior? Qual a avaliação que o presidente
fez desse novo projeto?
Stedile – É difícil falar em modelo. Apresentamos idéias
históricas, acumuladas ao longo desses anos, pelo MST, movimentos
sociais e intelectuais orgânicos que entendem de reforma agrária.
Não podemos nos prender em simplesmente distribuir lotes
individuais, mas trabalhar a perspectiva de lotes menores e
organizar a cooperação agrícola na produção. Trabalhar a
perspectiva de aglutinar as casas em agrovilas, urbanizar o núcleo
comunitário para facilitar o acesso a serviços públicos como água,
luz elétrica, escola. Combinar com assistência técnica, em que os
técnicos morem nos assentamentos.Desenvolver a agroindústria, como
forma de melhorar a renda e criar empregos para jovens do meio
rural. Casar com um grande processo de escolarização, de educação
adequada.
Finalmente, construir um novo modelo tecnológico, baseado na
agricultura orgânica e não de agrotóxicos.
BF – Um dos problemas dos agricultores assentados é a falta de
crédito para a produção. Sabe-se que em algumas regiões a produção
agrícola é responsável por abastecer vários municípios. Como esses
aspectos foram avaliados pelo presidente?
Stedile – Em primeiro lugar há um aspecto de emergência, que foi
solucionado. O presidente assinou um decreto que normatiza e
autoriza a Conab a compras antecipadas e compras diretas dos
produtos dos assentamentos, em todo o país. Foram liberados R$ 400
milhões do Ministério da Fome Zero. Essa é uma grande conquista,
pois garante a compra, por parte do governo, e a preços de
mercado, de tudo o que o assentado produzir. Assim, ele foge do
atravessador. Por outro lado, como são recursos do Fome Zero, a
idéia é que a Conab repasse esses produtos para as prefeituras e
escolas do próprio município, para atendimento dos pobres. Além
disso, os assentados mais antigos e mais estruturados terão acesso
aos recursos previstos no Pronaf, do plano safra.
Aqui a questão é garantir que os bancos sejam desburocratizados. E
eles nos garantiram que há um grupo de trabalho para
desburocratizar, especialmente o Banco do Nordeste e o Basa.
Apresentamos também a proposta de recriar um novo programa de
crédito especial para os assentados, nos moldes do Procera. Ou
seja, dentro do programa do Pronaf, ter uma modalidade que seria
especial, sem burocracia, adequada à precariedade das famílias que
estão chegando à terra. Vamos formar um grupo de trabalho com o
MDA e o Incra para avançar nessa proposta. Por fim, há o
compromisso do governo de liberar imediatamente recursos para um
programa que temos de agroindústria nos assentamentos.
BF – Nos últimos meses, a violência no campo tem se acirrado. A
formação de milícias organizadas pelos latifundiários para conter
os sem-terra tem sido amplamente divulgada pela imprensa. Como o
presidente avaliou este cenário?
Stedile – Esse tema não entrou no debate. Nossa avaliação é de que
existem dois aspectos. Há muito blefe de latifundiários atrasados,
interessados em criar um clima de falsa tensão no campo, para
assustar governo e opinião pública. Mas também há setores
radicalizados dos fazendeiros que criam suas milícias armadas,
empresas de segurança, contratam jagunços, em geral perto da
fronteira, ligados à pecuária extensiva, que fazem contrabando de
armas pesadas. Mas esses grupos são poucos, insignificantes e não
têm apoio das organizações mais representativas dos fazendeiros.
Para esses, só há um caminho: a Polícia Federal abrir inquérito e
prender os criminosos. O ministro da Justiça garantiu que vai
colocar a PF atrás desses marginais.
BF – A postura dos latifundiários se deve a um aumento de
ocupações que o MST vem realizando?
Stedile – Não. Primeiro, esses latifundiários atrasados se armam e
ficam criando agitação sempre que percebem que sociedade e governo
avançam para realmente combater o latifúndio. Segundo, as
ocupações de terra ocorrem como resultado de uma grande
contradição que existe: de um lado, grandes áreas improdutivas; de
outro milhões de famílias sem terra. O governo anterior passou
quatro anos reprimindo a luta pela terra e isso gerou uma demanda
social reprimida, que agora aparece. Depois, o modelo do
agronegócio é perverso.
Por mais que aumente a produção de soja, ou de grãos e as
exportações, isso só enriquece uma minoria de fazendeiros. Por
último, porque os pobres do campo se deram conta de que melhorou a
correlação de forças para conquistar a reforma agrária.
BF – Após o encontro com Lula, o MST pretende oferecer uma trégua?
Stedile – A imprensa, com seus editores de direita, introduziu a
palavra trégua na questão da reforma agrária. Trégua existe quando
há uma guerra. No nosso caso, não há guerra. Temos ao nosso lado a
sociedade, o governo e os movimentos sociais, querendo aplicar a
Constituição que determina que todo latifúndio improdutivo deve
ser devolvido à sociedade para gerar trabalho e produção. O
presidente, sabe que todas as mudanças sociais dependem das lutas
sociais. As ações do MST estão dentro da lei. Um acórdão do STF,
de alguns anos atrás, considerou que "a ocupação de terras como
forma de pressão para a reforma agrária é uma forma legal,
legitima do povo cobrar a reforma agrária". Pode-se considerar
abusivo (embora não ilegal) uma manifestação nos prédios públicos
ou rodovias.
Mas todas as manifestações são temporárias, feitas apenas para
chamar atenção. A imprensa de direita é que classifica essas
manifestações de ocupações de prédios públicos. A pior ocupação de
um espaço público é quando uma empresa privada se apropria das
estradas e cobra pedágio, ou quando fazendeiros roubam a terra
pública, ou quando empresários desonestos se apoderaram de
empresas estatais, com dinheiro do BNDES. Temos o compromisso do
ministro de que a PF vai abrir inquérito contra os fazendeiros
fascistas que estão se armando. Ao MST, só interessa uma reforma
agrária pacifica.
BF – Qual avaliação o presidente fez sobre os transgênicos no
país?
Stedile – O presidente revelou que 90% de seu governo é contra os
transgênicos, e que ele, pessoalmente, é contra. Mas reconhece que
o tema é mais complexo e polêmico, e que o governo precisa
consultar a sociedade e a comunidade científica, para que a nova
legislação seja adequada à realidade.
BF – Está sendo elaborado por uma comissão mista do Congresso um
projeto de lei sobre transgênicos. O que o governo acha disso?
Stedile – O governo criou um grupo de trabalho interministerial, e
o Ministério de Ciência e Tecnologia está preparando as consultas
e uma primeira minuta. O IPEA ficou encarregado de organizar o
debate com a sociedade. Há setores do governo, no Ministério da
Agricultura e na Embrapa que querem os transgênicos. Mas
advertíamos que a Monsanto tem a patente mundial sobre a soja
transgênica, que o mercado brasileiro é a única salvação para a
Monsanto. E que se o governo liberasse a soja, a Monsanto
receberia em royalties em torno de 500 milhões de dólares de nossa
sociedade. O governo nos assegurou estar atento aos interesses da
Monsanto e que não vai tolerar monopólio e nada que prejudique os
interesses dos agricultores brasileiros. Dissemos ainda que o
governo não deveria ter pressa em fazer uma nova lei de
transgênicos. Que bem ou mal, a atual legislação resolve. Que
devemos divulgar para que todos os agricultores saibam que é
expressamente proibido plantar sementes transgênicas, e que todo
supermercado precisa colocar rótulo dos produtos que tenham
transgênico.
BF - Após o encontro do MST com Lula, a bancada ruralista e as
elites brasileiras ficaram enfurecidas. O que significa esse tipo
de reação?
Stedile – A simbologia da audiência mostrou que existe nova
correlação de forças unindo o governo, os partidos de esquerda, os
movimentos sociais, as igrejas e a sociedade. O latifúndio ficou
só. Então, para defender privilégios, partiram para suas armas
clássicas: orientaram seus parlamentares, escalaram seus
jornalões, jornalecos e televisões para atacar. Os fazendeiros
resolveram mostrar as armas, provocando o governo.
BF - O resultado foi o pedido de abertura de uma CPI, aprovada no
Senado, para investigar o MST. O que representa a abertura dessa
CPI para o MST?
Stedile – Em menos de 12 horas, tentaram criar uma CPI, é um
recorde na historia da legislatura brasileira. Na verdade, é forma
de pressionarem o governo e arrancarem outros interesses.Não temos
medo da CPI. Vamos utilizá-la para explicar porque existem o
latifúndio, os sem-terra, as terras griladas, o trabalho escravo
etc.
Vamos saber quantas fazendas cada senador tem, entre os que
estarão nos inquerindo. Nosso papel é organizar os pobres do campo
para lutar contra a desigualdade e pelo seu direito à terra. O MST
vai completar vinte anos, a sociedade nos conhece. Sabe que o
problema do Brasil é o latifúndio, a pobreza, a desigualdade. As
elites jamais admitiram que os pobres, os explorados se
organizassem. Até o Lula, quando das primeiras greves, foi
denunciado e amargou a prisão.
As elites, como ensinou o grande Florestan Fernandes, sempre agem
da mesma forma. Tentam primeiro nos dividir, depois nos cooptar. E
se não conseguem, partem para a repressão. para a criminalização e
o isolamento. Mas temos a certeza de que a sociedade brasileira, o
povo, os pobres apóiam e querem a reforma agrária.
* Jornal Brasil de Fato, de 10 a 16 de julho de 2003 - Cláudia
Jardim, da Redação
https://www.alainet.org/pt/active/4082
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