Uma Igreja sem papa?
10/03/2013
- Opinión
Meu mestre em história da Igreja, Eduardo Hoornaert, de quem fui aluno no curso de teologia, faz uma proposta ousada, mas não descabida: uma Igreja Católica sem papa!
À primeira vista, soa como uma heresia. Tão assustadora como se propor, no século XIX, um Brasil sem imperador, uma Rússia sem czar, uma Áustria sem rei.
O papado não é uma instituição de origem cristã. A palavra “papa” não figura no Novo Testamento. Derivar o papado do versículo de Mateus 16, 18 – “Tu és Pedro e sobre esta pedra construirei minha igreja” – é isolar o texto do contexto. Nada indica nos evangelhos que Jesus pensou em instituir uma dinastia apostólica.
Foi o bispo Eusébio de Cesareia, mentor da política “globalizada” do imperador Constantino, que no século IV teve a iniciativa de redigir listas de sucessivos bispos para as principais cidades do Império Romano, de modo a adaptar a estrutura da Igreja ao modelo imperial de sucessão de poderes. Eusébio criou a imagem de Pedro-papa.
A palavra papa (pope), do grego popular do século III, deriva de “pater” (pai) e expressa a estima dos cristãos por determinados bispos e sacerdotes. Chamar o sacerdote de padre (pai) e o chefe religioso de pope (papa) tornou-se costume nas Igrejas católica e ortodoxa. Ainda hoje, na Rússia, o pastor da comunidade é chamado de pope.
Cipriano, bispo de Cartago (248-258), foi o primeiro a ser chamado de papa. Em Roma, o termo só passou a ser aplicado a seu bispo a partir do século VI, com o papa João I. Já o colégio de bispos, o episcopado ou conferência episcopal, tem raiz cristã. Bispo significa “supervisor” e é citado diversas vezes no Novo Testamento (1 Tm 3,2; Tito 1,7; 1 Pd 2, 25; At 20, 29). Assim como o substantivo “episcopado” (1 Tm 3, 1).
Todo poder centralizado gera rivalidades. A partir do século III teve início uma acirrada disputa entre as quatro principais metrópoles do Império Romano – Constantinopla (atual Istambul), Roma, Antioquia e Alexandria. Os bispos dessas cidades eram conhecidos como “patriarcas”.
Cipriano não admitiu que o bispo de Roma exercesse autoridade sobre ele, bispo de Cartago. Insistiu que entre bispos deveria vigorar “completa igualdade de funções e poder”.
Porém Roma conseguiu se impor, sobretudo a partir de sua aliança com o imperador germânico Carlos Magno, em 800. Isso tensionou suas relações com os patriarcas do Oriente e tornou inevitável o primeiro grande cisma da Igreja, ocorrido em 1052, que marca o início do que hoje se conhece por Igreja Católica (romana), de um lado, e Igreja Ortodoxa, de outro.
O papado, herdeiro do legado imperial de Constantino, tornou-se uma monarquia absoluta (ainda hoje), com poderes sobre reis e imperadores (não mais). Essa estrutura piramidal de poder passou a não diferir de todas as outras análogas na esfera civil, marcadas por intrigas, traições, subornos, negociatas, nepotismo etc., utilizando uma linguagem inacessível aos fieis (o latim) e trocando a arte de convencer (e converter) pela força da coerção (aterrorizar): culpa, inquisição, inferno, medo, venda de indulgências etc.
Dizem que Stalin teria perguntado de quantas divisões de exército dispunha o papa. De fato, Roma, por sua habilidade diplomática, saiu vitoriosa em inúmeros embates com os principais poderes do Ocidente. Toynbee chegou a afirmar que a Igreja ficou afetada pela “embriaguez da vitória”.
Trancado no Vaticano, o papa passou a viver numa esfera irreal, refém de uma cúria mais interessada no apego ao poder que na missão evangélica de levar aos povos a palavra de Jesus.
A modernidade balançou os alicerces da Igreja. A liberdade de consciência, o avanço das ciências, as novas tecnologias, o pluralismo ideológico, tudo isso desmistificou o papado. Pio IX, num gesto de desespero, chegou a promulgar o controvertido dogma da infalibilidade papal, como se a história não registrasse tanta falibilidade em papas que aprovaram torturas, sentenças de morte, assassinatos, simonia, adultério etc.
Leão XIII mudou a estratégia da Igreja e aliou-a aos mais fortes, ao lado dos quais Bento XV comemorou o fim da Primeira Guerra Mundial. Pio XI apoiou Mussolini, Hitler e Franco. Pio XII se omitiu frente aos crimes de lesa-humanidade do nazifascismo.
O ciclo mereceu uma pausa com João XXIII e, de certo modo, com Paulo VI, que condenou a guerra do Vietnã e a ditadura militar brasileira. Mas prosseguiu com o apoio de João Paulo II à ditadura Pinochet no Chile e à política agressiva de Reagan contra a Nicarágua sandinista. Bento XVI se omitiu frente aos recentes golpes de Estado em Honduras e Paraguai.
Ao contrário da instituição do papado, a do episcopado merece aplausos, sobretudo na América Latina entre 1960-1990, com bispos mártires (Angelelli e Romero) e confessores (Helder Camara, Casaldáliga, Proaño, Evaristo Arns, Padim, Mendez Arceo, Samuel Ruiz etc.).
O Concílio Vaticano II pretendeu valorizar os poderes dos bispos e reduzir o do papa. Hoornaert pergunta: “Pode a França subsistir sem rei, a Inglaterra sem rainha, a Rússia sem czar, o Irã sem aiatolá? A própria história se encarrega de dar a resposta”, diz ele.
Cedo ou tarde a Igreja terá de democratizar sua estrutura de poder. Torná-la mais colegiada. O que se discute não é a figura do papa, é a estrutura do papado.
Em suas cartas escritas durante o Vaticano II, e hoje publicadas, Dom Helder diz ter sonhado que o papa enlouqueceu, jogou sua tiara no rio Tibre e ateou fogo no Vaticano.
Na opinião do ex-arcebispo de Olinda e Recife, o papa deveria doar o Vaticano à UNESCO como Patrimônio Cultural da Humanidade, e passar a residir em lugar mais condizente com a sua condição de sucessor de um pescador da Galileia e representante na Terra daquele que não tinha uma pedra onde recostar a cabeça.
Frei Betto é escritor, autor de “Cartas da Prisão” (Agir), entre outros livros.
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