Eric Toussaint: «Nunca existiu solidariedade europeia no âmbito da UE. É preciso gerar solidariedade entre os povos europeus.»

16/07/2013
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A crise na zona euro mostra que há uma Europa a duas velocidades, e não a UE-17 (zona euro) e a UE-27 (Estados-membros), mas a UE dos países ricos e fortes, dum lado, e a UE dos países pobres e frágeis, do outro. O que provocou esta clivagem?
 
A União Europeia e a zona euro foram criadas através da aplicação de princípios que favorecem apenas o capital: a livre circulação de capitais, a livre circulação de bens e serviços, a promoção, a todo o custo, do princípio da concorrência, o questionar dos serviços públicos... Dá-se total liberdade ao capital, para obter o máximo lucro, considerando erradamente que ao favorecer a iniciativa privada, tudo corre bem. Com a implementação deste princípio e reduzindo ao máximo a intervenção dos Estados, em termos de regulamentação e de orçamentos, ficamos com uma Europa com um orçamento inferior a 1% do PIB, quando, em geral, os orçamentos dos Estados mais industrializados se situam em torno dos 40 a 50% do PIB! Resta-nos um orçamento miserável, destinando-se metade desse orçamento à Política Agrícola Comum. Resultado, a Europa não se dotou dos meios que lhe permitem reduzir as disparidades entre as economias mais fortes e as economias mais fracas da União. Quando se coloca numa mesma estrutura economias concorrentes muito diferentes, reforçam-se as disparidades.
 
Existem mais pontos de rutura ?
 
É que não só há clivagens entre, dum lado, países como a Grécia, Portugal, Irlanda, Espanha e os países da Europa de Leste e, do outro, os países mais fortes da UE, como também há no interior de cada um desses países! Nesses países, as disparidades salariais aumentaram devido às reformas do mercado de trabalho.
 
As políticas levadas a cabo no interior dos Estados-Membros da UE têm contribuído para essas desigualdades. Um exemplo emblemático, a Alemanha. Foram implementadas contrarreformas com vista a aumentar drasticamente as diferenças de estatuto entre trabalhadores, o que faz com que hoje existam 7 milhões de empregados a tempo inteiro que ganham 400 euros por mês!
 
Sabemos que a fiscalidade é um dos nós do problema europeu assim como o endividamento dos Estados. Como explicar o facto de a maioria dos países europeus continuar a apostar na concorrência interna?
 
Foi recusada uma harmonização fiscal na Europa. Encontramos sistema fiscais totalmente diferentes. Em Chipre, o imposto sobre as empresas é de 10%. O que deveria mudar com a crise que conhecemos hoje. Na Irlanda, o ISOC é de 12,5% e na Bélgica é de 33,99%. Esta disparidade permite que as empresas declarem os seus rendimentos onde os custos forem menores. A política europeia atual protege a evasão fiscal. Os paraísos fiscais existem no interior da União Europeia e da zona do euro, nomeadamente, a City de Londres em termos de UE e o Grão-Ducado do Luxemburgo para a zona do Euro.
 
A nível nacional, é perfeitamente possível adoptar medidas de justiça fiscal. A ideia de que «estamos na zona do euro, por isso não podemos tomar medidas a nível fiscal» é falsa. Fez-se com que as pessoas acreditassem que não há outro caminho. Os que invocam esse discurso pretendem proteger os autores de fraudes. Percebe-se claramente que, com o «caso» de Chipre, começam a aparecer soluções que anteriormente eram consideradas impossíveis: taxar as pessoas que têm mais de 100.000 euros no banco, controlar os movimentos de capitais. Eu rejeito o plano imposto pela Troika em Chipre, porque o objectivo é impor uma política global antissocial. Mas as soluções adoptadas mostram que é possível controlar os movimentos de capitais e taxar pesadamente o património acima de um determinado nível de riqueza.
 
Apesar das regras impostas pela UE, é bem possível que os países se oponham à política da Comissão e forcem, pela sua atitude, uma renegociação a nível europeu. É preciso reconstruir a Europa democraticamente. Entretanto, é necessário que os governos de esquerda quebrem a disciplina. Se François Hollande tivesse respeitado esse compromisso, os franceses tinham-no eleito, ele teria pedido para renegociar o pacto fiscal europeu com Angela Merkel, e se ela se recusasse, ele manifestava-se contra na altura da votação. Isto poderia ter evitado a adopção do tratado.
 
A crise do euro traduz, de forma evidente, a ausência de uma governança política sólida (ausência de uma coerente política económica, orçamental, fiscal e social). O não apoio europeu em relação à dívida grega é revelador da fragilidade de uma União que não é fundada na solidariedade. A crise do Euro é definitivamente o toque de finados da solidariedade europeia? O sonho do federalismo europeu está finalmente enterrado?
 
A solidariedade europeia nunca existiu no quadro da UE, tal como a conhecemos. Ou poderíamos dizer que a haver solidariedade é com as grandes empresas europeias. Os governos europeus têm sistematicamente tomado medidas para ajudar os bancos europeus e as grandes empresas europeias. Mas quando se trata de ajudar os povos e as economias mais fracas, não há solidariedade. Pode-se dizer que há um certo tipo de solidariedade: uma solidariedade de classe, uma solidariedade entre capitalistas.
 
O federalismo é possível, mas deve resultar de uma decisão constituinte dos povos. Guy Verhofstadt e Daniel Cohn-Bendit defendem um federalismo de topo... Precisamos de um federalismo de base, do povo.
 
O federalismo é possível e necessário, mas implica uma solução para a crise europeia decidida pelas bases. Isto não significa um isolamento, mas a solidariedade entre os povos europeus e uma Constituição Europeia decidida pelos povos.
 
O que é preciso fazer para tornar as instituições europeias mais democráticas?
 
É preciso desconstruir as instituições não democráticas e construir novas com base numa decisão constituinte dos povos! O poder legislativo (o Parlamento Europeu) é extremamente fraco, muito submisso ao executivo.
 
Na ausência de uma receita milagrosa, tem uma ideia concreta para reconciliar os cidadãos com a Europa?
 
Dentro das fronteiras nacionais, é preciso tomar iniciativas para que os movimentos sociais e as organizações consistentes de esquerda definam um projeto comum. A nível europeu, através do movimento Altersummit, tenta-se promover uma convergência o mais alargada possível entre movimentos de cidadãos, movimentos sociais e sindicatos europeus[1]. Não é fácil, tem sido muito lento, mas é, no entanto, preciso construir uma coligação de movimentos sociais europeus. É também necessário ajudar a relançar, se possível, o movimento dos indignados, apoiar o Blockupy em Frankfurt contra o BCE[2]. É preciso apoiar as ações e as atividades das feministas contra a austeridade na Europa[3]. E há que reforçar outras iniciativas: a Rede europeia e mediterrânica de auditorias cidadãs (ICAN)[4], a Rede Europeia contra a privatização da saúde[5], os esforços para a criação de um Movimento antifascista europeu[6], a iniciativa «Os povos europeus contra a Troika», que deu origem a ações em dezenas de cidades e vilas na Europa, a 1 de junho de 2013[7].
 
A Europa tem razão de ser porque...
 
Porque é preciso que haja solidariedade entre os povos europeus e ela é perfeitamente possível.
 
A Europa tem razão de ser, desde que...
 
Desde que o processo seja realizado «pelas bases». É preciso uma decisão constituinte dos povos europeus e, portanto, uma refundação da Europa.
 
Temos de virar as costas à política que tem sido implementada até aqui. Há vários cenários possíveis para a sair da crise. A receita que está agora a ser aplicada (austeridade) aprofunda e agrava a crise. Esperam-nos, pelo menos, 10 a 15 anos de crise, de crescimento muito reduzido. A não ser que a mobilização social obrigue a reformas estruturais radicais, tais como: a socialização dos bancos, o reforço dos serviços públicos, a reconstrução de uma Europa com base numa decisão constituinte dos povos, uma Europa solidária com as outras partes do mundo. É preciso também obter a anulação/repúdio da dívida pública ilegítima e, nessa perspectiva, desenvolver iniciativas de auditoria cidadã, como é o caso da Bélgica hoje[8]. Esta solução implica que os movimentos sociais e a esquerda radical sejam capazes de oferecer uma verdadeira alternativa, um programa coerente, que não se limite a um programa neokeynesiano. Eu acharia lamentável que esta crise do capitalismo levasse apenas, no final, a um pouco mais de disciplina... O capitalismo verde regulado não resolve o problema fundamental das alterações climática. É preciso sair do sistema capitalista. (Tradução Maria da Liberdade. Revisão Rui Viana Pereira)
 
- Entrevista conduzida por Monique Van Dieren e Claudia Benedetto e publicada na revista Contrastes
 
A versão original desta entrevista está disponível no site das Equipas Populares, que editam a revista Contrastes: http://www.equipespopulaires.be/sites/www.equipespopulaires.be/IMG/pdf/CTR-3_4.pdf
 
A presente versão foi revista especialemente para o site www.cadtm.org - http://cadtm.org/Eric-Toussaint-La-solidarite
 
https://www.alainet.org/pt/articulo/77757
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