“Necessitamos de alternativas, e não somente de regulação do mercado’’
08/07/2012
- Opinión
A crise econômica e política europeia é a manifestação de “um conflito entre duas lógicas: a lógica dos interesses do capital e a lógica dos interessas do bem-estar social”, declara o sociólogo belga François Houtart, em entrevista à IHU On-Line, no Instituto Humanitas Unisinos (IHU). Segundo ele, “durante algum tempo houve a possibilidade, com o regime social-democrata, de combinar os dois interesses. Mas agora, com a crise, há uma eleição: ou um ou outro”.
Qual é a natureza e a essência da crise econômica na Europa?
François Houtart – A crise europeia é parte da crise mundial que se iniciou nos EUA com a crise financeira do subprime*, mas que afetou também a Europa e o sistema financeiro europeu. A causa fundamental desta crise é a diferença entre a economia real e a economia artificial, ou seja, a economia financeira. A economia real mundial, nos últimos 20 anos, tem decaído e, desde os anos 1990, o capital financeiro cresceu e passou a assumir um papel hegemônico dentro do sistema capitalista. Atualmente a importância relativa do capital financeiro é 11 vezes maior do que o PIB mundial. É uma diferença enorme e, em algum momento, essa “bola” financeira teria de estourar, pois era totalmente artificial. Como disse Susan George, uma norte-americana que vive Paris, essa é uma economia cassino, onde a especulação tem tido um papel enorme. Em grande parte isso acontece por causa da existência dos paraísos fiscais, para onde o dinheiro das multinacionais e dos fundos de pensão é enviado. Esses paraísos fiscais não contribuem para a riqueza mundial, pois simplesmente acumulam, acumulam e acumulam.
Essa crise pode se expandir para o Brasil?
Sim, a crise já começa a afetar os países emergentes: Brasil, China, Índia. Em particular, o Brasil por conta da desindustrialização e pelo fato de ter uma economia baseada na extração de minérios e commodities. Por isso seria necessário a integração dos países da América Latina.
O modelo político adotado no Brasil, em que todos podem crescer economicamente, é vulnerável a crises mundiais. Talvez os impactos não serão sentidos em curto prazo, mas em médio e longo prazo. A questão fundamental neste debate é a lógica do sistema capitalista, que é movido pelo lucro e, obviamente, pelo lucro financeiro. Aliás, o sistema financeiro tem sido o sistema orientador de toda a economia mundial.
Como a crise tem se manifestado nos diferentes países da Europa?
A crise é evidentemente mundial, mas suas as características são particulares em cada país. Os países do sul da Europa são mais afetados, como Grécia, Portugal, Espanha, e Itália. Em parte isso acontece porque são economias mais jovens, com menos peso industrial, e, no caso da Espanha, se trata de uma economia muito especulativa. Para se ter ideia, a cada semana na Espanha cerca de 50 mil pessoas são retiradas de suas casas porque não podem pagar o aluguel. Isso é a irracionalidade total do sistema capitalista.
Na Grécia há particularidades, porque o governo foi extremamente corrupto, divulgando dados estatísticos falsos durante anos. A Alemanha, que é a economia mais forte da Europa, é relativamente sólida, mas a qual custo? Quase a metade da classe operária da Alemanha não tem mais contratos de trabalho definidos em longo prazo; são contratos em curto prazo. Isso acontece porque é permitido diminuir o salário e, assim, o custo do milagre alemão é pago, em grande parte, pela classe operária. A economia alemã se fortalece por conta da exportação. E isso tem graves consequências na Europa, porque, para salvar o sistema financeiro e os bancos, os Estados europeus têm gastado bilhões de euros, e por isso se endividaram.
A ordem do Banco Central Europeu é de que nenhum Estado pode ter uma dívida maior do que 3% do PIB e, por isso, devem reduzir os gastos. A questão é que se trata de Estados que haviam conquistado o bem-estar social. Para reduzir a dívida, então, os Estados terão de reduzir os serviços públicos de saúde, educação, pensões, salário mínimo. O salário mínimo na Grécia é algo em torno de 400 euros. Assim, é o povo quem tem de pagar a dívida do Estado, que se deve, em grande parte, à salvação dos bancos e do sistema financeiro.
Como o senhor analisa a insistência de austeridade da Alemanha para com a Grécia?
Essa austeridade só fará aumentar a crise, porque as políticas de austeridade ditas para favorecer o crescimento diminuem o poder de compra das pessoas. Como é possível pensar em crescimento se o poder de compra diminui? É algo totalmente contraditório. Joseph Stiglitz tem dito que estas são políticas criminais, porque não são anticíclicas. A Alemanha tem um regime direitista e vive a serviço do capital. Evidentemente, os interesses do capital são de continuar a acumulação e mantê-la, sem se preocupar com o bem-estar da população.
Existe um conflito entre duas lógicas: a lógica dos interesses do capital e a lógica dos interesses do bem-estar social. Durante algum tempo houve a possibilidade, com o regime social-democrata, de combinar os dois interesses. Mas agora, com a crise, há uma eleição: ou um ou outro.
Foi positivo para a Europa ter criado uma moeda única?
Sim. O euro foi uma criação positiva, porque é interessante para uma região ter uma moeda própria para não depender do dólar. Mas as condições de criação do euro se deram na lógica do sistema capitalista, com um Banco Central que se diz autônomo da política, mas não é autônomo dos interesses capitalistas. Isso tem provocado, por exemplo, a impossibilidade para um país como a Grécia de ter uma política monetária adaptada à situação da crise. Por isso a Grécia tem de obedecer à Alemanha, e tinha de obedecer à França, durante o governo Sarkozy.
Em função da crise econômica e política, seria o caso de extinguir o Euro?
Não. Mas seria preciso mudar as regras de funcionamento. Porque se extinguirem o euro, a Europa irá depender ainda mais da economia norte-americana, porque o dólar é a única moeda internacional. E esse é o problema da China e da América Latina, porque são muito vulneráveis por conta do dólar. A China tem quase um terço da dívida norte-americana em dólares. E se o dólar continuar baixando, isso significará uma redução das reservas monetárias latino-americanas.
Da mesma forma que a Europa, hoje os asiáticos estão pensando na criação de uma moeda própria para escapar da hegemonia norte-americana. A reserva federal norte-americana está emitindo dólares e há quatro anos não divulga quantos dólares estão produzindo para pagar a dívida norte-americana, e as guerras de Iraque, Afeganistão etc. Trata- se de um segredo de Estado.
A crise econômica empurrou a Europa para uma crise política?
Evidentemente que sim. Os partidos políticos clássicos continuam no poder: a social-democracia ou os partidos liberais de direita. Mas vemos em alguns países duas novas forças políticas ainda marginais: a extrema direita e movimentos à esquerda da social-democracia na França, na Grécia, na Espanha. Uma parte da extrema direita na França, a Frente Nacional, tem 18% de aceitação, mais da metade desse percentual é oriundo da classe operária. Essas pessoas estão marginalizadas e o discurso da extrema direita é anticapitalista, anti- imigração e antirracista. Esta parte da classe trabalhadora vê a imigração como a causa fundamental do desemprego. A propaganda da extrema direita vai na direção de acusar os imigrantes. Os mais pobres, que não têm uma visão analítica, votam na direita.
A extrema esquerda tem apenas 1 ou 2% de aprovação. A esquerda que tem importância se parece com a social-democracia, mas é mais articulada com um projeto que não é social-democrata. Eles podem crescer ou decrescer, porque a maioria das pessoas tem medo de perder o que possuem e, por isso, continuam a votar nos gerentes do sistema, que são a extrema direita ou a social-democracia, que já não têm tantas diferenças.
O senhor compartilha a ideia de que a Europa pode cair nos braços da direita?
Não. Basta ver o que aconteceu com Sarkozy, com a direita na Grécia, na Itália. A Espanha é governada pela direita, mas devido à falta da social-democracia e do socialismo espanhol, que foi quase mais neoliberal do que a direita. Na Alemanha é provável que a social-democracia vença as próximas eleições. Não penso que direita possa chegar ao poder como o fascismo chegou depois da primeira Guerra Mundial, porque as circunstâncias são diferentes. Mas penso que ela pode exercer uma pressão forte sobre as políticas de outros países.
Qual o significado político da vitória da esquerda na França?
A eleição de Hollande na França pode mudar o rumo das coisas? Hollande vai ser o Lula da Europa. Vai ser muito social-democrata. Não vai mudar o sistema fundamental. Irá adaptá-lo. Haverá menos austeridade, mais preocupação com o sistema. Mas não mudará o sistema.
Por que é difícil mudar o sistema?
Porque a força do sistema econômico ainda é muito forte, e a concentração do capital e das multinacionais ainda desempenha um papel intenso na reprodução do sistema. Por outro lado, a queda do muro de Berlim, ainda na Europa, repercute no sentido de que o socialismo não é a solução. Há assim um vazio de pensamento progressista e um vazio de soluções que não podem mais ser sustentadas pelo capitalismo ou pelo socialismo. Somente as novas gerações poderão mudar. Falta à classe política europeia audácia, pensamento novo, para justamente criar, pouco a pouco, outro projeto.
A Europa está totalmente dominada pelas forças econômicas. Eu penso que têm 16 mil lobistas permanentes em Bruxelas, representantes das grandes empresas multinacionais, para influir no funcionamento da comunidade europeia. A comissão de conselho da comunidade europeia sobre os agrocombustíveis está composta, com uma exceção, por 16 representantes de empresas desse setor.
Em que medida os indignados podem mudar as regras da política? É possível esperar algum resultado político e democrático dessas manifestações?
Sim e não. É extraordinário ver a reação das pessoas na Espanha, especialmente dos jovens. Na Espanha, quase 50% dos jovens estão sem emprego. Mas essa é uma geração que perdeu muito a capacidade de análise, especialmente na Europa, com o fim do socialismo real e do que significou essa experiência socialista. Há um regresso das análises marxistas. Perdemos muitos instrumentos de análise da sociedade, os quais estamos recuperando pouco a pouco. Por isso a reação de hoje é um pouco anarquista. As pessoas se encontram, estão indignadas com o sistema, mas têm pouca capacidade de propor algo que possa mudá-lo. Esse é o problema. Esse movimento tem capacidade de evoluir e um dia ser uma força política, mas ainda não.
As relações internacionais entre França e Alemanha devem mudar por conta da eleição do presidente Hollande na França?
Sim. Evidentemente a política de Angela Merkel era muito similar à de Sarkozy, e ela apoiou a campanha dele oficialmente. A eleição de Hollande irá mudar as relações entre os dois países, porque o novo presidente da França quer diminuir as políticas de austeridade. Penso que Hollande terá de pensar em longo prazo, considerando as futuras eleições da Alemanha, porque, ao que tudo indica, a social-democracia irá vencer as urnas aí. A partir do resultado eleitoral, uma nova coalizão europeia poderia se organizar ao redor do projeto social-democrata, especialmente entre Alemanha e França. Mas eu não tenho muita esperança nesse projeto, porque ele não irá “tocar” nas questões essenciais. (A íntegra desta entrevista encontra-se em: www.ihuonline.unisinos.br).
<Quem é>
François Houtart é doutor em Sociologia pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica e professor emérito da mesma instituição. Lançou recentemente o livro A Agroenergia – Solução para o Clima ou Saída da Crise para o Capital? (Petrópolis: Editora Vozes, 2010).
<Glossário>
Subprime é um crédito de risco concedido a um tomador que não oferece garantias suficientes para se beneficiar da taxa de juros mais vantajosa.
- Patricia Fachin e César Sanson, de São Leopoldo (RS)
Foto: Presidencia de la República del Ecuador
https://www.alainet.org/pt/articulo/159439
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