Biden não é Roosevelt
Para além da propaganda oficial, que procura caracterizá-lo como a antítese de Reagan, uma inesperada reencarnação de Franklin Roosevelt, o balanço dos primeiros 100 dias de seu governo não deixa margem para grandes ilusões.
- Análisis
O balanço dos primeiros 100 dias de seu governo não deixa margem para grandes ilusões.
Pressionado pela crise política, social e sanitária colossal, pela crescente dificuldade de conter a emergência da China no cenário econômico internacional e pela urgência de deter o desastre ambiental que ameaça o planeta, Joe Biden apresenta-se como o homem providencial para deter a escalada da barbárie capitalista. Para tanto, promete resgatar o papel do Estado norte-americano como artífice do desenvolvimento capitalista, agente da coesão social interna e guardião incontestável do mundo livre. A distância entre o que se fala e o que se faz é abismal.
Para além da propaganda oficial, que procura caracterizá-lo como a antítese de Reagan, uma inesperada reencarnação de Franklin Roosevelt, o balanço dos primeiros 100 dias de seu governo não deixa margem para grandes ilusões.
A diversidade identitária no comando dos postos estratégicos serve apenas para camuflar o rigoroso controle do grande capital monopolista e financeiro sobre o Estado. Os negros, latinos, mulheres e lgbts que compõem a alta hierarquia do governo Biden vieram diretamente dos quadros das grandes corporações ou são vinculados a centros de estudos e consultorias estratégicas financiadas pelo grande capital. Chama a atenção o grande contingente de auxiliares oriundos do Conselho de Relações Exteriores, também conhecido como “Wall Street Think Tank” (A cabeça pensante de Wall Street), dentre os quais destaca-se a figura da vice-presidente, Kamala Harris. Em poucas palavras, o alto comando de Biden foi treinado para procurar soluções para os problemas do neoliberalismo por dentro do próprio neoliberalismo.[i]
Para além da retórica progressista para agradar a base eleitoral e da preocupação em diferenciar-se de Trump, o novo presidente dos Estados Unidos, em suas primeiras iniciativas, limitou-se basicamente a: mudar a política sanitária, incentivando o distanciamento social e a vacinação em massa da população; restaurar a política externa do governo Obama, reposicionando os Estados Unidos nos foros internacionais multilaterais e revitalizando as ações ofensivas ao redor do mundo; e reforçar a política de gasto público para mitigar os efeitos devastadores da crise econômica, aumentando a dose do receituário de política fiscal e monetária do FMI, que já vinha sendo aplicado pela administração Trump.
Até o momento, a promessa de aumentar a tributação sobre as grandes riquezas, as medidas de ajuda às famílias americanas e o plano de investimentos em infraestrutura – projetos que compõem seu programa de “Reconstruir Melhor” – não passam de belas intenções. Quando examinadas com objetividade, as três iniciativas revelam-se bem mais modestas e convencionais do que o alardeado pelos que imaginam a administração Biden como uma ruptura com o neoliberalismo e o início da transição para um capitalismo edulcorado e ecológico.
A lei proposta pelos democratas para aumentar o imposto de renda de quem ganha mais de US$ 400 milhões por ano apenas revoga as reduções indiscriminadas dos anos Trump, recompondo o que existia no fim do governo Obama. A elevação da tributação sobre ganhos de capital na bolsa de valores e outras medidas direcionadas a eliminar os aberrantes privilégios fiscais do 1% mais rico, medidas que de fato representariam uma significativa inovação, dependem da improvável aprovação da oligarquia que controla o Congresso Nacional.[ii]
O projeto de auxílio às famílias – Plano para as Famílias Americanas –, orçado em US$ 1,8 trilhão, a ser gastos ao longo de 10 anos, não vai além de uma política assistencialista – no estilo Bolsa Família e PROUNI. A baixa prioridade dada às famílias pobres fica patente quando se constata que os gastos anuais com elas representariam menos de 1% do PIB – quatro vezes menor que o orçamento do Pentágono em 2021. Ao invés de enfrentar as causas da pobreza – a progressiva degradação do mercado de trabalho que aumenta o desemprego estrutural e rebaixa sistematicamente os salários –, a estratégia é administrar a pobreza, em claro reconhecimento da impotência para eliminá-la.[iii]
Por fim, os investimentos na recuperação da infraestrutura revelam-se muito aquém do necessário para recompor a cambaleante competitividade internacional dos Estados Unidos e dar início à transição para uma economia verde – seus dois objetivos primordiais. As despesas de cerca de US$ 2,3 trilhões ao longo de oito anos previstas no Plano Americano de Trabalho, o que equivale a um gasto médio anual de US$ 290 bilhões (cerca de 1,2% do PIB), apenas atenuariam a velocidade da decadência, mas não poderiam evitá-la e muito menos deter a aceleração do aquecimento global. Na verdade, tanto o declínio do império norte-americano como a escalada da crise ambiental são efeitos inexoráveis da lógica perversa da arbitragem salarial e depredação da natureza em escala global, impulsionada pelas grandes corporações que comandam o governo Biden.[iv]
O abandono do neoliberalismo sanitário de Trump e o reforço das medidas emergenciais de combate à recessão tiveram um impacto imediato na vida dos norte-americanos. Nos 100 primeiros dias do governo Biden, sob o efeito da política de vacinação em massa, as infecções diárias por coronavírus foram divididas por cinco, e os óbitos, por mais de quatro. O relativo controle sobre a epidemia de coronavírus veio acompanhado de uma vigorosa recuperação econômica. Turbinado pela injeção adicional de US$ 1,9 trilhão na economia, o nível de atividade do primeiro trimestre registrou expansão de 2,6% em comparação ao trimestre anterior, convalidando a expectativa do FMI de uma expansão anual do PIB da ordem de 6,4%.
A reversão da recessão suaviza o impacto brutal da crise capitalista sobre a vida dos trabalhadores, mas seria uma ilusão imaginar que o ativismo fiscal e monetário da política econômica de Biden poderia impulsionar um novo ciclo de expansão capitalista, como se alardeia em muitos círculos saudosistas. A euforia dos anos vinte, após o fim da recessão provocada pela gripe espanhola, não se repetirá. O contexto histórico é outro.[v]
Sem liquidar o excedente absoluto de capital e sem abrir novas frentes de inovação e difusão do progresso técnico, não há como contrabalançar a tendência decrescente da taxa de lucro e desbloquear a destruição criadora que impulsiona o desenvolvimento capitalista. E mesmo que houvesse um ciclo de crescimento sustentável, não haveria nenhuma razão para supor a possibilidade de uma relação virtuosa entre acumulação de capital, geração de emprego e aumento de salário.[vi]
O capitalismo do século XXI não é o do século XX. Sem colocar em xeque a causa do problema – a livre circulação do capital em escala transnacional – é impossível evitar seus efeitos deletérios. Globalização dos negócios, instabilidade econômica, rebaixamento do nível tradicional de vida dos trabalhadores, desigualdade social, crise da democracia liberal, recrudescimento das rivalidades nacionais, acirramento da luta de classes e depredação do meio ambiente são processos inerentes ao capitalismo de nosso tempo.
Não há solução nacional para a crise que abala a economia mundial e não há liderança internacional capaz de articular uma política econômica minimamente coordenada para sua superação. O capitalismo de nosso tempo, como dizia o filósofo húngaro István Mészáros, tampa um buraco cavando outro maior ainda. Sem uma insurreição dos trabalhadores contra a ordem burguesa e um programa político que vá além do capital, colocando a urgência de mudanças radicais no modo de viver e produzir, não será possível evitar a escalada da barbárie capitalista.
- Plínio de Arruda Sampaio Jr. é professor aposentado do Instituto de Economia da Unicamp e editor do site Contrapoder. Autor, entre outros livros, de Entre a nação e a barbárie – dilemas do capitalismo dependente (Vozes).
Notas
[i] Para uma análise detalhada da formação acadêmica e articulação ideológica dos trinta principais quadros de comando do governo Biden, ver artigo de Laurence H. Shoup, “The Council on Foreign Relations, the Biden Team, and Key Policy Outcomes”, no Monthly Review, May 2021. (https://monthlyreview.org/2021/05/01/the-council-on-foreign-relations-th...).
[ii] O exame sintético da proposta tributária do governo Biden encontra-se em Sam Pizzigati, “President Biden’s Tax-the-Rich-Plan: Just how Bold?”, 29 de abril, 2021. (https://inequality.org/great-divide/president-bidens-tax-the-rich-plan-j...).
[iii] O Plano Famílias Americanas de Biden encontra-se detalhado em https://en.wikipedia.org/wiki/American_Families_Plan
[iv] A proposta de Biden de transição para uma economia verde é comparada com a que havia sido formulada por Bernie Sanders em https://newleftreview.org/sidecar/posts/whose-green-new-deal
[v] A diferença entre a situação econômica nos anos vinte do século XX e a atual é examinada por Michael Roberts em seu artigo “The roaring twenties repeated?”, de 18/04/2021. In: (https://thenextrecession.wordpress.com/2017/03/09/learning-from-the-grea...)
[vi] Os danos provocados pela crise do coronavírus e a gravidade de seus efeitos de médio e longo prazos sobre o mercado de trabalho são reconhecidos pelo próprio FMI em seu último relatório World Economic Outlook: Managing Divergent Recoveries, April 2021, especialmente capítulos 2 e 3.
16/05/2021
https://aterraeredonda.com.br/biden-nao-e-roosevelt/
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