O trabalhador no sistema Hamlet

A percepção atual do trabalho metamorfoseou das antigas formas autoritárias e hierárquicas da antiga esfera da produção e consumo para a autoexploração.

11/08/2021
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Trabalho precário e estressante
Ilustração: Vitor Teixeira
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O questionamento filosófico encetado pela mente brilhante do dramaturgo inglês, William Shakespeare, na peça A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca, parece adequar-se à realidade da classe trabalhadora neste início da terceira década do século 21. Embora produzida a mais de quatro séculos, a frase recitada por Hamlet “ser ou não ser, eis a questão” atualiza a centralidade do eixo que faz girar a encruzilhada da necessidade de ofertar trabalho que seja remunerado para sobreviver com a amargura da demanda capitalista por um trabalho crescentemente precário, estressante e empobrecedor.

 

A postura humana em relação a esse encruzamento apela ao método socrático[1] enquanto técnica vantajosa de reflexão sobre a atualidade dos valores laborais instados pelas distintas percepções do espírito próprio do capitalismo. Há mais de cem anos, Max Weber (A ética protestante e o espírito do capitalismo) identificou o quanto a ética capitalista do trabalho subvertia a perspectiva religiosa, moldando o ideário dominante da obrigação de controlar a si próprio em prol da expectativa de vida melhor através do consumo.

 

Após o acúmulo diverso de análises críticas sobre a realidade vivida pelo trabalho, acompanhado por intensas e profundas lutas operárias e reações institucionais, emergiu nova percepção a respeito dos valores laborais. Pela contribuição de Luc Boltanski e Éve Chiapello (O novo espírito do capitalismo), a percepção atual do trabalho metamorfoseou das antigas formas autoritárias e hierárquicas da antiga esfera da produção e consumo para a autoexploração.

 

No passado, a consciência da realidade a respeito do descompasso entre o valor do trabalho e a riqueza gerada se convertia em rebeldia, geralmente coletiva. Mas nos dias de hoje, a percepção da exploração no trabalho fomenta a autoagressividade que se traduz no quadro de indivíduos depressivos.

 

De certa forma, a notabilidade da liberdade almejada pelas gerações do final dos anos de 1960, através da contundente crítica ao capitalismo da época, terminou sendo apropriada pela nova direita. Com o neoliberalismo, a cultura simbólica da subjetividade da liberdade foi incorporada pelo patronato através da falsa vulgata hedonista inscrita no individualismo.

 

O avanço da digitalização na sociedade, por exemplo, vem expressando a ubiquidade da internet a serviço dos modelos de negócios a invadir privacidades e de individualidades caracterizadas por sociabilidade, trabalho e entretenimento exposto 24 horas ao dia. Com isso, a confusão que se estabelece no trabalho entre a reprodução realizada em casa e a produção efetivada fora de casa, geralmente perseguida pela perturbação que resulta da insegurança contida na continuidade dessa própria adoecedora relação.

 

Nesse contexto de extrema pressão, o sentimento da obrigação pelo exercício do trabalho, sempre que existir, alarga-se sem interrupção, se necessário. O estresse no trabalho termina se expressando através da sensação de se estar acabado, emitindo sinais de sofrimentos psicológicos e físicos, como o nervosismo e o cansaço excessivo, desmotivadores, inclusive, da própria vontade de não sair da casa.

 

Em 2019, por exemplo a denominada “Síndrome do Esgotamento Profissional” (Bornout) atingiu um a cada três ocupados no Brasil, segundo a Isma (International Stress Management Association). Com a chegada da pandemia da Covid-19, a situação de isolamento social expôs ainda mais a centralidade do trabalho perseguido em todos os ambientes expostos à conectividade da internet a exaurir gradualmente a vida pela depressão e ansiedades diversas.

 

Por outro lado, o absenteísmo no trabalho manifestado por cerca de 1/3 dos brasileiros, conforme revela o Ibge, recoloca o permanentemente questionamento acerca do sentido da vida a negar o frequentemente o valor do próprio labor. A destruição que disso resulta chega a alcançar múltiplas carreiras profissionais, bem como a formação qualificada para o próprio exercício labora, cada vez mais comprometedor da saúde física e mental.

 

Eis o sistema Hamlet que grande e crescente parcela da classe trabalhadora se encontra sitiada. O novo espírito do capitalismo se constituiu sustentado justamente na dicotomia imposta ao trabalhador: ser ou não ser, eis a questão.

 

- Marcio Pochmann é Professor e pesquisador do Cesit/Unicamp e da Ufabc

 

[1]. Ver mais em: MIYAZAKI, M.. Diálogo socrático. In: ABREU, C.; GUILHARDI, H. (orgs.) Terapia comportamental e cognitivo-comportamental. São Paulo: Roca, 2004.

 

10/08/2021

https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Trabalho/O-trabalhador-no-sistema-Hamlet-/56/51288

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/213407?language=es
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