Chile pede empréstimo ao FMI para ajudar empresas, mas não amplia auxílio à população
- Opinión
Valparaíso (Chile).- O Chile, país apontado como símbolo de sucesso econômico por muitos neoliberais em todo o mundo, especialmente no Brasil, expôs ainda mais sua crise interna no dia 12 de maio, quando o Banco Central do país pediu ao Fundo Monetário Internacional (FMI), um empréstimo de US$ 23 bilhões.
O país vive problemas em sua economia há muitos anos, e a revolta social iniciada em outubro de 2019 é um indício dessa realidade, mas a decisão de solicitar ajuda financeira acontece somente em meio à pandemia do coronavírus e aos problemas econômicos adicionais que ela traz.
No início, por meio de comunicados de imprensa, o governo neoliberal de Sebastián Piñera tentou negar o pedido de crédito ao Fundo, mas o Banco Central acabou admitindo a informação, depois que o próprio organismo internacional a confirmou em sua página web.
No entanto, e apesar dos profundos problemas econômicos e sociais no país, o ministro da Fazenda, Ignacio Briones, declarou que esta não é uma medida destinada a resolver os problemas com gastos públicos.
“É importante deixar explícito e extremamente claro que este não é um empréstimo ao governo do Chile e, portanto, não visa financiar gastos públicos”, admitiu o funcionário, que comparou a solicitação atual com o realizado, anos atrás, por órgãos financeiros internos de países como Colômbia, México e Polônia.
A explicação despertou a polêmica sobre qual seria, então, o destino dos recursos. Osvaldo Rosales, economista chileno e ex-diretor da Divisão de Comércio Internacional e Integração da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), explica tratar-se de uma medida para evitar um corte nos pagamentos a bancos e grandes empresas.
O analista considera o empréstimo oportuno, mas também observa que há uma diferença significativa entre as medidas do Chile para apoiar os setores economicamente mais poderosos e as destinadas a outros grupos, socialmente mais vulneráveis, e que estão sendo ainda mais afetados pela pandemia.
Rosales também destaca o fato de que o endividamento atual rompe com um paradigma vigente no Chile desde que o neoliberalismo foi implementado no país, nos anos 1980.
“Endividar-se não é ruim, o problema é isso ser sustentável ao longo do tempo, e nós, como parte do Fórum Pelo Desenvolvimento Justo e Sustentável, emitimos uma declaração, onde mostramos que, quando o governo diz que tem feito todo o possível e que não há mais espaço fiscal, nós rebatemos dizendo que isso não é verdade: o governo chileno tem como se endividar, especialmente para ajudar as pessoas que precisarão de apoio financeiro do Estado para poder enfrentar a quarentena”, explica o economista.
Ajuda às famílias
Também nestes últimos dias, o Congresso chileno aprovou um auxílio financeiro às famílias. O governo neoliberal de Piñera pretende entregar 65 mil pesos chilenos (cerca de US$ 78) às pessoas pobres e de classe média, apenas no mês de junho. Em julho e agosto, esse valor será reduzido, embora os analistas apontem que as pessoas passarão a ter mais necessidades com o passar dos meses.
Ate o momento, o Estado anunciou um gasto total destinado às famílias de apenas US$ 830 milhões, muitíssimo menor que os recursos solicitados para salvar as empresas.
O economista Osvaldo Rosales questiona essa política. Segundo ele, o governo tem condições de gastar até US$ 15 bilhões de dólares para oferecer uma ajuda mais robusta às famílias chilenas durante o inverno. “Calculamos que é possível financiar, por quatro meses, uma renda familiar visando manter as pessoas fora da linha de pobreza. O que o governo ofereceu é um valor muito marginal", assinala.
"[Também] é insuficiente na cobertura, porque também há muitos que não terão acesso a esse benefício”, completa Rosales.
Auxílio insuficiente
O valor e abrangência do auxílio oferecido vêm gerando descontentamento entre a população e dificultando a permanência na quarentena. Nesta segunda-feira (18), centenas de pessoas do município de El Bosque, na Região Metropolitana de Santiago, fizeram uma grande manifestação, com barricadas e panelaços, reclamando da falta de alimentos e recursos financeiros para as famílias que tentam se manter em isolamento.
O protesto foi dispersado, depois de algumas horas, por uma fortíssima resposta repressiva dos Carabineros (polícia militarizada chilena).
A oposição política também tem criticado a insuficiência do auxílio e a falta de agilidade do governo em responder às necessidades impostas pela pandemia. O ex-ministro da Fazenda Rodrigo Valdés – que atuou no segundo mandato da presidenta socialista Michelle Bachelet – pediu agilidade nas respostas diante das projeções de agravamento da situação, com o aumento do número de contágios e mortes no país.
“Eu uso a comparação do automóvel, com os câmbios, e a hora é de engatar a segunda (marcha). A etapa central agora é essa, de tomar medidas mais ousadas e mostrar um envolvimento maior com o problema de grandes proporções que estamos enfrentando, para poder acalmar as pessoas”, comentou Valdés.
Enquanto isso, o país enfrenta um aumento explosivo do desemprego. Mais de um milhão e meio de pessoas sem trabalho. Tudo indica que a chamada Lei de Proteção ao Emprego serviu para permitir que as empresas demitissem trabalhadores sem precisar justificar, ou suspender temporariamente os contratos. O número oficial mostra que o desemprego em maio atingiu 9% dos chilenos, mas espera-se que os números dos próximos meses ultrapassem os dois dígitos.
O estigma do FMI
Nos anos 1970 e 1980, o FMI entregou empréstimos polêmicos a países como Chile, Uruguai e Argentina, pouco depois dos golpes de Estado nesses países. Recorrer ao FMI passou a ter, por conta disso, um forte estigma.
No caso chileno, o estigma se deu a partir do apoio do órgão às políticas neoliberais impostas autoritariamente na ditadura de Augusto Pinochet. O país viveu uma onda de privatizações, com a desnacionalização de grandes empresas públicas que passaram a mãos privadas, especialmente as mineradoras ligadas à extração de cobre, principal matéria-prima de exportação do país. A ajuda financeira do FMI à ditadura de Pinochet foi um resgate após uma duríssima queda de 14% do PIB, que levou a um 45% de pobreza no país.
O mito do sucesso econômico da ditadura, porém, não resistiu ao passar dos anos, como já se havia visto na revolta social iniciada em outubro de 2019, e como se reforçou agora, devido à pandemia. Piñera, que meses atrás falava do Chile como um oásis na América Latina, vê seu relato se desfazer como mais uma miragem.
Na esteira das críticas aos dogmas do neoliberalismo e da defesa da solidariedade como novo paradigma, muitos especialistas econômicos têm criticado os responsáveis pelas medidas de contenção do governo de Sebastián Piñera. Economistas rejeitam a narrativa de que a política fiscal do país esteja no limite, entendendo que quando se trata de ajudar cidadãos em situação crítica é possível sim lançar mão de políticas mais ousadas para melhorar a gestão, e que a pandemia da covid-19 é um desses momentos que exige de um governo um maior esforço fiscal.
O Fórum para o Desenvolvimento Justo e Sustentável, do qual faz parte o economista Osvaldo Rosales, listou alguns dados que indicam que o Chile possui capacidade suficiente para incrementar fortemente o seu gasto interno combater a pandemia:
1) Em porcentagem do Produto Interno Bruto (PIB), os programas de emergência que o governo propôs, são muito inferiores aos da maioria dos países europeus, dos Estados Unidos e até de países vizinhos, como o Peru;
2) A dívida pública chilena está nos níveis mais baixos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e de toda a América Latina;
3) O governo acabou de colocar títulos no exterior por US$ 2 bilhões a taxas muito baixas;
4) O Chile possui fundos soberanos no valor de US$ 22 bilhões.
*Matéria escrita em colaboração com Paola Cornejo, direto de Santiago
Edição: Rodrigo Chagas
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