O ''gambito de Cristina'' escancara lawfare na Argentina
Ex-presidenta apresentou provas de manipulação processual e politização do caso e encerrou com um pedido que colocou o Tribunal em xeque
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Nesta quinta-feira (4/3), a ex-presidenta argentina Cristina Kirchner – que também é atual vice-presidenta do país, além de presidenta do Senado – fez sua declaração à Câmara de Cassação de Buenos Aires (similar a um tribunal de segunda instância no Brasil), no chamado Caso Dólar Futuro, no qual se tentou criminalizar a política cambiária do seu último ano de governo (2015).
Em uma alegação transmitida por videoconferência, a senadora e vice-presidenta fez uma jogada arriscada, se recusando a pedir o arquivamento do caso – medida que é esperada quando o réu se considera inocente. Ainda assim, sua postura colocou os magistrados contra a parede.
Para entender a situação é preciso saber o que é o Caso Dólar Futuro. Em 2015, no último ano de mandato de Cristina como presidenta – e quando Mauricio Macri era candidato contra o kirchnerista Daniel Scioli, e acabaria vencendo o pleito – dois empresários macristas entraram na Justiça com uma denúncia contra a Casa Rosada, afirmando que a política cambiária do governo visava favorecer um grupo de funcionários que, a partir de supostas informações privilegiadas, estavam ganhando dinheiro no mercado e, ao mesmo tempo, fazendo o Banco Central perder recursos, incluindo reservas internacionais.
A acusação foi midiatizada e usada pela campanha de Mauricio Macri para vencer as eleições, demonizando o kirchnerismo, mas só agora está sendo analisada pela Câmara de Cassação, que decidirá se o caso deve ou não ser levado à Corte Suprema de Justiça – a missão dos magistrados, neste caso, não é decidir se Cristina é culpada ou inocente, e sim se existe uma situação que pode ser considerada crime ou não.
Em sua declaração nesta quinta, Cristina Kirchner começou dizendo que a denúncia é um “é um caso típico de lawfare”, se referindo ao termo utilizado para descrever situações de uso da justiça para perseguição política.
Ela também afirmou que esse lawfare foi possível graças a “juízes que atuaram em conivência com os meios de comunicação para criminalizar a política e prejudicar a vida dos argentinos”.
Em sua alegação, Cristina lembrou que “o caso foi iniciado por uma denúncia de Mario Negri (empresário macrista), em 30 de outubro de 2015. É importante lembrar a data porque foi 5 dias após o primeiro turno das eleições daquele ano (vencidas por Macri no segundo turno, apesar de derrota no primeiro)”.
A ex-presidenta recorda, depois, que o juiz Claudio Bonadio (considerado o Sérgio Moro da Argentina, porque liderou vários processos contra Cristina) ordenou uma busca e apreensão nos escritórios do Banco Central, do ministro da Economia (Axel Kicillof) e até no de Máximo (Kirchner, deputado e filho de Cristina).
“Foi pra isso que serviu esse caso, para que os argentinos fossem às urnas naquele segundo turno de 2015, dez dias depois dessa ordem, com a imprensa nos acusando de criminosos. Não foi um simples caso de lawfare, foi manipulação do processo eleitoral”, comentou a atual presidenta do Senado argentino.
Depois, Cristina apresentou documentos relativos a uma perícia realizada a pedido dos promotores do caso, a qual comprova que “nenhuma pessoa ligada ao meu governo comprou dólares durante o período em que teriam sido feitas as supostas operações (para se aproveitar das informações privilegiadas e enriquecer com a política cambiária, como a denúncia dizia a havia sido feito)”.
Aliás, a perícia também comprovou que o Banco Central só realizou operações em pesos argentinos no período indicado, e que não registrou nenhum prejuízo, nem em seus recursos e muito menos com relação às reservas internacionais da Argentina.
Pelo contrário, o mesmo documento aponta que a instituição chegou a registrar lucro de 147 bilhões de pesos argentinos.
Além de usar os documentos para comprovar que a denúncia não tem nenhum sustento, Cristina também comprovou, através de outros documentos oficiais, que alguns empresários que lucraram com o dólar naquele período foram empresários macristas, como Nicolás Caputo, Gustavo Lopetegui e até Franco Macri, pai de Mauricio Macri.
Outro aspecto do lawfare citado por Cristina foi o fato de que a mesma Justiça não atuou para criminalizar a política econômica de Macri, nem mesmo quando o ex-presidente mergulhou a Argentina em uma dívida de 44 bilhões de dólares com o FMI (Fundo Monetário Internacional).
“O presidente que nos endividou, que desvalorizou a moeda e nos colocou na pior crise dos últimos dez anos, vai assistir a jogos de futebol no Catar, e nós estamos sentados aqui”, disse. A frase remete ao fato de que Macri, atualmente, possui um cargo na FIFA (Federação Internacional de Futebol), o que lhe daria a oportunidade de ser convidado a assistir gratuitamente a próxima Copa do Mundo, que será disputada no país árabe.
Para finalizar, Cristina Kirchner explicou sua decisão de não pedir o arquivamento do caso, e sim que os juízes “apliquem a Constituição. Eles aplicam a lei e o que a Constituição diz, que é o que venho pedindo desde sempre”.
Diante dessa postura, segundo o diário Página/12, existem três possibilidades:
A primeira, considerada a mais óbvia, seria arquivar o processo por falta de crime. Quem explicou melhor isso foi o economista Axel Kicillof – atual governador da Província de Buenos Aires, que era ministro da Economia em 2015, por isso também é um dos investigados. Segundo ele “o Caso Dólar Futuro é como o de um homicídio onde acusam A de matar B, mas antes do julgamento, B aparece vivo, o que mostra que não houve assassinato”. Para o economista, o documento apresentado por Cristina nesta quinta, comprovando que nenhum funcionário seu operou com dólares e que o Banco Central agiu licitamente e sem perder recursos nem reservas, seria como se B parecesse vivo na metáfora do homicídio.
A segunda alternativa seria que a Câmara de Cassação devolva o processo para o tribunal de primeira instância. Segundo o Página/12, essa possibilidade surgiria da possibilidade de os magistrados entenderem que a declaração de Cristina foi uma acusação contra o Poder Judiciário, o que os colocaria em uma situação complexa: se aceitarem a denúncia confirmariam, aos olhos da opinião pública, a narrativa de Kirchner de que existe um caso de lawfare contra ele, e se decidirem arquivá-la, seriam acusados de ceder ao seu discurso, que está sendo criticado por grande parte dos grandes meios de comunicação. Dessa forma, os juízes evitariam ter que tomar uma postura.
A terceira possibilidade é que a Câmara aceite a denúncia, com o argumento de que a perícia que destrói a acusação é apenas uma das provas do caso. Porém, segundo o Página/12, essa opção levaria a um grave problema: se o processo for levado à Corte Suprema, com a nova perícia apresentada por Cristina Kirchner no qual estão citados empresários macristas como beneficiários das operações do Banco Central, eles também terão que ser julgados.
As últimas palavras de Cristina Kirchner, em sua declaração para os juízes, foram as seguintes: “meu advogado, Dr. Carlos Beraldi, me disse que tenho que pedir o arquivamento. Mas não, senhores juízes. Não vou pedir nada. Só quero que apliquem o que diz a Constituição”.
Com informações de 'Página/12' (aqui e aqui)
05/03/2021
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