O povo falou, entendeu?

O Chile mestiço deixará de ser um estigma social. Teremos finalmente um Estado plurinacional onde as raízes de conquistadores e de colonos europeus se harmonizarão – pelo menos na Constituição.

18/05/2021
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O fato político mais importante destas eleições, a meu ver, foi a vitória comunista na comuna (prefeitura) de Santiago, o coração da República. Uma jovem de 30 anos, Irací Hassler Jacob, economista, se tornou a primeira prefeita comunista do antigo bastião do conservadorismo. O primeiro prefeito de Santiago no cauteloso retorno à democracia foi Joaquín Lavín, então da extrema-direita, e hoje candidato presidencial do liberalismo socialdemocrata. Depois de Lavín, salvo o parêntese da socialista Carolina Tohá, os prefeitos de Santiago foram da União Democrática Independente, Renovação Nacional e Democracia Cristã.

 

Não é que o eleitorado de Santiago - formado em sua maioria pela classe média - se tornou comunista. Na Convenção Constitucional o PC conseguiu apenas 4% dos votos. O que ocorreu é que antigos rivais do PC pela esquerda e milhares de eleitores medrosos pelo centro se somaram sem condições ou melindres à candidata comunista. A municipalidade de Santiago é uma base muito importante de recursos e influência. Se a administração da prefeita Irací Hassler – que tem quatro anos de experiência como vereadora – for eficiente, a influência do PC em um centro político ansioso por experiências renovadoras, como as do prefeito Daniel Jadue em Recoleta, será afiançada e projetada para outros planos.

 

Numa análise mais geral, a vitória dos independentes na Convenção Constitucional é um fato retumbante. Serão 57% dos 155 convencionais. As listas que os representaram, no geral, respaldam um programa social avançado e rechaçam os partidos tradicionais. O Chile mestiço, por exemplo, deixará de ser um estigma social. Teremos finalmente um Estado plurinacional onde as raízes de conquistadores e de colonos europeus se harmonizarão – pelo menos na Constituição - com os povos originários: mapuche, aimará, kawésquar, rapanui, yagán, quíchua, atacameño, diaguita, colla e chango. Uma mescla de povos que compõem a nação chilena.

 

O reconhecimento do feminismo como fator essencial da sociedade também estará assegurado se a nova Constituição proclamar a participação paritária da mulher em todas as instâncias civis e militares da República.

 

A composição da Constituinte deve também garantir que os direitos fundamentais, como saúde, educação, moradia e previdência social, sejam reconhecidos como deveres do Estado. Não se trata de coisa menor. São demandas do povo. Vozes que se levantaram há muito, logo depois que a ditadura as silenciou.

 

Onde estará então a pedra angular da Convenção?

 

O modelo econômico neoliberal, senhoras e senhores!

 

Sem dúvida haverá uma maioria para mudar o nome, mas não é certo que também seu conteúdo. A defesa do neoliberalismo não contará sequer com um terço dos constituintes. Mas ainda não se sabe se a maioria independente da Convenção assumirá a batuta para dar um novo ritmo ao modelo da ditadura, ou se se satisfará em fazer uma cirurgia cosmética.

 

Na oposição ao atual governo - que é minoria débil na Convenção - há quem já cunhou o nome de fantasia do neoliberalismo: “economia social de mercado”.

 

Outros lançaram mão de velhas teorias, como o capitalismo popular, para disfarçar suas intenções. Por exemplo, o candidato presidencial da Frente Ampla, Gabriel Boric, afirmou: “Acreditamos que o caminho mais responsável é começar um processo de transformação e democratização dos espaços de decisão estratégica das grandes empresas… Propomos - que em um prazo razoável para uma mudança legal desta envergadura - as instâncias de decisão das grandes empresas tenham uma participação das trabalhadoras e dos trabalhadores equivalente à representação que têm as e os acionistas, e que exista paridade de gênero em sua composição”. Boric pensa que isso constituirá “uma verdadeira igualdade de poder”. (1)

 

Por seu lado, apesar de mais moderado, o candidato presidencial da RN, Mario Desbordes, e outros especialistas da direita, sustentam: “devemos transitar até uma maior colaboração entre as empresas e os trabalhadores, fortalecendo as organizações de trabalhadores e incorporando-as organicamente em suas respectivas empresas, incentivando decisivamente sua participação na gestão, propriedade e função delas”·(2)

 

Não seria estranho se essas posições contagiem setores da Convenção. O neoliberalismo não é apenas uma doutrina econômica. É também uma doutrina social e cultural que tem permeado amplos setores da população. A ação tem sido executada através dos meios de comunicação e dos demais aparatos da coerção intelectual. A etiqueta “neoliberal” está em decadência, mas não os “valores” que inculcou. Apenas uma revolução cultural humanista de longo prazo poderá substitui-los pela solidariedade e dignidade de uma sociedade de iguais.

 

A Convenção Constituinte que será instalada no próximo mês será o cenário democrático adequado para selar a derrota histórica da direita e do sistema de partidos tributários da oligarquia. Para se alcançar isto, em todo caso, será preciso a coesão e audácia da maioria da Convenção para derrubar a regra que impõe o quórum de dois terços a suas votações e que a impede de questionar as sentenças judiciais e os tratados internacionais. Para recuperar a propriedade nacional das riquezas minerais e da água, que reclamam milhões de cidadãos, será necessária a visão de pátria e soberania que foi sufocada em 1973, com a ditadura Pinochet.

 

Ainda falta uma tarefa enorme para se criar as condições sociais e políticas que facilitem decisões históricas que a Convenção deve assumir. Temos de superar a abstenção, que esta vez significou 60% dos eleitores. Mais de um milhão de cidadãos que votaram no “Aprovo” uma nova Constituição no plebiscito de 25 de outubro de 2020 não se manifestaram desta vez. A abstenção impede celebrar esta vitória popular como se merece.

 

17 de mayo 2021.

 

(1) “Una propuesta para la gran empresa posestallido social”, Gabriel Boric, El Mercurio, 20/3/21.

(2) “Cogestión y economía social de mercado”, El Mercurio, 9/4/21.

 

Tradução de Carlos Alberto Pavam

 

18/05/2021

https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/O-povo-falou-entendeu-/6/50610

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/212298
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