O que esperar do Direito?

12/06/2020
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Convulsões sociais tomaram tanto os Estados Unidos quanto o Brasil, em um momento de sensível inflexão da ordem vigente: após anos de políticas de desrespeito aos Direitos Humanos, nos Estados Unidos, após a terrível morte de George Floyd há pouco mais de uma semana, sufocado por um policial branco, a população vem tomando as ruas em diversas cidades, em distintos estados. A Casa Branca teve de permanecer apagada, enquanto manifestantes se avolumavam em seu redor e o presidente e sua família foram levados a um bunker antimíssil. Até mesmo Nova York, símbolo máximo da nação, decretou toque de recolher. No Brasil, a situação não está mais tranquila. Após sucessivas investidas por parte do poder executivo contra a ordem e os demais poderes, inclusive com grupos que se assemelhavam à Ku Klux Klan, no domingo as ruas também foram tomadas em ambas cidades por manifestantes contrários a Bolsonaro.

 

É notável que neste exato momento, grandes grupos opositores colocam em xeque as políticas de tais presidentes. São grupos heterogêneos, é verdade, mas é notório que há uma oposição viva, numerosa e que está farta dos arroubos cometidos por estes líderes. De saco cheio de suas posturas reacionárias e descaso com o povo. E é exatamente neste momento em que pela primeira vez em anos há pessoas nas ruas, mobilizadas sob um mote combativo, que estes líderes mais inflamados, mais sisudos e é neste momento em que os opositores depositam mais as esperanças no que há de vir do Direito, torcendo para que seja uma ruptura da ordem vigente.

 

E é inteligível esta crença no absurdo, afinal, é em momentos como o que estamos vivendo, de enorme inflexão e incerteza, que tendemos a buscar respostas rápidas e que ponham logo fim à instabilidade. E por sermos fundamentalmente criados sob o mito dos pesos e contrapesos constituintes do Estado, isto é, que no caso de um dos três poderes cometa excessos – seja o legislativo, o judiciário ou o executivo –, os outros servirão de antípodas.

 

E assim a pergunta, muito mais urgente do que o que fazer, é: o que esperar do Direito? A resposta é desanimadora: pouco ou quase nada.

 

Qualquer rápida lida em Marx ou em qualquer um dos teóricos marxistas seria suficiente para chegar em tal conclusão. Basta que lembremos qual a natureza, isto é, a razão de existir do Estado e de quais aparatos ele usa para exercer a dominação que lhe é finalística.

 

Na Crítica da filosofia do Direito de Hegel, Marx descreve com precisão cirúrgica o Estado. Segundo ele, o Estado é um órgão de dominação de classe, um órgão de opressão de uma classe por outra, é a criação da “ordem” que legaliza esta opressão, moderando o conflito de classes.

 

Em outras palavras, a existência de múltiplas classes, constantemente em conflito, é o que acabará por gerar este ente, o Estado, cuja principal finalidade será a manutenção dos interesses burgueses. E isto ocorrerá, conforme Lênin lembra em seu Democracia e a luta de classes, inclusive em Estados ditos democráticos, pois:

 

“(...) os exploradores, inevitavelmente, transformam o Estado em instrumento de domínio de sua classe, dos trabalhadores sobre os explorados. Por isso também o Estado democrático, enquanto houver exploradores que dominem sobre a maioria de explorados, será inevitavelmente uma democracia para os exploradores” (LÊNIN, p. 85, 2019).

 

E, desta forma, o Direito - produto direto da formação do Estado - nada mais seria que a maneira pela qual a classe dominante de dada época e de dada sociedade garante seus interesses e sua dominação sobre o social. Portanto, o Direito será o meio para substanciar e legitimar, através de convenção socialmente aceita, a dominação da classe burguesa sobre a outra.

 

Engels e Kautsky (que na ocasião ainda não era um renegado), ao redigirem O socialismo jurídico, foram além da relação entre ser o Direito um braço do Estado para legitimar a dominação. O Direito surge também para efetivar as trocas mercantis e embutir de subjetividade jurídica àqueles portadores de Direito, ademais de trazerem a condição de suposta equivalência formal para a efetivação das relações contratuais.

 

Nesses termos, por meio da judicialização, direitos não passam de pequenas concessões do poder vigente, ainda que sejam obtidos por movimentos de base orgânicos e reivindicações. Mesmo pautas tidas como progressistas, como o Direito à Greve, carregam uma enorme carga burguesa, com clara limitação em sua existência, haja vista que sua realização só pode se suceder dentro dos padrões preestabelecidos pela "licitude", sendo estes limites mormente aqueles que não sejam qualquer óbice à reprodução do capital.

 

O entendimento do Estado como um início e do Direito como um meio para a efetivação dos interesses burgueses, serve para elucidar a eterna percepção do ditado popular de que “a corda sempre estoura no lado mais fraco”, ou de que “as leis são para poucos”. É entender o motivo de, a despeito de inúmeros crimes administrativos e de responsabilidade, não ter havido nenhuma forma de ação legal até o momento. Além de fazer entender o porquê não poder esperar que o Direito represente a solução para o caos estabelecido.

 

Caso haja desrespeito à ordem, isto é, afronta aos limites considerados aceitáveis para a reprodução do capital, o Estado disporá de seu braço repressor, as forças armadas e as polícias, para assegurar a continuidade. Aqui recorremos novamente a Lênin:

 

“Peguem as leis fundamentais dos Estados contemporâneos (...) e verão a cada passo a hipocrisia da democracia burguesa (...). Não há nenhum Estado, nem mesmo o mais democrático, onde não haja brechas e cláusulas em suas constituições, que não assegurem a possibilidade de a burguesia mover suas tropas contra os trabalhadores, entrar em estado de guerra, em caso de “violação” pelas classes exploradas de sua condição de escrava e a tentativa de não se portar feito escrava”. (LÊNIN, 2019, p. 79)

 

Mais atual impossível. Não é preciso grande esforço para correlacionar a fala de Lênin, com os severos movimentos repressivos das polícias de Bolsonaro e Trump. Se por um lado Trump clamou pelo uso da Lei da Insurreição, que tem sagrado cenas bizarras de repressão contra estadunidenses, as forças de Bolsonaro não agem contra os grupos paramilitares de direita (a despeito de ferirem a lei), servem apenas para atentar contra os demais poderes e realizar a demonstração de símbolos de força.

 

Mesmo as polícias estaduais – destaco aqui a de São Paulo - demonstram enorme truculência dirigida, sendo mais repressivos contra aqueles que gritam em prol da democracia, do que aqueles que ostentam armas brancas e levantam símbolos supremacistas.

 

Respondendo ao enunciado, não é possível esperar coisa alguma por parte do direito, além da manutenção dos interesses burgueses. A real mudança só virá quando parcelas populares se mobilizarem efetivamente em torno de uma construção programática e resolverem fazer valer por vez seu protagonismo. 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ENGELS, F.; KAUSTSKY, K. O socialismo jurídico. 2ª. Ed. Rev. (Coleção Marx e Engels). São Paulo: Boitempo, 2012.

LÊNIN, V.I. Democracia e luta de classes. 1ª. Ed. (Arsenal Lênin). São Paulo: Boitempo, 2019.

MARX, K. Crítica da filosofia do Direito de Hegel. 1ª. Ed. (Coleção Marx e Engels). São Paulo: Boitempo, 2005.

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/207220

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