“O tempo nos dirá o que significará para a Europa e o mundo o rearmamento alemão”
Para muitos países, a invasão da Ucrânia ensejou simplesmente a grande oportunidade para um perigoso rearmamento mundial, e a UE renunciou, talvez definitivamente, à ilusão de uma vida econômica e estratégica autônoma em face dos EUA
- Opinión
Com esta advertência, que há de ser considerada por quem não ignora as lições da História, a embaixadora Thereza Maria Quintella nos ajuda a refletir sobre a crise da ordem mundial com um olhar que nos leva para além do noticiário intoxicado, distribuído a mãos cheias pelas agências internacionais de notícias. A diplomata chefiou nossa representação em Moscou, onde viveu de 1995 a 2001 e, assim se fez observadora privilegiada da história russa contemporânea, acompanhando o período liquidacionista de Bóris Iéltsin e a ascensão de Vladimir Putin. Conversa conosco via e-mail, da Malásia, onde se encontra de férias.
Analistas dos mais diversos matizes, na primeira fila os que apostam todas as moedas na inesgotabilidade do diálogo como instrumento de superação dos conflitos, interrogam se Putin não teria se precipitado ao optar pela invasão. As dificuldades atuais, de avanço e controle do terreno ocupado, seriam indicadoras do erro estratégico. Outros se perguntam se Putin não teria levado a Rússia a cair numa armadilha, da qual estaria com dificuldades de escapar. Uma arapuca similar àquela que os EUA armaram para que o Iraque de Saddam Hussein invadisse o Kuwait, com as consequências conhecidas. Thereza Quintella esclarece que “até as vésperas do dia 24 de fevereiro deste ano, quando a Rússia deu início ao avanço de suas tropas por território ucraniano, declarações do Chanceler Sergey Lavrov davam a entender que ele, pelo menos, acreditava que era possível dar seguimento ao diálogo. A decisão de passar à ação militar foi de Putin. Na minha opinião, o presidente russo teria concluído que as negociações eram inúteis, e a guerra inevitável, porque os EUA e os europeus não pressionariam a Ucrânia a fazer concessões. Pelo contrário, seguiriam armando aquele país e a acenar-lhe com a possibilidade de ingresso na OTAN, num desafio evidente a ele [Putin], que sempre declarara que isso representaria uma ameaça inaceitável à segurança russa. Quando deu início ao que chamou eufemisticamente de ‘operação militar especial’, Putin declarou como seus objetivos a desnazificação e a desmilitarização da Ucrânia, o que foi entendido como mudança de governo e renúncia à OTAN. Em declarações feitas na última quarta-feira, dia 16/03, em reunião com lideranças regionais russas, para tratar de medidas de apoio econômico e social à população, para protegê-la dos efeitos das sanções econômicas e financeiras já adotadas pelos EUA, a UE e alguns outros países, Putin deu mais uma explicação para sua decisão: atacara militarmente porque tropas e milícias ucranianas, concentradas nas proximidades da região de Donbass, estariam prestes a avançar para tentar recuperar as repúblicas separatistas de Donetsk e Lugansk, que desde 2014 estavam sendo submetidas a pesados bombardeios ucranianos, e cuja independência a Rússia acabara de reconhecer”.
Adverte Quintella que o Ocidente erra de rumo ao apostar numa resistência interna desgastando Putin, na medida em que a guerra se prolonga mediante a ação conjugada de EUA/OTAN alimentando a Ucrânia com ajuda econômica e fornecimento de armas e munições. Aliás, é assim que começam os grandes e longos conflitos espalhados mundo afora pelos EUA, como, por exemplo, no Afeganistão. Nas palavras da embaixadora, “os laços culturais e familiares entre russos e ucranianos são muito fortes, e sabe-se que houve manifestações internas contra essa guerra, mas Putin continua com apoio elevado e a oposição não seria expressiva a ponto de ameaçá-lo.” Mesmo os efeitos do bloqueio econômico, financeiro e político imposto dificilmente estabelecerão fissuras no aparelho do Estado, até aqui unificado; muito menos se deve contar com uma insurgência. Para Quintella, é também equivocada a expectativa ocidental de que os “oligarcas", como são chamados os milionários russos, venham a provocar, ou contribuir para a derrubada de Putin.
Sobre a mobilização para enfrentar os efeitos da guerra, que guarda consequências imprevisíveis, Thereza Quintella lembra a histórica resiliência daquele povo, “que já passou por períodos de grandes dificuldades” (e é bom lembrar, para ficarmos em um só exemplo histórico, a invasão alemã na segunda guerra mundial), “e por isso acredito que suportará melhor que muitos outros povos os efeitos das sanções econômicas e financeiras que foram adotadas unilateralmente pelos EUA, a UE e alguns outros países, e que terão um efeito bumerangue”. Mesmo numa eventual queda de Putin, imprevisível com os dados de hoje, a embaixadora não considera a possibilidade da absorção da Rússia pelo dito Ocidente. Ela vê uma Rússia cada vez mais afastada do “Ocidente” e mais próxima da China, “e ambos os países contrários à hegemonia norte-americana”, o vetor dos conflitos do mundo de hoje.
A agressividade militar dos EUA, o cerco ao que sobrou dos territórios da antiga URSS e a beligerância das antigas repúblicas do Leste Europeu são conhecidos. As consequências do crescimento da direita em todo o continente europeu eram previsíveis. O neonazismo forceja por vir à tona em quase toda a Europa, e notoriamente na Itália, na França, na Hungria e na Alemanha. Na Ucrânia, milícias nazistas são incorporadas ao exército e há mesmo suspeitas, por serem confirmadas, da existência de laboratórios aptos à fabricação de armas biológicas.
Sabe-se que nesta rodada foi destinado àquele país o papel que cabe ao molusco na peleja do mar com o rochedo. Trava-se em seu território uma guerra por procuração, e seus soldados, ao defenderem sua pátria, estão também lutando e morrendo pelos EUA, numa guerra pela hegemonia mundial que opõe Washington e Beijing.
Como explicar o comportamento da Alemanha, possivelmente o vizinho europeu mais prejudicado pelo conflito, renunciando ao papel de liderança e independência exercido até há pouco? Novamente com a palavra a embaixadora Thereza Quintella:
“A Alemanha sempre foi o membro da UE com relações mais estreitas com a Rússia, mas o novo chanceler, Olaf Scholz, não tem a estatura de Angela Merkel e se alinhou completamente com os EUA. A Alemanha valeu-se da ocasião para anunciar que vai duplicar seu orçamento de defesa. O tempo nos dirá o que significará para a Europa e o mundo o rearmamento alemão.” Esse rearmamento, porém, não é fato isolado. Como vem anunciando a grande imprensa, e a diplomata registra, “é esperado um aumento significativo dos gastos militares nos EUA, e aumentos devem ocorrer também em outros países da OTAN, principalmente no Leste europeu, bem com fora daquela aliança militar, como na Índia, na China e no Japão” - este, um país de trágicas tradições guerreiras e imperialistas. Os americanos, aliás, conheceram a que ponto podem chegar os exércitos nipônicos. No último 23 de março, a OTAN anunciou o envio de armas para as antigas repúblicas do Leste Europeu “de modo a aumentar as forças militares nos territórios aliados da região”, mencionando como primeiro passo “o lançamento de novos batalhões da Otan na Bulgária, Hungria, Romênia e Eslováquia” (CNN Brasil, 23/03/2022).
Breve o mundo será um grande barril de pólvora prestes a explodir. A guerra é o preço que as potências cobram quando a História dita a inexorabilidade da sucessão dos ciclos hegemônicos. Assim hoje, como em 1914 e 1939. A “Guerra Fria” de nossos dias é o preâmbulo do que deverá ser o cotidiano de nosso futuro imediato.
Para muitos países, a invasão da Ucrânia ensejou simplesmente a grande oportunidade para um perigoso rearmamento mundial, e a UE renunciou, talvez definitivamente, à ilusão de uma vida econômica e estratégica autônoma em face dos EUA, por enquanto fortalecidos para o embate de médio prazo com a Eurásia liderada pela China, anúncio de uma nova ordem internacional, política, econômica e militar, impondo um novo desenho ao mundo ditado pela hegemonia anglo-saxã.
Olhando para os nossos dias e nossa tragédia, quais seriam os termos de uma paz duradoura na região? Conclui Thereza Quintella:
“A Ucrânia já sinalizou que aceita renunciar ao ingresso na OTAN, e estariam sendo discutidos os termos da sua neutralidade. Exige que essa seja garantida por países da OTAN, como EUA e alguns europeus, e isso creio que seria aceitável para a Rússia. Mais difícil de negociar é a questão territorial. A posição máxima inicial da Ucrânia, irrealista, é exigir que seja restabelecida sua integridade territorial anterior à anexação da Crimeia pelos russos, em 2014. Acho, à luz do que tem sido a campanha militar da Rússia, que suas pretensões territoriais máximas não abrangem a anexação de toda a Ucrânia, mas certamente o reconhecimento pela Ucrânia da perda da Crimeia, das repúblicas de Donetsk e Lugansk e também, muito possivelmente, das terras de ligação entre a Crimeia e aquelas repúblicas ao longo do Mar de Azov. A evolução das posições negociadoras das duas partes depende do desenrolar da guerra nas próximas semanas e, principalmente, de conseguirem os russos ocupar o importante porto de Mariupol, no Mar de Azov”.
Mas a paz mundial está definitivamente afastada?
Ela permanece como uma necessidade, sobrevivendo, como agora, em meio a conflitos de toda ordem. Vivemos momento precioso e raro na História: o parto de uma era. Há um novo mundo por nascer e um mundo velho tentando impedi-lo de vir à luz. Chegamos ao nosso Rubicão, e daqui em diante qualquer previsão será temerária. A esperança, frágil, está na possibilidade de a humanidade voltar a temer o fim da vida no planeta que não soube ocupar.
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