Tratados de livre-comércio

O governo Biden atua num cenário muito diferente daquele que, há cerca de 30 anos, parecia prometer o livre-comércio.

04/05/2021
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Opinión
formas.png
Foto: Marina Gusmão
-A +A

Independentemente de outros fatores, a globalização tem dois motores principais: o comércio e o investimento estrangeiro. Promovidos pelos Tratados de Livre-Comércio, a ideia foi vendida como um modelo ganha-ganha. Como dizia o presidente George Bush, pai, o NAFTA, o Tratado Norte-Americano de Livre-Comércio, significava mais exportações, e mais exportações implicavam mais empregos. Todos ganhavam. Parecia muito simples.

 

Mas, um quarto de século depois, é evidente que esse otimismo era infundado, como explica Gordon H. Hanson, professor de política urbana da Harvard Kennedy School, especialista em comércio internacional. “O comércio pode funcionar para os trabalhadores?”, pergunta Hanson num artigo publicado na última edição da revista Foreign Affairs. E explica como o mecanismo funciona realmente, e suas consequências para os trabalhadores: “muitos trabalhadores norte-americanos sofreram quando os empregos bem pagos no setor manufatureiro desapareceram, à medida que as empresas iam para o estrangeiro. Aqueles que mantiveram seu trabalho viram seus salários estagnarem-se”.

 

Poderíamos pensar que, embora o NAFTA não favorecesse os trabalhadores americanos, era uma vantagem para os mexicanos, para onde parte desses bons empregos tinha sido transferida. Mas 23 anos após o acordo entrar em vigor, uma avaliação publicada no jornal El País, em agosto de 2017, indicou que entre 1994 e 2016 o Produto Interno Bruto (PIB) per capita do México tinha passado de cerca de cinco mil dólares para pouco mais de 6.600 (com preços constantes de 2008). Pode parecer muito, “mas uma taxa média de crescimento ligeiramente superior a 1% ao ano é bastante decepcionante para um país emergente que se expandia num ritmo de 3,4% ao ano entre 1960 e 1980”, diz a nota. Se o TLC tivesse conseguido ao menos manter a taxa de crescimento anterior, “o México seria hoje um país de alta renda, significativamente acima de Portugal ou da Grécia”.

 

O então secretário de comércio mexicano, Jaime Serra Puche, afirmava que o tratado acabaria gradualmente com a diferença salarial entre o México, os Estados Unidos e o Canadá. Mas os salários nesse período só aumentaram, no México, 4% em termos reais, como resultado de políticas de contenção salarial aplicadas para atrair investimento estrangeiro, especialmente da indústria manufatureira norte-americana, graças aos custos significativamente mais baixos com a força de trabalho. Entre outros resultados desta política, em 2016 a CEPAL estimou a taxa de pobreza no México ligeiramente acima dos 40%, enquanto que o 1% mais rico da população detinha “mais de um terço da riqueza nacional”.

 

Promessas irresponsáveis

 

O ceticismo com a globalização que hoje predomina na política norte-americana, conforme Hanson afirma em seu artigo, originou-se nas promessas falidas dos anos 90 sobre o livre-comércio. O NAFTA tinha sido um esforço bipartidário (as negociações começaram na administração republicana do primeiro Bush e foram concluídas no primeiro mandato da administração do democrata Clinton) e quando entrou em vigor, em 1994, no governo do presidente Carlos Salinas de Gortari, a promessa era de que o país se transformaria na próxima Coreia do Sul.

 

Clinton não só elogiou os benefícios econômicos futuros que o tratado traria, mas se permitiu também prever “mais igualdade, melhor preservação do ambiente, e mais possibilidades de paz no mundo”. “Grandes, porém irresponsáveis promessas”, afirma Hanson. No final, “o NAFTA fez o que os modelos econômicos previram: alcançar lucros líquidos modestos, principalmente dando às empresas norte-americanas acesso a componentes manufaturados a baixo custo, melhorando sua capacidade de competir nos mercados globais”. Esgotadas e falidas as expectativas suscitadas nesses anos pelas promessas de livre-comércio, o cenário mudou rapidamente depois da incorporação da China à Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001, da crise financeira de 2008 e das consequências provocadas pela atual pandemia de Covid-19, ainda difíceis de precisar.

 

Nos Estados Unidos, as iniciativas propostas pelo presidente Joe Biden na sua apresentação ao Congresso na semana passada oferecem uma ênfase diferente, destacando enormes investimentos em obras públicas e medidas para aliviar a situação das famílias norte-americanas, afetadas por décadas dessas políticas. Dois trilhões de dólares já tinham sido aprovados para a recuperação da crise de Covid-19, e Biden propõe agora mais dois trilhões de dólares dedicados à reconstrução da infraestrutura do país nos próximos dez anos. Um programa que, para alguns, representa uma redefinição do papel do Estado na economia e o fim das ideias neoliberais sobre o tema. “E não se pode sequer pensar que o estímulo acabou, considerando que, segundo David M. Cutler e Lawrence H. Summers, o custo total da pandemia nos Estados Unidos seria de cerca de 16 trilhões de dólares”, disse o economista espanhol Juan Torres López. Em todo caso, não faltarão resistências no Congresso, e não apenas por parte dos republicanos.

 

Devastação

 

Hanson descreve os efeitos que o processo de transferência de postos de trabalho para o exterior teve numa vasta faixa industrial no sul da Virgínia, Carolina do Norte, Geórgia, Alabama e Mississippi, onde uma indústria manufatureira intensiva em mão de obra foi devastada pela concorrência chinesa e pelo deslocamento da produção para países com mão de obra mais barata. Os efeitos no México também são bem conhecidos, como o crescimento das tensões sociais, do crime organizado e da violência. A devastação provocada por estas políticas na América Latina estendeu-se, em todo caso, para outros países da América Latina.

 

Na Colômbia, por exemplo, “o livre-comércio trouxe mais violência”, diz a jornalista Genevieve Glatsky num artigo publicado no mês passado na revista Foreign Policy. Glatsky conta a história do porto de Buenaventura, no Pacífico colombiano. Jhon Jairo Castro Balanta era um líder sindical portuário. Em 2011, quando se negociava em Washington um acordo de promoção comercial entre os dois países, ele presidia o sindicato dos trabalhadores portuários e foi chamado a testemunhar perante o Congresso dos EUA sobre as condições de trabalho que ali predominavam. Hoje, ameaçado de morte, encontra-se em Nova Iorque desde novembro passado, à espera da aprovação de seu pedido de asilo. Glatsky afirma que foi a partir daí que realizou por telefone a entrevista.

 

Em Buenaventura, uma cidade no Vale do Cauca com pouco menos de 500 mil habitantes, por onde passa mais de metade do comércio externo da Colômbia, predomina o desemprego e a violência de quadrilhas armadas, disse ela. À medida que o conflito armado se espalhava pelo país, a população que procurava refúgio no porto crescia, “muitos vivendo na mais abjeta pobreza”, afirma Glatsky.

 

Desde que o porto foi privatizado em 1993, os salários tinham sido congelados, enquanto aumentavam “a exploração, a terceirização, a discriminação, a humilhação, e todos estes abusos”, denunciou Castro. Os habitantes locais foram contratados para tarefas menores, por vezes com jornadas de 24 ou 36 horas seguidas, sem benefícios sociais, ameaçados de morte caso ousassem organizar-se em sindicatos, condições que atrasaram a negociação do acordo com os Estados Unidos.

 

Para facilitar sua assinatura, os presidentes Barack Obama e José Manuel Santos assinaram um plano de ação para os direitos trabalhistas, apoiado pela associação de empresas colombianas e norte-americanas, que afirmava que o acordo fortaleceria as instituições democráticas da Colômbia, ameaçadas por atores violentos – guerrilheiros, paramilitares e narcotraficantes – e significaria “mais empregos legítimos e oportunidades”. Uma década depois, nenhuma dessas promessas foi cumprida, assegura Glatsky. A violência das máfias, o desemprego e o tráfico de drogas cresceram. Foram assassinados 172 sindicalistas desde que o acordo entrou em vigor.

 

Em 2017, milhares de pessoas saíram às ruas da cidade em grandes protestos, que foram renovados em dezembro e janeiro passados, com o bloqueio do acesso ao porto, queixando-se das condições de vida e da falta de serviços básicos. Protestos que se espalharam por todo o país no último dia 28 de abril, depois que se soube de uma reforma tributária promovida pelo governo de Ivan Duque, que visa arrecadar 6,3 bilhões de dólares. E 73% desse total será cobrado das pessoas e o restante das empresas, segundo o ministro da fazenda colombiano Alberto Carrasquila.

 

A violência tem aumentado no porto à medida que quadrilhas armadas lutam pelo controle dos terrenos para onde está prevista a expansão de suas instalações, indispensável para atender a demanda gerada pelos acordos de livre-comércio que a Colômbia assinou com 17 países, incluindo os Estados Unidos. “Os protestos e a recente onda de violência foram talvez o que levou o Departamento de Trabalho dos EUA a anunciar (apenas uma semana antes do fim do governo Trump) um acordo de cooperação de 5 milhões de dólares para melhorar as condições de trabalho dos afro-colombianos no porto de Buenaventura e em outros portos do país”, observa Glatisky.

 

A política como estafa

 

As promessas em relação aos benefícios dos Tratados de Livre-Comércio também animaram o debate na América Central, onde um acordo entre os cinco países da região e os Estados Unidos, a que se juntou a República Dominicana, entrou em vigor em 2006. A Costa Rica foi o último país a implementar o acordo. Após uma feroz resistência popular, a decisão de aderir foi tomada num plebiscito realizado em 7 de outubro de 2007, no qual o governo conseguiu impor seus critérios por 51,2% a favor do “Sim” e 48,1% a favor do “Não”, depois de uma campanha inescrupulosa.

 

Para vencer as resistências em relação ao tratado na Costa Rica, o governo teve que utilizar todo o tipo de armas, incluindo ameaças feitas nas empresas contra seus trabalhadores, ameaçando-os de perder seus empregos caso o “Não” ganhasse. O presidente Oscar Arias prometeu, na imprensa, que “aqueles que hoje vêm de bicicleta, com o TLC, virão em motos BMW, e aqueles que vêm num Hyundai, virão num Mercedes Benz”. “É disto que se trata o desenvolvimento”, disse ele. Arias alegava que o TLC duplicaria a taxa de emprego, gerando de 300 mil a 500 mil postos de trabalho de 2007 a 2010, mas nada disto aconteceu quando o tratado entrou em vigor.

 

Já em 2007, um relatório de grupos que acompanhavam o desempenho do tratado observava que, ao contrário das promessas feitas antes da votação na Costa Rica, o tratado não estava trazendo prosperidade aos países signatários, nem às suas populações. Os níveis de criação de emprego foram decepcionantes e a migração continuou sendo a principal válvula de escape para a pobreza. Um processo que acabou transformando-se, ao final, numa maré incontornável, que transformou a pressão na fronteira sul dos Estados Unidos numa dor de cabeça para Washington.

 

Seis anos depois, em 2013, a taxa de desemprego no país, de acordo com a Pesquisa Contínua de Emprego do Instituto Nacional de Estatística e Censos (INEC), era de 10,4%, número que estudos da Universidade Nacional (UNA) elevavam para 18%. Ligeiramente inferior aos 18,5% registados hoje, mas superior aos 11,9% registados antes da pandemia. Apenas dois meses antes do plebiscito, diante da possibilidade real de derrota, o governo implementou uma das campanhas mais vergonhosas da história política do país. Num documento enviado por Kevin Casas, então vice-presidente da República, a Arias e a seu irmão, o ministro da presidência, sugeriam-se vários passos para reverter essa tendência.

 

O documento propunha, entre outras coisas, “estimular o medo”, que definia como sendo de quatro tipos: da perda de empregos, do ataque às instituições democráticas, da ingerência estrangeira e do efeito do triunfo do “Não” sobre o governo. E foi o que fizeram nos dois meses que faltavam para o plebiscito. Logo divulgado pelo Semanario Universidad, o documento ficou conhecido na história política do país como o “Memorando do medo” e o vice-presidente teve que renunciar a seu cargo para iniciar uma carreira destacada em organizações internacionais. O resultado é que o plebiscito permitiu que as privatizações e a concessão de obras públicas avançassem, sem que se reduzisse a pobreza, enquanto a concentração da riqueza e a polarização social cresciam.

 

Face à crise da Covid-19, ficou evidente a importância da rede pública de seguridade social, enquanto o governo promove a aprovação, na Assembleia Legislativa, de um acordo com o FMI para enfrentar o crescente déficit fiscal, cujo caráter não deixa de se assemelhar ao colombiano: aumento de impostos para a população em geral e recusa de aplicá-lo às empresas, especialmente aquelas instaladas nas zonas francas.

 

Empregos que não voltarão

 

O presidente Biden disse em seu discurso de 28 de abril ao Congresso que o programa de investimentos de seu governo criaria “milhões de postos de trabalho bem pagos para os americanos”. Biden repetiu a palavra jobs (empregos) 43 vezes em seu discurso.

 

Mas Hanson tinha avisado, no artigo citado acima, que os empregos perdidos nas regiões mais afetadas pela concorrência do livre-comércio ou da automatização “não voltariam”. “Biden e sua equipe devem analisar cuidadosamente o que o livre-comércio pode fazer para ajudar os trabalhadores afetados pela globalização”, acrescentou ele. Fingir o contrário “só levará a mais desencanto e poderia alimentar protestos contra o livre-comércio e a globalização”.

 

Biden, entretanto, também enfrenta o desafio de redefinir sua política em relação a seus vizinhos centro-americanos, que continuam pressionando sua fronteira sul. Em 2015, na Cúpula das Américas no Panamá, Obama analisou os avanços de um plano denominado “Aliança para a Prosperidade” do Triângulo Norte Centro-americano, formado por Guatemala, Honduras e El Salvador, que Biden tinha supervisionado. Foi uma tentativa de reativar essas economias com um pacote de 750 milhões de dólares em 2016, que se pretendia aumentar para um bilhão de dólares em 2017, para frear a imigração para os Estados Unidos. Sem nenhum êxito, como sabemos hoje.

 

Trump deteve, em 2019, grande parte dessa ajuda que Biden, em plena campanha, em outubro passado, prometeu aumentar para quatro bilhões de dólares. Injetar bilhões de dólares para reativar o setor público, reconstruir a infraestrutura, facilitar recursos para pesquisas em áreas tecnológicas de ponta, reconstruir alianças para enfrentar a China, encontrar soluções para a pressão migratória na fronteira sul são algumas das prioridades do governo Biden num cenário muito diferente daquele que, há cerca de 30 anos, parecia prometer o livre-comércio.

 

04/05/2021

 

- Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR). Autor de Crisis política del mundo moderno (Uruk).

 

Tradução: Fernando Lima das Neves.

 

https://aterraeredonda.com.br/tratados-de-livre-comercio/

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/212100

Del mismo autor

Clasificado en

Subscrever America Latina en Movimiento - RSS