Divida globalizada é crise: Quem deve a quem?
21/10/2013
- Opinión
Entre os dias 10 a 12 de outubro, aconteceu a IV Assembléia de Jubileu Sul Américas - atualmente o Pacs tem a tarefa de ser a secretaria da Rede Jubileu Sul. Um longo caminho de lutas foi percorrido desde 2001, quando foi fundada a Rede e, desde 1986, quando foi fundado o Pacs.
Em 1988 o PACS publicou seu primeiro ensaio sobre a dívida brasileira.[1] O ensaio brasileiro analisou como a dívida evoluiu de governo a governo, de forma ilegítima e ilegal, submetendo o Brasil aos ditames dos credores e a uma crise social e econômica de gravidade crescente. Ao mesmo tempo, as equipes parceiras do PACS[2] no Cone Sul realizavam estudos semelhantes sobre o endividamento da Argentina, Chile e Uruguai.
Os ensaios apontavam para o fato de que ditaduras militares nos quatro países haviam imposto processos de endividamento à revelia das suas populações, como parte de um modelo de crescimento voltado para o mercado externo e subordinado ao grande capital dos países do Norte. Em todo o Cone Sul nos anos 70 as ditaduras militares haviam feito explodir o endividamento público, rompendo qualquer possibilidade de um desenvolvimento autônomo e soberano.
Em 1998 a articulação que iniciou no Brasil a campanha pelo “jubileu das dívidas” dos países empobrecidos do Sul, organizou o Simpósio da Dívida Externa, em Brasília. Em 1999 realizamos o primeiro Encontro Internacional sobre a dívida, no Teatro João Caetano, mesmo local em que Tiradentes, lutador pela independência do Brasil e símbolo de amor pátrio, foi enforcado.
Outros países, também organizados em torno da Campanha pelo Jubileu, tomaram iniciativas de pesquisa, mobilização e organização popular para pressionar os centros de poder em favor do cancelamento da dívida dos países empobrecidos, para os quais a “década perdida do desenvolvimento” (os anos oitenta) não tinha acabado. No Brasil de 2012, a dívida absorveu 43,98% dos gastos federais, enquanto a Saúde recebeu apenas 4,17%, a Educação 3,34%, Segurança 0,38%, Transportes 0,7% e Habitação apenas 0,01%.[3]
Em 2000 promovemos o Plebiscito popular sobre a dívida, que mobilizou movimentos populares, organizações de sindicais e de igrejas e diversas redes, e coletou mais de seis milhões de votos, quase totalmente favoráveis a uma avaliação crítica do endividamento brasileiro, a uma renegociação soberana da dívida junto aos credores e contra o acordo do Brasil com o FMI.
Usamos os resultados do Plebiscito para buscar o diálogo com representantes dos Três Poderes da República, pressionando em favor do reconhecimento da dívida odiosa da ditadura e da ilegitimidade das dívidas decorrentes da manipulação da taxa de juros incidente sobre a maior parte dos empréstimos pelos EUA.
A Campanha Jubileu se articulou por todo o hemisfério Sul e também nos países credores do Norte. A primeira ação pública do Jubileu Sul ocorreu em Colônia, na Alemanha, em junho de 1999, pressionando o G8 aí reunido.[4] A Campanha, enraizada em mais de 50 países, ganhou a forma de rede e foi dando cada vez maior visibilidade às lutas nacionais.
Depois de 2000 a campanha se organizou como rede e tem promovido a colaboração entre as redes nacionais e regionais, de forma a aumentar o poder de pressão dos países do Sul frente às classes que dominam a economia do capital globalizado. Seguiram-se diversos documentos e declarações elaboradas ao longo de várias edições do Fórum Social Mundial, nas quais Jubileu Sul Américas aprofundou a crítica e aprimorou suas propostas para a superação da crise crônica do sobre-endividamento.
Levantou a bandeira da auditoria como instrumento contábil para viabilizar a identificação do caráter ilegítimo e ilegal da dívida, e instrumentar os governos do continente para a renegociação e o cancelamento dessas dívidas. Criticou sem tréguas as políticas neoliberais de ajuste e as condicionalidades impostas pelas instituições multilaterais. Insistiu também na pressão pelo reconhecimento e reparação das dívidas ambiental, histórica e social e na profunda transformação da arquitetura financeira internacional. Ao longo da década, a Rede foi ampliando seu foco para afirmar seu apoio sistemático aos povos que sofriam de opressão extrema das potências imperiais, como o Haiti e o Iraque, e aos agredidos por golpes promovidos por essas potências, como Honduras e o Paraguai.
Em 2009 a Rede apresentou um documento à Comissão de Peritos do Presidente da Assembléia Geral da ONU, com 10 propostas substanciais para a edificação de um sistema monetário e financeiro internacional a serviço das necessidades e direitos dos povos e do meio ambiente.
Participando ativamente das Cúpulas dos povos sobre Justiça Climática, a Rede levou ao público a compreensão de que a crise social e ambiental que começa a ameaçar a vida no Planeta resulta de um sistema econômico e político concentrador de riquezas e privilégios, excludente da maioria da humanidade e destruidor dos ecossistemas. O trabalho preparatório para a Cúpula dos Povos de 2012 no Rio de Janeiro envolveu a realização de oficinas de formação nos diversos países nos quais a Rede se enraizou. As oficinas focalizaram o complexo mapa do sistema do capital, desvelando a estratégia das classes dominantes para abrir novas fronteiras de acumulação usando o tema ambiental como eixo.
A Rede levou para a Cúpula a crítica dos diversos fatores que compõem a crise: os Estados privatizados, subservientes aos interesses das grandes corporações, a criminalização dos movimentos populares, a crescente militarização voltada contra os povos que lutam por seus direitos, a dilapidação do orçamento público pela sangria da dívida, a perversão da luta ecológica pela estratégia corporativa apelidada de Economia Verde, que visa promover a privatização e a mercantilização da natureza e dos bens comuns da humanidade, a escravização dos países pobres ao modelo exportador de bens primários ou de baixo valor agregado, o desprezo das classes dominantes pela prática da democracia, a cegueira crônica causada pela ideologia do crescimento ilimitado, centrada na lucratividade das empresas e no crescimento do PIB, e não na produção e reprodução sustentável da vida e do bem viver para toda a população do planeta.
A ironia é que a indisposição dos países mais ricos em ceder às pressões da sociedade organizada em nível mundial, cancelando as dívidas odiosas, ilegais e ilegítimas foi confrontada, uma década depois, com a crise do endividamento público dos próprios países afluentes.
As maiores dívidas do planeta lhes pertencem neste fim de 2013, e eles se debatem com as mesmas receitas neoliberais de austeridade que foram impostas ao Sul três décadas atrás: redução drástica dos investimentos produtivos e do emprego, privatizações do patrimônio público e de bens comuns, sangria dos orçamentos públicos e compressão dos gastos sociais para alimentar o apetite infinito dos credores privados.
A Rede obteve resultados importantes na esfera da informação, educação e organização da sociedade em torno do papel da dívida pública como uma forma de tributo neocolonial do sul para o norte, e também como instrumento de renúncia da soberania nacional e subordinação das políticas de Estado dos devedores para com os credores.
A demanda de reparação resulta da compreensão de que a outra face do jugo da dívida financeira são as dívidas histórica, social e ambiental geradas pela exploração sistêmica dos povos do Sul pelas elites globais, e pelo empobrecimento resultante a transferência das riquezas naturais das nações escravizadas ao sistema da dívida pelas grandes corporações.
O trabalho perseverante da Rede Jubileu tem desvelado o papel perverso da política de endividamento crescente e ilimitado, e apontado para o caráter político deste processo – ele não é um simples ‘mecanismo’ impessoal e ‘neutro’, ao qual os endividados (pessoas, empresas, países) têm que inclinar-se como um fato do ‘destino’. Ao contrário, ele resulta da escolha autocrática de governantes, bancos, corporações, empresas e pessoas.
Os governos que foram eleitos com projetos de esquerda e hoje se satisfazem de cumprir as receitas de “boa governança” do sistema do capital, ao cooptar lideranças sindicais, sociais e populares, foram um fator de arrefecimento das lutas populares. Recentemente, porém, um novo ciclo de manifestações de indignação e protesto explodiu em vários países da América Latina e Caribe, inclusive no Brasil.
Elas expressam a revolta de amplos setores da sociedade frente ao descaso dos governos para com a população trabalhadora, o desrespeito aos direitos e à Constituição, a impunidade dos corruptores e dos corruptos, a falta de diálogo, a falta de justiça na distribuição dos fundos públicos, enfim, a perversidade de um modelo de economia divorciada das necessidades e da vida do povo.
Os povos do continente vão continuar protestando, e é possível que tais protestos se convertam ondas repressivas ainda mais violentas, em resposta a explosões sociais incontroláveis, quando eclodirem as grandes crises (financeira, alimentar, de transporte e circulação urbana, de energia, de telecomunicações, climática,...).
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[1] "Prometeu Acorrentado -- Os Grandes Grupos Econômicos, O Endividamento Externo e o Empobrecimento do Brasil", 1988, Documento de Trabalho, PACS/PRIES-CS, 69pp, Rio de Janeiro/RJ.
[2] Durante nove anos, desde sua fundação em 1986, o PACS foi uma das equipes do PRIES/CS – Programa Regional de Pesquisas Econômicas e Sociais do Cone Sul, com base nos quatro países mencionados.
[4] No caderno “Jubileo Sur a 10 años – una década de lucha para liberarnos de la dominación de la deuda”, Jubileo Sur, dezembro 2010, encontra-se um histórico de algumas declarações e documentos que marcaram a caminhada da Rede Jubileu Sul até aquela data.
https://www.alainet.org/pt/articulo/80283
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