Nosso manifesto para a Europa

05/05/2014
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As instituições da União Europeia já não funcionam.
É necessário um acordo econômico e democrático radical.

A União Europeia está passando por uma crise existencial, conforme as recentes eleições europeias brutalmente nos recordam. Isto afeta principalmente os países da zona do Euro, que estão submersos em um clima de desconfiança e em uma crise da dívida que está muito longe de terminar: o desemprego persiste e a deflação ameaça. Nada poderia estar mais longe da verdade do que imaginar que o pior já ficou pra trás.

Por isso, com grande interesse, damos as boas-vindas às propostas formuladas no final de 2013 pelos nossos amigos alemães do grupo Glienicke para fortalecer a união política e fiscal dos países da zona do Euro. Sozinhos, nossos dois países não pesarão muito na economia mundial.

Se não nos unirmos em tempo para defender nosso modelo de sociedade no processo da globalização, a tentação de remover as fronteiras nacionais finalmente prevalecerá e dará lugar a tensões que farão com que as dificuldades da União se empalideçam em comparação a este eventual cenário. De certo modo, o debate europeu está muito mais avançado na Alemanha do que na França. Como economistas, cientistas políticos, jornalistas e, sobretudo, cidadãos da França e da Europa, não aceitamos o sentimento de resignação que paralisa nosso país. Por meio deste manifesto, queremos contribuir com o debate sobre o futuro democrático da Europa e desenvolver as propostas do grupo Glienicke.

É hora de reconhecer que as instituições existentes na Europa não são funcionais e precisam ser reconstruídas. A questão central é simples: a democracia e os poderes públicos devem recuperar o controle de maneira efetiva e regulamentar o capitalismo financeiro globalizado do século XXI. Uma moeda única com 18 dívidas públicas diferentes com as quais os mercados podem especular livremente, além de 18 sistemas fiscais e de prestações em rivalidade desenfreada entre si: não funciona e nunca vai funcionar. Os países da zona do Euro decidiram compartilhar sua soberania monetária e, portanto, abandonar a desvalorização unilateral, mas sem o desenvolvimento de novos instrumentos econômicos, fiscais e orçamentárias. Esta terra de ninguém é o pior dos mundos.

Não se trata de coletivizar todos os nossos impostos e o gasto público. Com excessiva frequência, a Europa de hoje demonstrou ser estupidamente intrusiva em questões secundárias (tais como o tipo de IVA -  imposto sobre o valor agregado – em salões de beleza e em centros equestres) e pateticamente impotente nas questões mais importantes (como os paraísos fiscais e a regulamentação financeira). Devemos inverter a ordem de prioridades, com menos Europa naquelas questões em que os países-membros fazem muito bem por sua própria conta, e com mais Europa quando a união é essencial.

Concretamente, nossa primeira proposta é que os países da zona do Euro, começando pela França e pela Alemanha, dividam seu imposto sobre sociedades, o chamado CIT. Sozinho, cada país é enganado pelas multinacionais de todos os países, que jogam com as lacunas e com as diferenças entre legislações nacionais para evitar o pagamento de impostos em todos os lugares. Portanto, a soberania nacional se transformou em um mito. Para lutar contra esta “otimização impositiva”, é preciso dar poder a uma autoridade soberana europeia para estabelecer uma base impositiva comum que seja o mais ampla possível e estreitamente regulada. 

Cada país poderia depois continuar estabelecendo seu próprio tipo de imposto a partir desta base comum, com uma taxa mínima ao redor de 20% e com uma taxa adicional da ordem de 10%, que deverá ser paga em nível federal. Isto tornaria possível fornecer um orçamento real, da ordem de 0,5% a 1% do PIB.

Conforme o grupo Glienicke corretamente destaca, esta capacidade orçamentária permitiria que a zona do Euro realizasse programas de estímulo e de investimento, em particular no que diz respeito ao meio ambiente, às infraestruturas e à capacitação. Porém, diferentemente de nossos amigos alemães, acreditamos que seja essencial que o orçamento da zona do Euro venha de um imposto europeu, e não das contribuições dos Estados. Em tempos de orçamento famélico, a zona do Euro precisa demonstrar sua capacidade de arrecadar impostos de maneira mais justa e mais eficiente que os Estados. Do contrário, as pessoas não lhes concederão o direito de gastá-lo.

É necessário rapidamente generalizar a troca automática de informação bancária na zona do Euro e estabelecer uma política concertada mais progressista para uma tributação sobre as arrecadações e sobre a riqueza e, ao mesmo tempo, empreender conjuntamente uma luta atividade contra os paraísos fiscais fora da zona do Euro. A Europa deve ajudar a ampliar a justiça tributária e a vontade política no processo de globalização: tamanha é a magnitude de nossa primeira proposta.

Nossa segunda proposta é a mais importante e deriva da primeira. Aprovar a base tributária do CIT e discutir e adotar as decisões fiscais, financeiras e políticas sobre aquilo que deve ser compartilhado no futuro de maneira democrática e soberana: devemos estabelecer uma câmara parlamentar para a zona do Euro. Aqui também nos unimos a nossos amigos alemães do grupo  Glienicke, apesar de se dividirem entre duas opiniões: ou um parlamento da zona do Euro formado pelos membros do Parlamento Europeu dos países envolvidos (uma subformação do Parlamento Europeu reduzida aos países da zona do Euro) ou uma nova câmara baseada na agrupação de uma parte dos membros dos parlamentos nacionais (por exemplo, 30 membros do Parlamento francês da Assembleia Nacional, 40 membros do Bundestag alemão, 30 deputados italianos etc em função da população de cada país, de acordo com um simples princípio: um cidadão, um voto).

Esta segunda solução, que retoma a ideia de uma “câmara europeia” proposta por Joschka Fischer em 2011 é, segundo nossa avaliação, a única opção para avançar rumo à união política. É impossível privar por completo os parlamentos nacionais de seu poder para fixar impostos. É precisamente sobre a base da soberania parlamentar nacional que será possível forjar uma soberania parlamentar europeia compartilhada.

Neste esquema, a União Europeia teria duas câmaras: o parlamento Europeu tal como existe, eleito diretamente pelos cidadãos da UE-28, e a Câmara Europeia, que representaria os estados por meio de seus parlamentos nacionais. A Câmara europeia inicialmente envolveria somente os países da zona do Euro que quiserem avançar rumo a uma maior união política, fiscal e orçamentária. Mas seja projetada para dar as boas-vindas a todos os países da UE que quiserem seguir por este caminho. Um ministro de finanças da zona do Euro e, finalmente, um governo europeu real, responderiam diante da Câmara europeia.

Esta nova arquitetura democrática para a Europa tornaria possível finalmente vencer a inércia de hoje e o mito de que o Conselho de chefes de Estado poderia servir como uma segunda câmara de representação dos Estados. Tal ideia equivocada reflete a impotência política do nosso continente: é impossível que uma pessoa só represente um país, a menos que nos resignemos diante do impasse permanente imposto pela regra da unanimidade. Para evoluir em direção a uma regra das maiorias em assuntos fiscais e orçamentários que os países da zona do Euro decidam dividir, é necessário criar uma autêntica câmara europeia, onde cada país esteja representado não apenas por seu chefe de Estado, mas também por membros que representem todas as tendências política.

Nossa terceira proposta se refere diretamente à crise da dívida. Estamos convencidos de que a única maneira de superá-la é coordenar as dívidas dos países da zona do Euro. Do contrário, a especulação sobre as taxas de justos voltarão repetidas vezes. Também é o único caminho para que o Banco Central Europeu possa realizar uma política monetária eficaz e sensível, como a Reserva Federal dos EUA (que também teria dificuldades para fazer seu trabalho corretamente se todas as manhãs tivesse que arbitrar as dívidas do Texas, Wyoming e da Califórnia).

A comunitarização da dívida de fato já começou com o Mecanismo Europeu de Estabilidade, a nova união bancária e o programa Transações Monetárias Imediatas (OMT) do Banco Central Europeu, que já afeta os contribuintes da zona do Euro de uma forma ou de outra. É necessário agora ir mais longe, em tempo de esclarecer a legitimidade democráticas de tais mecanismos.

Devemos começar pela proposta de um “fundo de resgate da dívida europeia”, feita no final de 2011 pelo conselho de especialistas em economia da chanceler alemã, e que foi projetado para coletivizar todas as dívidas que ultrapassem o limite de 60% do PIB de um país, e acrescentar um componente político. Não é possível decidir sobre os próximos 20 anos em que velocidade será possível reduzir a zero um fundo desse tipo. Apenas um corpo democrático, isto é, a câmara europeia, constituída a partir dos parlamentos nacionais, estaria em condições de estabelecer o nível do déficit comum a cada ano, a partir do estado concreto da economia.

As decisões adotadas por esse órgão serão, em algumas ocasiões, mais conservadores do que poderíamos pessoalmente desejar. E, em outras ocasiões, mais liberais. Mas serão tomadas democraticamente, baseando-se na regra da maioria, sob a luz do dia. Alguns direitistas gostariam que essas decisões orçamentárias se limitassem a órgãos pós-democráticos ou congelados no mármore constitucional. Outros, da esquerda, antes de aceitar qualquer fortalecimento da união política, gostariam de ter garantias de que a Europa sempre levará a cabo as políticas progressistas de seus sonhos. Será preciso evitar essas duas armadilhas se quisermos superar a crise atual.

O debate sobre as instituições políticas da Europa com grande frequência foi deixado de lado por ser algo técnico ou secundário. Mas se negar a discutir como organizar a democracia significa, em última instância, aceitar a onipotência das forças do mercado e da competência e abandonar qualquer esperança de que a democracia possa recuperar o controle do capitalismo do século XXI.

Esse novo espaço político é crucial. Para além das políticas macroeconômicas ou das questões fiscais, nossos modelos sociais são um bem comum, e é preciso preservá-los e mantê-los. Mas também são fundamentais para uma inclusão exitosa no contexto da globalização. Para que os sistemas fiscais possam convergir com a crescente preocupação sobre os gastos sociais, as iniciativas conjuntas de França e Alemanha ou as cooperações reforçadas são insuficientes. Os 28 estados-membros da UE não são capazes de traduzir em ações o consenso sobre esses temas e, quando o assunto é dinheiro, finalmente fracassam. Uma câmara europeia seria o lugar para se tomar essas decisões, porque todas as implicações em termos de direitos e deveres seriam explícitas. O número de oportunidades para tais decisões seria grande e pode-se sonhar com os temas a serem considerados: a governança empresarial na Alemanha, na qual participam os representantes dos trabalhadores, contribuindo para manter, apesar da crise, um setor produtivo; creches para todos; formação; convergência das legislações sociais; impostos sobre as emissões de CO2 com a finalidade de mitigar a mudança climática.

Muitos se oporão a nossas propostas com argumento de que não é possível modificar os tratados, e que os franceses não querem uma maior integração europeia. Esses argumentos são falsos e perigosos. Os tratados estão sendo modificados constantemente, como foi o caso em 2012, quando o assuntou se resolveu em pouco mais de seis meses. Desgraçadamente, foi uma reforma ruim, que reforçou um federalismo tecnocrata e ineficaz.

Afirmar que a opinião pública não gosta da Europa de hoje e, consequentemente, chegar à conclusão de que não deveria haver nenhuma mudança em seu funcionamento e em suas instituições equivale a uma inconsistência cúmplice. Quando o governo alemão apresentou suas novas propostas para a reforma dos tratados nos próximos meses, não disse que essas reformas serão mais satisfatórias que as de 2012. mas, em vez de nos sentarmos e esperar, é preciso iniciar de uma vez por todas um debate construtivo na França, para que finalmente tenhamos uma Europa social e democrática.


(*) Thomas Piketty é diretor de estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS -  (Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais) e professor da Escola de Economia de Paris. Florencia Autret é autor e jornalista. Antoine Bozio é diretor do Instituto de Políticas Públicas. Julia Cagé é economista na Universidade de Harvard e da Escola de Economia de Paris. Daniel Cohen, professor na École Normale Supérieure e da Escola de Economia de Paris. Anne-Laure Delatte, economista, CNRS, Universidade de Paris X e OFCE. Brigitte Dormont, professor da Universidade Paris Dauphine. Guillaume Duval, editor de 'Alternativas Económicas'. Philippe Frémeaux, presidente do Instituto Veblen. Bruno Palier, diretor de pesquisa do CNRS e do Instituto de Estudos Políticos de Paris. Thierry Pech é diretor-geral da Terra Nova. Jean Quatremer é jornalista. Pierre Rosanvallon, professor do Colégio de Francia, diretor de estudos do EHESS. Xavier Timbeau é diretor do departamento de análise de previsão, OFCE, Instituto de Estudos Políticos de Paris. Laurence Tubiana, professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris; Presidente do Instituto para o Desenvolvimento Sustentável e Relações Internacionais.
Créditos da foto: Arquivo
 
06/05/2014
 
https://www.alainet.org/pt/articulo/85339
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