Intelectuais, luta política e esquerda: conversações com Carlos Nelson Coutinho
09/10/2013
- Opinión
Recentemente, completamos um ano sem Carlos Nelson Coutinho (28/6/1943 – 20/9/2012), mestre do marxismo e principal discípulo no Brasil do grande filósofo italiano Antonio Gramsci. Ainda que a sua ausência entre nós constitua lacuna impossível de ser preenchida, as ideias de Carlos Nelson prosseguem pujantes. Sua obra é uma inspiração fundamental àqueles que não se conformam diante da irrecuperável fábrica de desigualdades e injustiças do capitalismo e se empenham na longa e árdua luta por outra hegemonia política e cultural, em direção ao socialismo. Essa vitalidade de seu pensamento motiva-me a publicar aqui um fragmento da nossa conversação de quatro horas numa tarde de final de verão, em março de 2004, depois editada na íntegra em dois livros – Combates e utopias: os intelectuais num mundo em crise (Record, 2004), por mim organizado, e Intervenções: o marxismo na batalha das ideias (Cortez, 2006), que reúne ensaios e entrevistas dele.
Carlos Nelson recebeu-me com sorriso largo, um café e os cabelos úmidos de quem acordara ao meio-dia, após trabalhar incansavelmente até quase o amanhecer. A cada pergunta, respondia sem economia de minutos, às vezes alternando o raciocínio certeiro com breves goles de outros cafés e desculpas por fumar. O olhar movia-se pendularmente: ora em meu sentido, como seta e alvo, ora para o lugar insubordinado do horizonte em que, provavelmente, buscava as interseções entre o compromisso crítico, a humanização da vida e a convicção socialista. Havia no seu acolhimento um desejo de compartilhar visões de mundo e valores, que expressava com uma ternura diferente e, se preciso fosse, com a ênfase das artérias revigoradas de sangue.
No texto que se segue, Carlos Nelson analisa as responsabilidades públicas dos intelectuais, a atualidade do extraordinário legado de Gramsci, o significado de ser marxista no século XXI e dilemas para a esquerda digna deste nome realizar-se como força política, numa época em que, como ele ressalta, “a barbárie é o que nos espera, ou o que já nos atinge, se cruzarmos passivamente os braços”.
Como você se sente na condição de remanescente dos anos 60 vivendo neste conturbado começo de milênio?
Enormes mutações realmente ocorreram, mas ao mesmo tempo se pode perceber, por trás da descontinuidade entre os anos 60 e o início do século XXI, algumas linhas de continuidade. A batalha pela hegemonia continuou a marcar todo esse período, com momentos que, sobretudo no início do período, foram mais favoráveis à esquerda. Para resumir o que sinto, lembro que a Livraria Leonardo da Vinci, do Rio de Janeiro, organizou em 2002 uma série de debates sobre as décadas passadas. Coube a mim e a Leandro Konder falar sobre os anos 60. Depois de preparar o texto da minha intervenção, pensei comigo mesmo: que saudades dos anos 60! Foi uma época em que tivemos grandes esperanças. Por paradoxal que pareça, era mais esperançoso viver sob a ditadura do que agora. Você tinha a ideia de que iria sair daquilo e construir alguma coisa realmente nova.
Se Eric Hobsbawm referiu-se ao “breve século XX”, poderíamos falar de uma longa década de 60. Na verdade, a década iniciou-se em 1956 com o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, onde foram denunciados os crimes de Stalin; e, de certo modo, se encerrou com o colapso do eurocomunismo no início dos anos 70. O eurocomunismo foi uma tentativa de retomada do núcleo democrático do comunismo e, ao mesmo tempo, de renovação do pensamento marxista. E, no meio de tudo isso, ocorreu 1968, com o maio francês, a Primavera de Praga e tantos outros movimentos libertários por todo o mundo, no Norte e no Sul, no Leste e no Oeste. Não é casual que, no início dessa longa década – numa declaração feita, se não me engano, em 1958 –, Jean-Paul Sartre tenha afirmado que o marxismo era a filosofia insuperável do nosso tempo. Naquele momento, seguramente, o marxismo disputava hegemonia com muita força.
De lá para cá, assistimos a sucessivos triunfos do capital no terreno da luta de classes. A correlação de forças mudou contra nós. O avanço do capitalismo se refletiu também, evidentemente, no campo da cultura. O pós-modernismo – que Fredric Jameson chamou adequadamente de “lógica cultural do capitalismo tardio” –, com sua tentativa de desconstrução de visões totalizantes do mundo, indica uma perda de força do marxismo. Sabemos que o marxismo coloca a totalidade como critério básico de sua metodologia. Embora acredite que ainda há forças que resistem a essa avalanche irracionalista, não posso deixar de reconhecer que este início do século XXI não parece muito favorável a um intelectual como eu, formado na década de 60 do século passado. Quarenta anos depois, contemplo o mundo com mais ceticismo e mais pessimismo. Mas quero dizer, enfaticamente, que não perdi as esperanças. Adoto e cito sempre aquele dístico de Gramsci: “pessimismo da inteligência e otimismo da vontade”. Não se trata de um pessimismo irracional, mas daquele que se alimenta da razão crítica. Quanto ao otimismo da vontade, que é uma indicação para que mantenhamos unidas teoria e prática, ele se apoia no fato de que quase tudo o que Marx disse a respeito do capitalismo se confirmou. A crítica ao capitalismo formulada por Marx é cada vez mais atual. O capitalismo de hoje – cuja natureza “globalizada” Marx e Engels já haviam ressaltado há mais de 150 anos, no Manifesto Comunista – não eliminou, mas até aguçou, todas as suas contradições.
O que devemos repensar e discutir é a questão do sujeito revolucionário, o sujeito capaz de operar as transformações. A meu ver, esse sujeito situa-se ainda no mundo do trabalho, mas não é mais a classe operária fabril, como Marx pensava. Temos que estudar a nova morfologia do trabalho e também os vários movimentos sociais que, sem provirem do mundo do trabalho, colocam demandas que chamo de radicais, como são os casos dos movimentos feminista e ambientalista, para citar dois exemplos. São sintomas de que as coisas podem recomeçar para nós. Precisamos recomeçar de novo, com a modéstia de quem perdeu uma batalha, tanto no sentido político quanto no sentido cultural, mas com a convicção de que o resultado da guerra não está decidido.
Que papel público os intelectuais críticos podem almejar nestes tempos cinzentos de supremacia do mercado e de cooptação de homens de cultura pelas engrenagens de poder?
Já me referi a uma figura intelectual que marcou fortemente a cultura dos anos 50 e 60, ou seja, Jean-Paul Sartre. Sartre é um clássico exemplo de intelectual tradicional no sentido gramsciano da palavra, isto é, daquele intelectual que não é ligado diretamente a nenhum aparelho de hegemonia, mas que exerce um papel fundamental na formação da opinião pública; quando de esquerda, este tipo de intelectual denuncia o que lhe parece errado, defende valores de solidariedade e de dignidade, mantém vivo o espírito de rebeldia. Sartre foi um digno continuador de Voltaire. Ora, este tipo de intelectual ainda existe no mundo contemporâneo. Talvez o mais famoso deles seja hoje o norte-americano Noam Chomsky, mas há outros exemplos, como o recentemente falecido Pierre Bourdieu, na França. No Brasil, eu pensaria em figuras como Celso Furtado e Antonio Candido. O fato de existirem figuras assim demonstra que este tipo de intelectual continua a ter um papel relevante a desempenhar, de denúncia, de defesa de propostas transformadoras e, sobretudo, de mobilização da opinião pública. Talvez Chomsky influencie hoje menos do que Sartre influenciou em seu tempo, mas o importante é que esta função do intelectual tradicional continua posta na ordem do dia e vem sendo desempenhada satisfatoriamente por algumas grandes figuras do nosso tempo.
Zygmunt Bauman critica o descompasso entre a intelectualidade acadêmica e a sociedade: “Os intelectuais pararam, em grande parte, de se definir pela responsabilidade que têm para com o povo, a nação e a humanidade.” Como você encara o problema?
Bauman tem razão se tomarmos a média dos intelectuais. Muitos intelectuais continuam a ter, do ponto de vista moral e ético, a ideia de que a transformação social é justa e necessária. Mas, na medida em que a mediação entre eles e a realidade social se tornou nebulosa e até difícil, há uma tendência de vários destes intelectuais a refluírem para o espaço acadêmico, despreocupando-se com sua responsabilidade social. Não se trata de uma traição; não é que esses intelectuais tenham necessariamente se acanalhado. Trata-se de uma condição objetiva: tais intelectuais, com frequência, não encontram meios de atuar de outra maneira e acabam renunciando desempenhar um papel social mais direto. Porém, malgrado tudo, ainda há um bom número de intelectuais que se colocam o problema da intervenção social e que tentam resolvê-lo, talvez um pouco caoticamente, cada um a seu modo, até mesmo porque se debilitaram os espaços comuns de outrora, ou seja, os partidos políticos, as organizações, etc. Trata-se, às vezes, de um combate intelectual solitário, mas eu diria que os intelectuais que travam este combate têm tudo para se rearticular e voltar a desempenhar o papel muito bem definido por Gramsci: o intelectual deve se empenhar na organização da sociedade e lutar pela hegemonia política e ideológica do bloco de classes com o qual se identifica. Decerto, a forma na qual isso acontece hoje é bastante diversa daquela da época de Gramsci; o mundo intelectual mudou, assim como mudou o mundo do trabalho, e não apenas em relação ao tempo de Marx e de Gramsci, mas até mesmo em comparação com a época do Welfare State, iniciado após a Segunda Guerra.
Muitos dizem que Gramsci e Lukács estão superados porque ambos tinham muitas expectativas em relação ao papel dos intelectuais e estas expectativas não se cumpriram. Em grande parte, isso é verdade. Gramsci e Lukács, com efeito, apostaram pesadamente na função revolucionária dos intelectuais, uma função que está hoje bastante diluída. Creio, contudo, que é condição para a retomada de uma batalha pela hegemonia que os intelectuais – entendidos na ampla acepção que lhes atribuiu Gramsci – voltem a desempenhar suas funções públicas.
Não teria a intelectualidade de esquerda uma certa dificuldade de se comunicar com um público mais amplo, em função da linguagem elaborada que utiliza?
Gramsci tem uma teoria dos intelectuais muito rica precisamente nesse sentido. Segundo ele, há o grande intelectual, o produtor de ideologias, mas há também um sem-número de ramificações e mediações, através das quais os pequenos e médios intelectuais fazem com que as grandes ideologias e teorias cheguem ao que ele chama de “simples”, ou seja, ao povo. Para Gramsci, não há uma relação direta entre a grande filosofia, a grande cultura, e o que ele chama de “simples”; trata-se de uma relação que se dá através da mediação de uma grande massa de pequenos e médios intelectuais, aos quais devemos dedicar enorme atenção. Na batalha das ideias, na luta pela hegemonia, devemos estar atentos não só à produção dos grandes intelectuais, mas também temos de levar em conta o modo pelo qual os pequenos e médios intelectuais estabelecem uma relação entre esta produção e o senso comum dos “simples”.
Outro ponto interessante em Gramsci é a afirmação de que, entre os intelectuais e os subalternos, ou os “simples”, há sempre um diálogo. Lenin afirmava que o Partido revolucionário tinha como missão trazer “de fora” a consciência política, socialista, para o movimento operário. Esta afirmação, entre outros problemas, atribui aos intelectuais um peso que eles não têm. A função dos intelectuais, enquanto criadores e propagadores de ideologias, é sobretudo dialogar com os “simples”. Gramsci dizia que o povo sente mas não sabe, enquanto o intelectual frequentemente sabe mas não sente. Desse modo, embora saibamos em teoria que a integração entre os intelectuais e o povo é extremamente importante, muitas vezes esquecemos disso na prática. Ficamos satisfeitos quando nosso departamento universitário tem dois ou três marxistas, quando na revista do departamento, que circula para cem pessoas, são publicados três ou quatro artigos de inspiração marxista. Isso é importante, mas só terá um papel social quando as ideias do marxismo chegarem às grandes massas. Gramsci dizia que é mais importante difundir entre as massas uma ideia correta já conhecida pelos intelectuais do que um intelectual criar uma ideia nova que se torne monopólio de um grupo restrito. A socialização do conhecimento, sobretudo do conhecimento ligado ao pensamento social, é uma tarefa fundamental para os intelectuais – tarefa que, muitas vezes por vaidade, nem sempre fazemos bem.
Nessa tarefa de socialização do saber, há muitos exemplos positivos. Já falei em Noam Chomsky, que certamente tem um peso na opinião pública norte-americana e não só norte-americana. Nos Estados Unidos, boa parte da opinião pública contrária à direita e ao militarismo é inspirada por grandes intelectuais, como o próprio Chomsky, Edward Said, Susan Sontag, Gore Vidal, Michael Moore e outros. Isso acontece também no Brasil. Então, ao contrário da opinião pós-moderna de que o grande intelectual universalista perdeu sua função, diria que ele continua tendo as mesmas funções que Gramsci lhe atribuía, só que em condições morfológicas diferentes. Ou seja: mudou a morfologia dos intelectuais, assim como mudou a morfologia do mundo do trabalho, mas – em ambos os casos – permanecem as funções sociais destes grupos. Os intelectuais continuam a ser tão importantes hoje na produção de hegemonia e de contra-hegemonia quanto o eram na época de Gramsci e nos gloriosos anos 60.
Diante da crise de identidade político-ideológica de partidos de esquerda contemporâneos, ainda podemos conceber o partido como intelectual coletivo, como agente da vontade coletiva transformadora?
Os partidos deveriam ser isto, ou seja, intelectuais coletivos, agentes da vontade coletiva, expressões do ético-político ou da universalidade. Enquanto os movimentos sociais colocam em jogo questões frequentemente decisivas mas sempre particulares, a grande tarefa do partido político deveria ser a de universalizar as demandas que provêm de diferentes setores sociais. Nesse sentido, um partido que se pretenda revolucionário tem de se colocar como criador de uma vontade coletiva transformadora, de uma vontade universal. Gramsci diria: de uma vontade coletiva nacional-popular.
Na prática, os partidos não têm cumprido essa função. Na Europa, por exemplo, os partidos de esquerda, que outrora tiveram uma posição revolucionária, tanto na vertente social-democrática quanto na comunista, assemelham-se cada vez mais ao Partido Democrata norte-americano, ou seja, tornam-se federações de lobbies agrupados em torno de figuras midiáticas. O mesmo ocorre com os partidos de direita, que perdem densidade ideológica e se convertem em meros administradores do existente. A velha forma partido – enquanto agrupamento que tinha como base uma concepção do mundo universalista – está cada vez menos presente até mesmo na Europa, onde teve durante mais de um século um peso decisivo. O que resta da oposição que existia, no Reino Unido, entre conservadores e trabalhistas? Ou, na Itália, entre democratas-cristãos e comunistas? Podemos falar assim num “americanalhamento” da política europeia.
Temo que o mesmo processo esteja ocorrendo na política brasileira. Assisto, com ansiedade e temor, à conversão do PT – de um partido que se criou na ideia da transformação social, com uma clara bandeira socialista e ligado aos movimentos sociais – num partido de governo, diluído numa frente absolutamente amorfa, num partido que parece abandonar completamente sua vocação originária de organismo de luta pela transformação social. Uma coisa é constatar esse movimento da realidade atual; outra coisa, muito diferente, é fazer da necessidade uma virtude. Acho que devemos continuar lutando para construir partidos capazes de desempenhar a função de agregadores de vontades coletivas e, portanto, portadores de hegemonia e contra-hegemonia.
Infelizmente, no momento, essa não é a marca dos partidos que se intitulam de esquerda. Uma das tarefas do intelectual hoje é empenhar-se para construir partidos deste tipo, bem como movimentos sociais enraizados na sociedade civil. E, na medida em que haja partidos que possam ser instrumentos de mobilização popular, o intelectual deve dar sua contribuição para que tais partidos busquem efetivamente transformar a realidade. Se não houver uma opção partidária adequada, resta ao intelectual atuar de modo autônomo, como Jean-Paul Sartre e Noam Chomsky, mantendo assim sua capacidade crítica e seu papel na formação de novas relações de hegemonia.
Nos últimos anos, Gramsci voltou a ser referência nas ciências sociais. Não há o risco de leituras apressadas e até distorcidas contribuírem para transformar Gramsci em um pensador cultural, reduzindo o potencial político e revolucionário de seu pensamento?
Num artigo sobre a recepção de Gramsci no Brasil, publicado em final dos anos 80, chamei a atenção para o fato de que Gramsci chegou no Brasil nos anos 60 e foi utilizado por muitos de nós, então jovens intelectuais comunistas, como instrumento de uma batalha essencialmente cultural. Naquele momento, subestimamos a dimensão indiscutivelmente política do pensamento de Gramsci. Continuamos delegando à direção do Partido Comunista a tarefa de elaborar a linha política; criamos uma falsa divisão do trabalho, na qual nos cabia apenas definir as linhas gerais da política cultural. Gramsci aparecia para nós, então, apenas como o defensor da filosofia da práxis, da literatura nacional-popular, mas ainda não como o teórico da revolução socialista no que ele chamou de “Ocidente”. Isso se revelou, no final dos anos 70, uma divisão do trabalho impossível. Nós, gramscianos, começamos então a nos meter também na política, a questionar, com base em Gramsci, o que a direção do Partido continuava a defender. Terminamos todos saindo do Partido.
Hoje, a influência de Gramsci no Brasil continua muito forte. Em meio à chamada “crise do marxismo” – não falo de “crise” no sentido de que o marxismo não tenha respostas para o que está acontecendo, mas no sentido de que ele é hoje uma posição cultural bem menos influente do que anos atrás –, Gramsci é um dos pensadores que mais resistiram e mantiveram sua influência. Resistiu aqui e no exterior. Tenho sido convidado para vários congressos gramscianos em diferentes países. Pude constatar, por exemplo, que é fortíssima a presença de Gramsci em Cuba, onde ele é hoje a bandeira dos intelectuais que querem democratizar o socialismo cubano, introduzindo a problemática da sociedade civil. Disseram-me que Gramsci desapareceu no período em que Cuba se aliou à União Soviética e reapareceu com força após o colapso da própria União Soviética. É um fenômeno mais ou menos generalizado na América Latina. Gramsci está muito presente na Argentina e no México, e voltou a estar presente na Itália, depois de uma fase em que praticamente sumiu. Mas eu não diria que ele está voltando só como teórico da cultura, como aconteceu no Brasil dos anos 60: ele é agora cada vez mais, em Cuba e no Brasil, na Itália e nos Estados Unidos, um ponto de referência importante para se pensar uma nova política socialista e comunista.
Por que Gramsci tem sobrevivido às crises do marxismo?
Sobretudo porque Gramsci percebeu que era preciso renovar o marxismo, criando uma nova teoria do Estado e uma nova teoria da revolução. Foi assim capaz de tornar o marxismo contemporâneo do século XX e, acredito, do século XXI. Certamente, há outros pensadores marxistas que também contribuíram para isso, reconhecendo que muitas afirmações de Marx são datadas e que a atualidade do marxismo deriva não de suas afirmações tópicas, mas da justeza do seu método. Penso, por exemplo, em Georg Lukács, que nos ofereceu – com sua Ontologia do ser social – a mais lúcida leitura filosófica do legado de Marx e Engels. Algumas contribuições da chamada Escola de Frankfurt, sobretudo as de Marcuse e Benjamin, também são importantes para essa necessária renovação do marxismo.
Estão em voga nos meios intelectuais norte-americanos e europeus as teses do multiculturalismo e dos estudos culturais, cujas vertentes progressistas propõem teorias críticas em articulação com as ideias de Gramsci. O que você pensa a respeito?
Meu amigo Joseph A. Buttigieg, organizador da edição americana dos Cadernos do cárcere, tem uma posição muito crítica tanto em relação aos estudos culturais quanto ao multiculturalismo: “Não é o que Gramsci disse”, diz ele. Gramsci tinha uma visão claramente universalista. Ele certamente pensava o particular; era capaz de tomar como referência para suas reflexões tanto um artigo sobre os negros da Abissínia quanto as afirmações de uma revista católica italiana do século XIX. Sempre se mostrou muito preocupado com a diversidade cultural, com o enorme pluralismo cultural do mundo moderno, que ele valorizava, buscando sempre um elemento positivo em todas essas manifestações particulares. Mas nele há sempre, ao mesmo tempo, uma clara orientação universalista, que nem sempre vejo nos chamados estudos culturais e no multiculturalismo, ainda que estes se intitulem “críticos do presente”. Os estudos culturais e o multiculturalismo são importantes para chamar a atenção sobre as diferenças, sobre as identidades, para não deixar subsumir coisas diversas no mar de uma universalidade abstrata. Gramsci sabia, de resto, que a universalidade concreta se alimenta da diversidade e da pluralidade. Mas falta frequentemente nos chamados estudos culturais, no multiculturalismo e também nos estudos feministas e ecológicos uma visão universal, uma busca da totalidade, que me parecem estar presentes no marxismo e, particularmente, no marxismo de Gramsci. O reconhecimento das diferenças não pode se opor à afirmação da totalidade, dos valores universais.
Você tem dito que, mesmo correndo o risco de ser considerado um “animal em extinção”, reafirma a sua convicção no marxismo. É difícil ser um marxista assumido?
Talvez seja mais difícil agora do que nos anos 60. Naquela época, ser marxista era uma coisa quase natural. Pelo menos metade dos intelectuais brasileiros (e não só brasileiros) ou era marxista, ou simpatizava com o marxismo. De qualquer modo, em contraste com outros países, o marxismo brasileiro resistiu melhor nas últimas décadas. E resistiu por um fenômeno peculiar: o crescimento de um partido de esquerda, o PT, nesse período da história brasileira. Enquanto na Europa observa-se um refluxo dos partidos comunistas e socialdemocratas nos anos 80 e 90, no Brasil, ao contrário, tivemos o surgimento e a expansão de um partido de esquerda que, embora não se declare marxista, é certamente influenciado pelo marxismo e contém em seu interior vários marxistas. Pelo menos, foi assim até muito recentemente. Se nos anos 60 a predominância do marxismo em nossa intelectualidade era bem mais forte, hoje as posições marxistas ocupam um espaço razoável na cultura brasileira.
De qualquer modo, é importante notar que ser marxista não é repetir o que Marx diz. Ele disse muita coisa que, evidentemente, está superada e outras que eram erradas já no tempo dele. Ser marxista é ser fiel ao método de Marx, ou seja, à capacidade que tal método revelou de entender a dinâmica contraditória do real e as linhas de tendência da sociedade moderna. Portanto, para ser marxista é preciso ser um animal em mutação. Tenho insistido – chocando inclusive alguns marxistas mais ortodoxos – que a essência do método de Marx é o revisionismo. Durante anos, o revisionismo foi considerado um dos inimigos principais do verdadeiro marxismo. O exemplo era Bernstein, que, realmente, propôs uma revisão que significava o abandono do marxismo. Por isso, todo revisionista tornou-se um traidor. Apesar disso, penso que faz parte da essência do marxismo se renovar e se revisar sempre. Não há verdadeiro marxista que não seja revisionista. É o caso, por exemplo, de Lenin, que revisou várias teses marxianas, como, entre outras, a de que a revolução socialista começaria nos países mais avançados. Uma das características do método marxista consiste precisamente em afirmar que a realidade é histórica, que ela está sempre em mutação – e, por isso, quem é verdadeiramente marxista está sempre revisando os seus conceitos para dar conta deste real sempre mutável.
Ainda é possível escapar à barbárie capitalista?
Certamente ainda é possível. O quadro atual, como tenho dito, nos é bastante desfavorável. Desde que comecei a pensar a política, já lá se vão mais de 40 anos, nunca a conjuntura foi tão desfavorável à esquerda quanto nesse último período. Mas já houve outras épocas históricas, antes destes meus 40 anos de militância e reflexão, em que as coisas foram ainda piores. Imagine o que sentia uma pessoa de esquerda quando quase toda a Europa estava ocupada pelas tropas nazistas, as quais, entre outros avanços, chegaram a até 40 quilômetros de Moscou. Houve então momentos profundamente negativos, em que a barbárie (em sua forma cruamente nazista) parecia ter triunfado. Mas o fato é que o nazismo foi derrotado em pouco mais de cinco anos. Há esperanças, portanto, de superarmos mais uma vez a barbárie. Mas, para isso, é preciso que lutemos contra ela, tal como os povos lutaram contra o nazismo. A vitória contra a barbárie não será resultado de uma fatalidade histórica. Ao contrário: a barbárie é o que nos espera, ou o que já nos atinge, se cruzarmos passivamente os braços. A alternativa com que nos defrontamos continua a ser o dilema formulado por Rosa Luxemburgo: socialismo ou barbárie. Cabe-nos reinventar aquele socialismo que, adequado ao século XXI, nos livrará da barbárie em que estamos cada vez mais envolvidos.
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Dênis de Moraes é doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1993) e pós-doutor pelo Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO, Argentina, 2005). Atualmente, é professor associado do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense. Pela Boitempo, publicou Mídia, poder e contrapoder: da concentração monopólica à democratização da informação (2013) e O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos (2012). Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
https://www.alainet.org/pt/articulo/79999
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