Constrangimento capital
13/01/2014
- Opinión
As declarações do Prefeito eleito de Nova York, Bill Blasio, afirmando que vai combater as desigualdades sociais da “big apple” cobrando impostos mais elevados dos muito ricos para custear os gastos decorrentes do seu programa de governo, tem causado muita angústia na crônica neoliberal do nosso país. Afinal, que prefeito é esse que, substituindo uma administração republicana, dinâmica, “moderna” – e mais ainda, dirigida por um “big boss” do capital financeiro – aparece dizendo que os ricos devem pagar mais impostos? Nós, aqui no Brasil, já não demonstramos que falar em aumento de impostos gera perda de “competitividade”?
Talvez a resposta tenha sido oferecida, ainda que de forma involuntária, pelos dados publicados na imprensa tradicional, através de matéria na Folha de São Paulo. A outra face do capitalismo americano, que normalmente não é considerada importante para visitar nos momentos de crise, é bastante amarga: nela, 90% das famílias americanas detém 54% da renda e os outros 10% detém o resto, ou seja 46%. Nova York conta com 400 mil milionários, 3 mil multimilionários, mas 21,2% por cento da população está abaixo da linha da pobreza, com 52.OOO pessoas sem domicílio fixo: um número proporcionalmente maior do que a população de rua de Porto Alegre, considerando o número de habitantes de cada uma das cidades.
Este “outro lado” é composto por um pessoal assalariado de baixa renda, precários, intermitentes, subempregados sem registro – principalmente negros e “chicanos” - que são os sofredores da crise do modelo industrial do capitalismo pós-guerra, com a destruição das garantias tradicionais da força de trabalho da “big society”. Ao mesmo tempo, esta massa de assalariados empobrecida ajuda a compensar a “queda tendencial da taxa de lucro”, albergando a continuidade da acumulação, agora garantida pela produção de riqueza artificial, através das jogadas no mercado financeiro: os ricos e muito ricos não ficam sem saída.
Na verdade, a angústia dos neoliberais nativos tem fundamento. Atualmente há uma disputa ideológica e política permanente no país – às vezes encoberta, outras vezes mais transparente – sobre as funções públicas do Estado, sobre as relações do Estado com a iniciativa privada, sobre o controle público do Estado, sobre o papel da mídia tradicional na formação dos valores do senso comum, sobre a relação do desenvolvimento com a igualdade ou a desigualdade: sobre pobreza e contrastes sociais, geradores de violência e criminalidade. Há um debate de “fundo” sobre um modelo de desenvolvimento que retirou o país do atraso e da estagnação – cumpriu um enorme papel histórico humanizador da sociedade brasileira – e que por ter cumprido seu ciclo precisa esclarecer o seu futuro.
Altvater põe o dedo na moleira: “O mundo globalizado é unificado num campo de valorização, em termos políticos, econômicos e sociais, bem como culturais e lingüísticos, com a ajuda das diferentes estratégias de apropriação da produção excedente. Podemos assim inferir que o mundo não se torna apenas uma mercadoria capitalista, e a transformação do mundo em mercadoria só pode ser desfeita mediante o questionamento do caráter capitalista do mundo.” (Altvaer, “O fim do capitalismo como conhecemos”, Ed. Civ. Bras. Pg. 115).
Como os governos democráticos de esquerda podem interferir neste processo, de molde a “questionar” o capitalismo (a partir do desenho concreto do capitalismo global), ou seja, questionar a sua legitimação das desigualdades brutais, o fim da proteção social-democrata, o uso de políticas públicas para concentrar renda, “questionar” a naturalização do “apartheid” social, eis a questão estratégica “chave”, no terreno da democracia, para ser resolvida não por fora, mas por dentro da democracia.
A esquerda que não der esta resposta – e ela é obviamente o modelo de desenvolvimento a ser seguido em cada capitalismo concreto dentro de um território – ficará certamente refém do movimentismo que, em regra, é fracionário ou corporativo. Ou esta esquerda abdicará dos valores da modernidade republicana e embarcará na devoção do mercado, com a desconstituição ainda mais aguda das funções públicas do Estado.
Talvez a resposta tenha sido oferecida, ainda que de forma involuntária, pelos dados publicados na imprensa tradicional, através de matéria na Folha de São Paulo. A outra face do capitalismo americano, que normalmente não é considerada importante para visitar nos momentos de crise, é bastante amarga: nela, 90% das famílias americanas detém 54% da renda e os outros 10% detém o resto, ou seja 46%. Nova York conta com 400 mil milionários, 3 mil multimilionários, mas 21,2% por cento da população está abaixo da linha da pobreza, com 52.OOO pessoas sem domicílio fixo: um número proporcionalmente maior do que a população de rua de Porto Alegre, considerando o número de habitantes de cada uma das cidades.
Este “outro lado” é composto por um pessoal assalariado de baixa renda, precários, intermitentes, subempregados sem registro – principalmente negros e “chicanos” - que são os sofredores da crise do modelo industrial do capitalismo pós-guerra, com a destruição das garantias tradicionais da força de trabalho da “big society”. Ao mesmo tempo, esta massa de assalariados empobrecida ajuda a compensar a “queda tendencial da taxa de lucro”, albergando a continuidade da acumulação, agora garantida pela produção de riqueza artificial, através das jogadas no mercado financeiro: os ricos e muito ricos não ficam sem saída.
Na verdade, a angústia dos neoliberais nativos tem fundamento. Atualmente há uma disputa ideológica e política permanente no país – às vezes encoberta, outras vezes mais transparente – sobre as funções públicas do Estado, sobre as relações do Estado com a iniciativa privada, sobre o controle público do Estado, sobre o papel da mídia tradicional na formação dos valores do senso comum, sobre a relação do desenvolvimento com a igualdade ou a desigualdade: sobre pobreza e contrastes sociais, geradores de violência e criminalidade. Há um debate de “fundo” sobre um modelo de desenvolvimento que retirou o país do atraso e da estagnação – cumpriu um enorme papel histórico humanizador da sociedade brasileira – e que por ter cumprido seu ciclo precisa esclarecer o seu futuro.
Altvater põe o dedo na moleira: “O mundo globalizado é unificado num campo de valorização, em termos políticos, econômicos e sociais, bem como culturais e lingüísticos, com a ajuda das diferentes estratégias de apropriação da produção excedente. Podemos assim inferir que o mundo não se torna apenas uma mercadoria capitalista, e a transformação do mundo em mercadoria só pode ser desfeita mediante o questionamento do caráter capitalista do mundo.” (Altvaer, “O fim do capitalismo como conhecemos”, Ed. Civ. Bras. Pg. 115).
Como os governos democráticos de esquerda podem interferir neste processo, de molde a “questionar” o capitalismo (a partir do desenho concreto do capitalismo global), ou seja, questionar a sua legitimação das desigualdades brutais, o fim da proteção social-democrata, o uso de políticas públicas para concentrar renda, “questionar” a naturalização do “apartheid” social, eis a questão estratégica “chave”, no terreno da democracia, para ser resolvida não por fora, mas por dentro da democracia.
A esquerda que não der esta resposta – e ela é obviamente o modelo de desenvolvimento a ser seguido em cada capitalismo concreto dentro de um território – ficará certamente refém do movimentismo que, em regra, é fracionário ou corporativo. Ou esta esquerda abdicará dos valores da modernidade republicana e embarcará na devoção do mercado, com a desconstituição ainda mais aguda das funções públicas do Estado.
Este impulso contemporâneo, como é sabido, sequer é originário da Revolução Bolchevique, vem da Revolução Francesa e foi normatizado processualmente pela social-democracia europeia a partir da Primeira Guerra. A esquerda governante, se for omissa sobre o futuro, ou ficará refém do socialismo utópico com as suas bravatas de “derrubar o capitalismo” para repartir carências (como já ocorreu em outros sítios históricos) ou irá lentamente cultuar exclusivamente o mercado, como resultou da experiência do PSDB, cujo núcleo dirigente ou é uma extensão do velho DEM ou não sabe o que fazer.
O debate sobre as práticas de governabilidade em nosso país, deformadas pelo sistema político vigente, vem sendo feito à exaustão. Inclusive, a seu modo, com a magnânima colaboração da imprensa tradicional, que nunca perde a oportunidade de reiterar que “tudo isso” começou com Sarney e com o PT. Mas e o resto? Que modelo de desenvolvimento poderá melhorar a vida dos quarenta milhões que passaram à sociedade formal de consumo? E que modelo poderá acabar com a miséria extrema, que não é simplesmente de “bolsões” mas ainda atinge muitos milhões de irmãos nossos?
Ter uma visão clara para dar resposta a estas indagações é o início de uma novo momento da revolução democrática no Brasil. Momento para ser vertido sobre o presente, ou seja, para o período de lutas sociais que ocorrerão nos próximos anos, não nas próxima décadas. Se estas respostas não vierem, a criminalização da política – já em curso pelos grandes meios de comunicação – vai ser sucedida pela criminalização completa dos movimento sociais, com o sucedâneo de um certo “fascismo societal”, cujo apelo à ordem será hegemônico, entre os incluídos de todas as faixas de renda. Não esqueçamos, a ideia do socialismo cresce com a produção de riquezas e com o progresso cultural, a ideia do fascismo cresce com os ressentimentos provenientes dos contrastes, da desigualdade e da marginalização.
Mais além das movimentações sociais, mais amplas ou mais restritas, é hora de organizarmos um grande debate sobre formulações estratégicas para o futuro republicano do país, pois temos em nosso meio de esquerda pensadores altamente qualificados deste novo ciclo, como Marilena Chauí, Marco Aurélio Garcia, Luiz Gonzaga Belluzo, Flávio Aguiar, Juarez Guimarães, Emir Sader, Giuseppe Cocco, Vladimir Safatle, Amir Kahir, Ladislau Dowbor, Maria Rita Khell e tantos outros que continuaram de esquerda, humanistas e democratas. Mentes que não se renderam ao espetáculo do capital em “tal grau de acumulação, que se torna imagem” , como dizia já em 1967, Guy Debord, e que encantou outros tantos que preferiram surfar nas asas bem pagas do mercado das ideias ou nos contratos das consultorias tecnocráticas.
O debate sobre as práticas de governabilidade em nosso país, deformadas pelo sistema político vigente, vem sendo feito à exaustão. Inclusive, a seu modo, com a magnânima colaboração da imprensa tradicional, que nunca perde a oportunidade de reiterar que “tudo isso” começou com Sarney e com o PT. Mas e o resto? Que modelo de desenvolvimento poderá melhorar a vida dos quarenta milhões que passaram à sociedade formal de consumo? E que modelo poderá acabar com a miséria extrema, que não é simplesmente de “bolsões” mas ainda atinge muitos milhões de irmãos nossos?
Ter uma visão clara para dar resposta a estas indagações é o início de uma novo momento da revolução democrática no Brasil. Momento para ser vertido sobre o presente, ou seja, para o período de lutas sociais que ocorrerão nos próximos anos, não nas próxima décadas. Se estas respostas não vierem, a criminalização da política – já em curso pelos grandes meios de comunicação – vai ser sucedida pela criminalização completa dos movimento sociais, com o sucedâneo de um certo “fascismo societal”, cujo apelo à ordem será hegemônico, entre os incluídos de todas as faixas de renda. Não esqueçamos, a ideia do socialismo cresce com a produção de riquezas e com o progresso cultural, a ideia do fascismo cresce com os ressentimentos provenientes dos contrastes, da desigualdade e da marginalização.
Mais além das movimentações sociais, mais amplas ou mais restritas, é hora de organizarmos um grande debate sobre formulações estratégicas para o futuro republicano do país, pois temos em nosso meio de esquerda pensadores altamente qualificados deste novo ciclo, como Marilena Chauí, Marco Aurélio Garcia, Luiz Gonzaga Belluzo, Flávio Aguiar, Juarez Guimarães, Emir Sader, Giuseppe Cocco, Vladimir Safatle, Amir Kahir, Ladislau Dowbor, Maria Rita Khell e tantos outros que continuaram de esquerda, humanistas e democratas. Mentes que não se renderam ao espetáculo do capital em “tal grau de acumulação, que se torna imagem” , como dizia já em 1967, Guy Debord, e que encantou outros tantos que preferiram surfar nas asas bem pagas do mercado das ideias ou nos contratos das consultorias tecnocráticas.
Publicado originalmente no Leitura Global.
https://www.alainet.org/pt/articulo/82296
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