A crise grega se insere na crise global do capitalismo

29/05/2010
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Para o jornalista e escritor português Miguel Urbano Rodrigues, as políticas que a União Europeia tenta impor na Grécia, Portugal, Espanha e Irlanda estão destinadas a fracassar.
 
A União Europeia não pretende solucionar os problemas da Grécia. Essa é a avaliação do jornalista e escritor português Miguel Urbano Rodrigues. Por isso, segundo ele, a entidade impôs um pacote draconiano, com a cumplicidade do governo de Atenas. “A mídia colabora transmitindo uma visão deformada, falsa, da realidade grega”, diz, em entrevista ao Brasil de Fato.
 
Para Urbano, a crise grega se insere na crise global do capitalismo, originária dos EUA. “A humanidade vive uma crise global e estrutural do capitalismo que se agrava, a cada mês, nas frentes econômica, financeira, cultural, energética, ambiental, militar, social e política. É uma crise de civilização”, afirma.
 
Brasil de Fato – Que avaliação o senhor faz da atual crise fi nanceira da Grécia?
 
Miguel Urbano Rodrigues – A crise grega insere-se na crise global do capitalismo, cujo polo continua a situar-se nos Estados Unidos, contrariamente ao que afirma a grande mídia.
 
Quais as consequências dessa crise para a União Europeia (UE)?
 
Os grandes da União Europeia – a Alemanha e a França – alarmaram-se com o agravamento da situação na Grécia porque ela integra a zona do euro. Outras crises, como as das repúblicas bálticas e a da Islândia, não mereceram a mesma atenção porque esses países não fazem parte do sistema monetário da Europa. A Islândia nem é membro da UE. No momento, a preocupação em Bruxelas [sede da UE] com a evolução dos acontecimentos em Portugal e na Espanha aumenta a cada dia. O presidente do Banco Central Europeu, Jean Claude Trichet, está consciente de que o futuro do euro se joga nesses três países. O desemprego na Espanha já supera os 20%. A aprovação de um fundo de 600 bilhões de euros – mais 150 bilhões do FMI [Fundo Monetário Internacional] – para enfrentar situações similares à da Grécia “em defesa do euro” é reveladora do pânico instalado em Berlim e Paris. Quase simultaneamente, após idas a Bruxelas, [José Luís] Zapatero [primeiro-ministro da Espanha] e [José] Sócrates [primeiro-ministro de Portugal] anunciaram medidas quase tão duras como as impostas ao povo grego pelo governo de [George] Papandreou [primeiro-ministro grego]. Não resultaram de decisões institucionais tomadas no âmbito do Tratado de Lisboa. O presidente da União Europeia, [Herman Van] Rompuy, e a britânica responsável pela sua política exterior [Catherine Ashton] nem sequer foram ouvidos. O binômio Merkel-Sarkozy [Angela Merkel e Nicolas Sarkozy, primeira-ministra da Alemanha e presidente da França, respectivamente] apresentou exigências as quais os chefes dos governos espanhol e português se submeteram docilmente: cortes nos salários, congelamentos, taxas sobre o subsídio de Natal, aumento do IVA [Imposto sobre Valor Agregado] e do Imposto de renda, redução de benefícios fiscais e aumento de uma multiplicidade de outros impostos. No caso português, Sócrates garantiu, nos últimos meses, que não aumentaria os impostos. Agora, deu o dito por não dito. Significativamente, o PSD [Partido Social Democrata], o maior partido da oposição, para o qual o aumento de impostos era inimaginável, mudou de posição e surge numa aliança tácita com o governo. Ambos pedem a “compreensão” do povo, falam de “esforço patriótico”, de “sacrifícios necessários”. Não há limites para a hipocrisia do discurso oficial.
 
Em Madri, o telefonema de Barack Obama a Zapatero sobre a crise suscitou um escândalo tamanho que o presidente dos EUA emitiu uma declaração afirmando que não exercera “pressões”, limitando-se a felicitar o presidente do governo espanhol.
 
Como o senhor vê as medidas até agora propostas pela União Europeia para solucionar os problemas da Grécia? Essa crise tende a se agudizar?
 
A União Europeia não pretende solucionar os problemas da Grécia. Impôs um pacote draconiano com a cumplicidade do governo de Atenas. A mídia, aliás, colabora transmitindo uma visão deformada, falsa, da realidade grega. Em primeiro lugar, o país não estava à beira da bancarrota. Os grandes bancos, tal como os da península Ibérica, acumulam lucros. Mas o endividamento do país, resultante das políticas neoliberais, atingira um nível tão elevado, superando o PIB, que as portas do crédito internacional se fecharam, pois as taxas de juro exigidas pela banca estrangeira subiram vertiginosamente. As agências de rathing – todas estadunidenses – colaboraram na campanha anti-grega, esboçando um panorama catastrófico. Um dos boatos difundidos foi o de que o país poderia ser expulso da zona do euro. O objetivo de colocar a Grécia sob tutela de Bruxelas foi atingido.
 
Mas o povo reagiu. Essa reação já era esperada? Como o senhor analisa essas mobilizações populares?
 
Os senhores da fi nança internacional não esperavam a reação do povo grego. Desde dezembro, houve, no país, sete greves gerais. Todas levadas adiante com êxito. A de 5 de maio, gigantesca, paralisou o país. Centenas de milhares de trabalhadores protestaram em Atenas e 68 outras cidades contra a agressão exterior, mascarada de “ajuda”. Como era de se esperar, a mídia internacional desinformou, na Europa e na América. Reduziu a dimensão do protesto e deturpou o significado da grande jornada de luta. Não conseguiu, contudo, ocultar que o país parou. Transportes, escolas, hospitais, fábricas, portos, aeroportos, comércio... o setor privado, solidário, juntou-se ao público. Os governantes e banqueiros da UE insistem em falar do “caos” grego, criticando os grevistas que se opõem às “medidas de austeridade” concebidas para “salvar o país”. Mentem conscientemente. A Grécia projeta, nestas semanas, a imagem de uma luta de classes exemplar na qual o seu povo, no confronto com o capital, assume o papel de sujeito histórico. No dia 4 de maio, reagindo à estratégia de Bruxelas, o Partido Comunista da Grécia (KKE) ocupou simbolicamente a Acrópole, em Atenas, e desfraldou naquela colina milenar bandeiras com uma inscrição: “Povos da Europa levantai-vos!”.
 
O KKE está consciente de que a Europa não se encontra no limiar de uma situação pré-revolucionária. Na própria Grécia, não estão reunidas condições para um assalto ao poder. Nem por isso, o brado revolucionário do KKE é menos comovente e oportuno. As grandes revoluções não se forjam em dias, sequer em meses ou anos; não existe, para elas, data no calendário. Resultam de uma série de pequenas e grandes lutas inseridas em contextos históricos favoráveis. Os comunistas gregos não ignoram que a derrota do imperialismo vai tardar. Mas adquiriram a certeza de que a luta deve ser frontal e sem concessões no combate ao sistema que invoca a necessidade de “reformas” e de “políticas de austeridade” para reforçar a opressão social. Por isso mesmo, a exemplar lição de combatividade dos trabalhadores gregos e do seu partido de vanguarda é tão importante, bela e simbólica.
 
O senhor acredita em reações como essa por parte dos povos de Portugal e Espanha?
 
Seria uma ilusão romântica crer que em Portugal e na Espanha a resposta popular aos pacotes de “austeridade” será comparável à da Grécia. As condições subjetivas são muito diferentes. O povo grego tem tradições de luta seculares.
 
No início da crise originada nos EUA, em 2008, o senhor disse que se tratava de uma crise estrutural, e não cíclica, como as anteriores. A crise da Grécia está inserida nesse contexto?
 
Como afirmei antes, o epicentro da crise permanece nos EUA. A humanidade vive uma crise global e estrutural do capitalismo que se agrava, a cada mês, nas frentes econômica, financeira, cultural, energética, ambiental, militar, social e política. É uma crise de civilização. O país que a mídia insiste em apresentar como a maior economia do mundo entrou numa fase de decadência irreversível. Os EUA são, hoje, o país mais endividado do mundo. A sua dívida externa, no final de 2008, atingia 13,7 trilhões de dólares, o equivalente ao PIB do país. Atualmente, já o excede. Supera todas as dívidas externas somadas da Europa, América Latina, Ásia e África. Uma dívida, portanto, impagável, anunciadora de um estouro que abalará o mundo. Só a China é possuidora de mais de 900 bilhões de dólares em reservas de dólares e títulos do Tesouro dos EUA.
 
Por que, então, a hegemonia dos EUA ainda se mantém?
 
Dois fatores a garantem. O primeiro é o seu gigantesco poder militar. O outro, a permanência do dólar como moeda de referência no comércio internacional. E não há controle para a emissão da cédula verde. Mas, como o país se transformou numa sociedade parasitária que consome muitíssimo mais do que produz, avança para um desastre – sem data – de proporções colossais. O seu déficit comercial ultrapassou um trilhão de dólares no ano passado. Neste ano, será superior. Como a acumulação capitalista não funciona mais de acordo com a lógica do sistema, o governo Obama saqueia os recursos naturais de dezenas de países e desencadeia guerras de agressão ditas “preventivas”, com a cumplicidade dos aliados europeus. Nesse contexto, o presidente Obama, apresentado como político progressista e humanista, desenvolve uma estratégia que é urgente desmistificar, porque configura uma ameaça à humanidade.
 
 
A mídia capitalista tem alardeado a recuperação da economia estadunidense. O senhor acredita nesta recuperação?
 
No mundo corrupto da finança, pouca coisa mudou no último ano. Centenas de bilhões de dólares foram injetadas no “mercado” pela administração Obama, mas não para acudir as vítimas da crise, as camadas mais pobres do povo. As medidas tomadas pelo governo federal visaram a salvar da falência os responsáveis pelas ações criminosas que desencadearam a crise, sobretudo a grande banca, as seguradoras, os gigantes da indústria automotiva. Os patrões da finança são os mesmos, continuam a se atribuir salários e prêmios milionários e retomam as práticas fraudulentas que estiveram na origem do tsunami financeiro. Prêmios Nobel da Economia, como Joseph Stiglitz e Paul Krugman – ambos insuspeitos reformadores do capitalismo – e acadêmicos de prestígio mundial, como Noam Chomsky, arrancam a máscara do governo, desmontando a propaganda da “recuperação”. Acusam Obama de, ao invés de punir os cardeais da finança, ter colocado muitos deles em pontos-chave da administração. É o caso do secretário do Tesouro, Thimoty Geithner, exmagnata de Wall Street, hoje responsável pela política monetária do país. Mais expressivo ainda é o caso de Larry Summers. Esse homem foi, durante o governo de Bill Clinton [1993-2001], o autor intelectual da revogação da lei que impedia a “desregulamentação”, isto é, as políticas criminosas que conduziram a falências em cadeia. O que fez Obama? Nomeou-o seu assessor econômico.
 
Por se tratar de uma crise estrutural do capitalismo, provavelmente teremos um aprofundamento dessa crise. Quais as consequências para os povos de outros países? O senhor acredita que teremos grandes reações da classe trabalhadora?
 
O prolongamento da crise mundial e o seu provável agravamento anunciam anos de grande sofrimento para a humanidade. Os acontecimentos da Grécia antecipam uma extraordinária intensificação das lutas sociais, sobretudo na Europa. A crise estrutural do capitalismo assinalou a falência total do neoliberalismo. As políticas que a União Europeia tenta impor na Grécia, em Portugal, na Espanha, na Irlanda estão destinadas a fracassar.
 
QUEM É
 
Miguel Urbano Rodrigues é jornalista e escritor português. Foi redator e chefe de redação de jornais em Portugal antes de se exilar no Brasil, onde foi editorialista principal do jornal O Estado de S. Paulo e editor de internacional da revista brasileira Visão. Regressado a Portugal, após a Revolução dos Cravos, foi chefe de redação do jornal do Partido Comunista Português (PCP) Avante! e diretor de O Diário. Foi, ainda, assistente de História Contemporânea na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, presidente da Assembleia Municipal de Moura, deputado da Assembleia da República pelo PCP, entre 1990 e 1995, e deputado das Assembleias Parlamentares do Conselho da Europa e da União da Europa Ocidental, tendo sido membro da comissão política desta última.
 
https://www.alainet.org/pt/articulo/141898
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