Capitalismo digital: o novo rosto do antihumanismo corporativo

Enquanto a digitalização e o poder corporativo avançam, as instituições estatais e os movimentos sociais reagem a essas novas realidades de forma relativamente lenta, sem capacidade de antecipar cenários futuros. Portanto, é imprescindível instalar o problema digital como bandeira da luta dos povos.

01/09/2021
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Como se sabe, o capitalismo vive uma fase acelerada de reconversão tecnológica, cujo principal elemento é a digitalização. O uso de grandes quantidades de dados, inteligência artificial, a multiplicação de plataformas em todas as áreas da atividade humana, teletrabalho, comércio digital, computação em nuvem, entretenimento online, a aplicação massiva da robótica na produção e a internet das coisas são alguns dos fatores visíveis desta nova revolução industrial.



Embora a conectividade com a internet, suporte básico dessas transformações, ainda não alcance toda a população, o crescimento é baixo. Por exemplo, na América Latina e no Caribe, uma grande região com um atraso relativo em sua infraestrutura de telecomunicações, longe da realidade dos Estados Unidos, da Europa,da Ásia-Pacífico e da Eurásia, o número de pessoas conectadas à rede dobrou entre 2010 e 2019, atingindo 67%. A cobertura 4G e a velocidade de conexão também aumentaram. A maioria das empresas já está conectada à internet, grande parte usa banco eletrônico, usa a rede na cadeia de suprimentos e muitas já começaram a implantar canais de vendas virtuais.Isso nos mostra uma tendência irreversível: estamos no auge da Era Digital.



Tudo isso se acelerou no decorrer da pandemia. A presença empresarial na internet, o comércio eletrônico, o uso de plataformas de ensino eo trabalho remoto tiveram um forte crescimento em muitos países. Isso aumentou o poder concentrado das corporações digitais. Vejamos alguns dados: no segundo trimestre de 2021, a Apple vendeu 50% mais telefones Iphone que no mesmo período em anos anteriores. Amazon e Microsoft também aumentaram seus lucros em uma porcentagem semelhante, o Facebook dobrou seus lucros e a Alphabet (dona do Google) os multiplicou em 2,6 vezes. Longe de estarem confinadas a seus negócios originais, essas corporações sediadas nos Estados Unidos diversificaram fortemente seus interesses, abrangendo produção de filmes, mídia, viagens espaciais, carros autônomos e realidade aumentada, entre muitos outros mercados.



Além da questão da concentração econômica, é muito preocupante a posição central deste tipo de empresas na história dominante, controlando os principais canais de comunicação na Internet.



A pobreza extrema, que diminuiu em todo o mundo cerca de 1% ao ano entre 1990 e 2015, e que já vinha abrandando o seu declínio, volta a se aprofundar. Um em cada dez indivíduos no planeta passa fome e milhões de pessoas são lançadas no desemprego e na precariedade do emprego.



Na América Latina, o emprego no setor de tecnologia da informação e comunicação, que prometia compensar a perda de empregos devido à automação, é proporcionalmente baixo, e representa apenas 1,6% do emprego masculino. No caso das mulheres, mais uma vez discriminadas, essa participação é bem menor, correspondendo a apenas 0,9%. A diferença entre os estratos populacionais condiciona o direito à educação e aprofunda as desigualdades socioeconômicas.



Em suma, as supostas vantagens da economia digital não diminuíram a desigualdade pré-existente, mas a aprofundaram.



Quem são os beneficiários?

Apesar de alguns nomes familiares (Zuckerberg, Bezos, Gates, Page, Brin ou os herdeiros de Jobs) serem normalmente recordados, por serem os sócios majoritários de cada um dos empórios digitais, essas empresas têm como grandes acionistas os principais fundos de investimento, ou seja, os bancos especulativos. Para ilustrar, mais de 80% das ações do Facebook, por exemplo, estão nas mãos dos principais fundos de investimento (Vanguard Group, Black Rock, FMR, State Street Corp, etc).



No caso da Alphabet, o percentual de participação institucional é de 67%, semelhante ao pacote da Amazon (em torno de 60%), sendo composto pelos mesmos setores especulativos.



O contexto econômico capitalista



A economia especulativa, longe de ter diminuído após o estouro da bolha de 2007-2008, atinge atualmente cerca de 20 vezes o PIB mundial – embora seja uma cifra difícil de estimar com mais precisão. A super acumulação de capital, a emissão contínua de moedas sem lastro como o dólar, as taxas de juros baixas e, em contrapartida, a acumulação de dívida privada e pública, alimentam os negócios especulativos.



O reinvestimento produtivo continuou em declínio, reduzindo a oferta de empregos formais para a grande maioria. Estima-se que em apenas dois anos (entre 2017 e 2019) o investimento estrangeiro direto caiu pela metade (de 2,7 trilhões a 1,4 trilhão de dólares).



Nesse contexto de parasitismo financeiro, a economia digital se apresenta como possível investimento, buscando sair da crise de rentabilidade na que o capitalismo industrial está imerso há várias décadas. Essa rentabilidade do campo digital é explicada por razões convergentes: entre elas, o baixo valor dos tributos pagos pelas empresas (que estão formalmente registradas em paraísos fiscais, além e contar com os incentivos à evasão fiscal entregues pelos estados nacionais onde atuam efetivamente), a pouca representatividade sindical no setor digital, a absorção de recursos intelectuais e financeiros públicos de pesquisa, o uso de dados pessoais como matéria-prima gratuita, a destruição da concorrência ou a desregulamentação de fato do ambiente virtual.



Limitações físicas da expansão capitalista



Por outro lado, o capitalismo, em sua busca pelo crescimento ilimitado, atingiu limites físicos indiscutíveis, produzindo fortes desequilíbrios em ecossistemas vitais. Assim, a digitalização e o extrativismo de bens intangíveis, como os dados, aparecem falsamente como parte de um novo ciclo de reconversão “verde” da economia. Falsamente, porque o consumismo e a acumulação que ele acarreta continuam a se basear nos recursos naturais finitos do planeta.



Ou negócios e planeta, à miséria e local



Após o ciclo de instalação neoliberal da globalização, com a consequente destruição dos sistemas públicos e o enfraquecimento dos estados nacionais, o mapa comercial foi estendido a todo o planeta, promovendo escalas mundiais para os negócios. Dessa forma, as corporações, com sua habitual irresponsabilidade social, aproveitam o potencial de um mercado planetário, e cabe aos estados administrar os problemas deixados em seu rastro.



O pan-óptico global



O outro recurso fundamental do capitalismo digital é a informação. Desta forma, as empresas transnacionais estabeleceram um sistema globalizado de vigilância e inteligência, que aproveita a interferência das plataformas digitais na vida pessoal, obviamente para manter a maioria da população ocupada e controlada. Objetivo que, apesar de tudo, não atinge completamente.



A dependência do Sul

Outra finalidade no desenvolvimento de um capitalismo digitalizado é manter e aprofundar as lacunas tecnológicas entre o centro e as periferias mundiais e, consequentemente, a dependência do Sul global. Porém, a OTAN digital comandada pelos Estados Unidos, com seus sócios menores Europa e Japão, tem hoje sua contrapartida em uma Muralha da China digital, que conseguiu superar parcialmente, como vários de seus vizinhos asiáticos, a situação de subdesenvolvimento tecnológico que prevalecia anteriormente.



Ainda assim, as enormes desigualdades continuam existindo. Segundo a CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), o índice de desenvolvimento das indústrias digitais (composto por fatores mistos) nos Estados Unidos é de 43%, e na Europa Ocidental é de 36%. Na América Latina e Caribe, África e Ásia-Pacífico, este indicador chega a 18%.O índice de desenvolvimento das indústrias digitais é composto por: 1) o peso econômico das indústrias digitais (medido a partir das vendas brutas das indústrias digital e de telecomunicações e duas despesas da economia de software) em relação ao produto interno estúpido; 2) a penetração de conexões de internet das coisas (entendida como um indicador de disseminação de aplicações verticais); 3) o nível de exportação de produtos e serviços de alta tecnologia e 4) a produção local de conteúdo.



Por outro lado, a infraestrutura continua a ter os traços imperiais de seus primórdios. Quatro dos 13 servidores raiz da internet (DNS) permanecem em solo dos Estados Unidos e 10 deles são controlados por empresas, universidades ou instituições militares ou estaduais norte-americanas. Além disso, o inglês continua a ser a língua usada para seus protocolos, linguagens de programação e cada uma das partes constituintes da rede.


Desta forma, o capitalismo digital é a nova face do colonialismo, cumprindo perfeitamente a função de penetração não só econômica, mas também cultural e militar, típica do imperialismo.



A captura do sistema de relações internacionais por parte das corporações



Há algum tempo, empresas e um grande número de ONGs vêm intervindo em organismos e organizações multilaterais em aspectos teoricamente reservados aos estados e seus governos. Isso é particularmente verdadeiro no mundo digital, onde a governança está nas mãos de um sistema multissetorial ou de “múltiplas partes interessadas”. Estão envolvidos: a comunidade técnica, o setor privado, governos, universidades e as chamadas organizações da sociedade civil - ou organizações não governamentais, algumas delas parcial ou totalmente financiadas pelas próprias empresas multinacionais para operar publicamente. em favor do seu discurso.



A influência privada, sem qualquer legitimidade democrática, ameaça cooptar o sistema político das relações internacionais por meio de uma estratégia que responde precisamente às diretrizes do Fórum Econômico Mundial (Davos). Sob o discurso da “cooperação digital”, a iniciativa pode abrir caminho para a formulação de políticas vinculativas, por meio da conversão de um órgão consultivo de múltiplas partes interessadas em um de “governança de múltiplas partes interessadas”.



Este órgão de alto nível está sendo promovido por meio de um processo lançado pela própria Secretaria-Geral das Nações Unidas, que tem como base as recomendações de um Painel de Alto Nível sobre Cooperação Digital, o qual está constituído pelo mesmo sistema multipartite anterior, e cuja vice-presidência é exercida por Melinda Gates, da Fundação de mesmo nome, e por Jack Ma, fundador da corporação chinesa Ali Baba.



É evidente que se as corporações obtêm influência decisiva sobre as normas e regras que regem os espaços digitais, pouco pode ser feito para regulá-las segundo o interesse das pessoas. Além disso, na medida em que a digitalização avança ainda mais em cada área da atividade humana, a influência empresarial será projetada sobre elas, como já é o caso, hoje em dia, das áreas de alimentos, comércio digital e de conflito ambiental, para citar apenasalguns exemplos.



Corolário

Enquanto a digitalização e o poder corporativo avançam, as instituições estatais e os movimentos sociais reagem a essas novas realidades de forma relativamente lenta, sem capacidade de antecipar cenários futuros. O que está claro é que o poder de uma parte sobre o todo não vai resolver nenhum dos problemas da grande maioria.



Portanto, é imprescindível instalar o problema digital como bandeira da luta dos povos, para se sensibilizar adequadamente sobre seus impactos, esclarecer posições políticas coletivas nos movimentos para dar-lhe âncora territorial e exigir novos direitos nas políticas públicas de acordo com o novo cenário.



A questão vai muito além da esfera do ativismo digital. É essencial que os cidadãos tomem medidas nesta matéria. Se trata do nosso futuro comum.

https://www.alainet.org/pt/articulo/213626
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