Lição de história: “O Dia dos Girassóis”

Há 50 anos, após a derrota das forças que tinham levado o país a viver um dos períodos mais sombrios dos seus 200 anos de vida independente, era promulgada a Constituição de 2024.

11/06/2020
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Meus queridos compatriotas (*),

 

É uma honra para mim utilizar esta rede nacional de rádio e TV, com retransmissão pela Coordenação de Redes Sociais “Por um Brasil democrático e solidário” para comemorar o 500 aniversário da data que passou a ser conhecida como o “Dia dos Girassóis”. Como é sabido, o nome faz referência à flor amarela e verde, portadora das cores nacionais, que simboliza a energia positiva do sol e a alegria e foi usada pela população nas ruas para celebrar a dupla vitória pela descoberta da cura do Covid-19 e pela reconquista pelo Brasil do seu lugar na história.

 

Neste dia, há 50 anos, após a derrota das forças que tinham levado o país a viver um dos períodos mais sombrios dos seus 200 anos de vida independente, era promulgada a Constituição de 2024. Resultado da primeira medida adotada pelo governo que emergiu da crise - a convocatória de uma Assembleia Constituinte - a Constituição de 2024 enxugou e corrigiu os problemas apresentados pela Constituição de 1988, a “Constituição Cidadã”, aprofundou e aprimorou alguns conceitos e é até hoje uma das mais avançadas Cartas Magnas do mundo!

 

Temos, portanto, bons motivos para comemorar a data. Essa Constituição, que passou a ser chamada a “Constituição do Povo”, é inovadora desde o seu preâmbulo, ao definir que o povo brasileiro é formado pelos descendentes dos aborígenes que resistiram a colonização, pelos descendentes dos escravos que lutaram contra as correntes que lhes privaram a liberdade e pelos descendentes de todos os povos que aqui chegaram e contribuíram para a construção do Brasil. O preâmbulo nos lembra também, e isso é muito importante, que todos eles contribuíram para forjar a consciência nacional e a determinação de sermos um país livre e socialmente justo. Mas a Constituição de 2024 também é inovadora na forma de definir a democracia, tão deturpada em aquele período de chumbo. Ela afirma que todo o poder emana do povo, que o exerce através de diferentes formas que a Carta Magna define. A escolha do governo é fruto do voto popular livre e irrestrito, mas todos os órgãos que formam esse governo ficam submetidos ao controle popular permanente, através de mecanismos que a sociedade detêm - incluindo punições explícitas – para que sejam atendidas as cláusulas pétreas exigindo a justiça social e racial e para que todos os direitos definidos e assegurados na Constituição estejam sempre garantidos. Inova, ainda, quando introduz os conceitos de propriedade social e de bem comum e define todas as circunstâncias em que eles são aplicáveis.

 

Sem essa Constituição e as mudanças por ela propiciadas, o Brasil não seria governado hoje por uma mulher negra como eu. Orgulho-me das minhas origens e do meu nome, que me foi dado pela minha avó, em homenagem à liderança jovem abatida pelas balas das milícias que na altura agiam impunes no nosso país, Marielle Franco. Orgulho-me também, de ter estudado desde a escola até a universidade em instituições públicas, e de ter chegado à presidência depois de ter sido diplomata e de ter servido em vários países da Ásia, inspiradores pela nova forma de compreender e exercer a liderança neste nosso planeta Terra. Mas em particular orgulho-me de ter sido Embaixadora em Nova York, nas Nações Unidas, no momento em que a instituição era refundada, iniciando um novo período das relações internacionais. A democratização e redefinição dos objetivos do seu principal órgão, o Conselho de Segurança, a aprovação unânime da proibição definitiva das armas nucleares e de destruição massiva e da “Declaração Universal dos Direitos da Mãe Terra” - documento chave para a recuperação progressiva do que parecia a irremediável degradação do nosso habitat natural – sem dúvida constituem um marco na história da Humanidade.

 

Não posso deixar de mencionar, nesta data tão carregada de simbolismo, a importância do enorme passo dado pela conjunção de esforços a nível mundial, com o controle do Covid-19 e similares, depois de a Humanidade sofrer a pandemia que em 2020 dizimou tantas vidas em todos os continentes e, em particular, na nossa América Latina. Foi muito eloquente Prêmio Nobel de Medicina do ano 2022, dividido entre Cuba e China, pelas descobertas que se bem não derivaram em uma vacina, permitiram o tratamento eficaz das doenças causadas por esse tipo de vírus, fazendo com que elas sejam hoje curáveis. Importante mencionar, ainda, em relação a este tema, a significativa contribuição dada pelos centros de pesquisa das universidades públicas brasileiras no esforço global de combate a aquela pandemia. Renovamos hoje a homenagem aos médicos e demais profissionais da área da saúde, muitos dos quais tombaram no cumprimento das suas funções durante o dramático combate travado pelo Brasil, um dos epicentros da pandemia, contra esse vírus.

 

Justamente por ter sido tão profunda a ferida causada na nossa sociedade pelo vírus e por aquele dramático momento político, é importante dar valor à etapa inaugurada com a Constituição de 2024 e não permitir que seja esquecido o papel desempenhado neste meio século pelos diferentes segmentos da nossa sociedade. Saibamos que se hoje comemoramos o 500 aniversário da refundação do Brasil é pela contribuição dada na luta contra o vírus e contra a opressão pelos educadores de todos os níveis, jornalistas, youtubers – uns e outros agora regidos pelo mais moderno código de conduta, assim como toda a mídia - cientistas e pesquisadores, artistas, juristas, defensores dos direitos humanos, militantes dos movimentos organizados das favelas (hoje transformadas em bairros urbanizados), coletivos feministas, militantes da causa LGBT, representantes dos indígenas, militantes da rede “Vidas negras importam”, religiosos progressistas, em fim, por todos os brasileiros amantes da democracia e da justiça social.

 

Nesse sentido, desejo fazer uma reflexão em particular sobre o papel dos militares na construção deste Brasil que hoje ocupa um lugar de destaque na cena latino-americana e mundial. Considero que uma das mais importantes conquistas destes 50 anos foi o difícil mas decisivo diálogo estabelecido pela sociedade brasileira com as Forças Armadas. Depois de momentos tensos e desafiadores, que resultaram na punição dos poucos membros das Forças Armadas coniventes, ou melhor, cúmplices, dos delitos daquele governo que os historiadores hoje não dividam em qualificar de neo-fascista e antinacional - punição essa que, como sabemos, atingiu também com todo o rigor da lei os membros desse governo - , os militares tem se mantido no seu papel constitucional e tem sido uma força ativa e decisiva na construção do novo Brasil. Da mesma forma desejo citar aqui o papel positivo, amparado no respeito aos direitos humanos e na salvaguarda da segurança de toda a sociedade, desempenhado pelos membros das forças policiais depois de reestruturadas pela Constituição, que definiu claramente as suas novas funções e prerrogativas.

 

Por todo esse esforço do conjunto da sociedade, o nosso país hoje está livre do analfabetismo e das principais doenças, atingiu o saneamento básico universal, tem uma educação e uma saúde pública admiradas internacionalmente, é líder em produção acadêmica e desponta como potência científica e cultural, sem deixar de fazer jus a sua longa tradição de potência esportiva.

 

Com a aprovação da Renda Básica Universal e outras medidas, como a reforma fiscal, a implantação e taxação das grandes fortunas, com a legislação que limitou a atuação e ganância do sistema financeiro e trouxe a questão ambiental ao centro das decisões na economia, e claro, com a reforma agrária, tributo a longos anos de luta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o Brasil é hoje não uma sociedade totalmente justa, mas sim totalmente livre da pobreza e da fome. Em homenagem a essa vitória criamos duas importantes medalhas, duas comendas honoríficas, com as que anualmente agraciamos os melhores projetos nas áreas da sustentabilidade alimentar e da inclusão social. A primeira é a Medalha Josué de Castro, o médico e geógrafo que nos seus livros Geografia da Fome e Geopolítica da Fome demonstrou, já nos anos 60 do século passado, que o problema da fome não se originava no excesso de habitantes, mas sim da má distribuição da riqueza. A segunda é a Medalha Herbert de Souza, o Betinho, o sociólogo que dedicou os últimos anos de sua vida ao projeto Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida.

 

Aliás, neste sentido, o nosso país está em sintonia com as diretrizes da nova ONU, que como sabemos, tomou as rédeas no tema da eliminação da fome e da pobreza no mundo e estabeleceu uma legislação (prevendo sanções severas para o seu não cumprimento) com mecanismos eficientes de controle do que foi chamado de “capitalismo de cassino”.

 

Uma palavra, ainda, queridos compatriotas, sobre a nossa União de Nações Livres Latino-americanas, UNLLATINA, que alguns têm chamado de União Bolivariana. Impossível não nos referir, ao falar sobre este tema, ao impacto que teve no mundo e no nosso sub-continente a mudança ocorrida nos Estados Unidos após o trágico período do governo Trump e da pandemia, cujas consequências foram sentidas nesse país por longos anos. Irei comentar com mais detalhe este tema na próxima rede nacional, que convocarei como parte das comemorações do 7 de setembro. Hoje só desejo lembrar a aprovação pelo novo governo de Washington da proibição e penalização de qualquer atuação internacional que interferisse ou ameaçasse a soberania de outras nações (aí incluída a Doutrina Monroe) e a concomitante dissolução da Organização do Tratado do Atlântico Norte, a tenebrosa OTAN. Os mais velhos talvez possam lembrar daquela velha piada: “Sabe por que não tem golpe nos Estados Unidos? Porque não tem Embaixada dos EUA”… Pois bem, graças às mudanças das últimas décadas nos Estados Unidos e, sem dúvida, graças aos esforços dos povos da nossa América Latina, nossos países estão hoje, salvo poucas exceções, governados por partidos e coligações comprometidos com os destinos dos seus povos e de toda a região. Estamos, por isso, mais próximos do ideal que nos acompanha desde os primórdios da nossa vida independente: a construção da Pátria Grande! Esse é um ideal que nós, brasileiros, temos aprendido a cultivar através da influência dos nossos vizinhos, mas que hoje faz parte da nossa consciência coletiva: sem a união dos nossos países não teremos condições de enfrentar os desafios do mundo nesta segunda metade do século 21, que exigem o planejamento do uso dos recursos naturais já não mais em escala local ou nacional mas regional e até global.

 

Por isso o Brasil orgulha-se de ter sido um dos fundadores e impulsionadores da UNLLATINA, da qual tem ocupado já várias vezes a presidência rotativa. A maior parte das nossas trocas utilizam hoje a moeda regional, o CEIBAL – uma homenagem ao Plano pioneiro do Uruguai, o Plano Ceibal, que tanto ajudou não só na erradicação do analfabetismo mas também na promoção da reforma educativa ampla no sub-continente latino-americano, alicerçada na educação pública gratuita de qualidade em todos os níveis, com a incorporação de tecnologias e reforço do papel do educador. Houve um consenso, ao decidir o nome da moeda, que essa honra devia recair na principal ferramenta que tornou possível a radical transformação das nossas sociedades: a educação. E aí a decisão foi fácil!

 

Registro aqui, também, a importância da obrigatoriedade, na legislação da UNLLATINA, de que em todos os seus órgãos seja assegurada a igualdade de representação de gênero e de raça, e que essa representação seja até superior a 50% sempre que possível; destaco, também, o artigo que estabelece que em igualdade de currículo, a presidência dos órgãos deve ser assumida por uma mulher. Por isso a minha homenagem, aqui, com orgulho, à presidenta atual da UNLLATINA, Leonilda Quispe, da Bolívia.

 

Finalmente, permitam-me uma homenagem especial, neste 24 de junho de 2074. Além de marcar o 500 aniversário da promulgação da “Constituição do Povo”, data que chamamos do “Dia dos Girasóis”, hoje faz 73 anos da morte do meu bisavô, Milton Santos. Possivelmente muitos de vocês saibam que ele foi um dos maiores geógrafos brasileiros, agraciado em 1994 com o prêmio de maior prestígio na área, chamado de "Nobel da Geografia", o prêmio Vautrin Lud. Muito me honra ser a sua bisneta! Mas a homenagem que desejo lhe render hoje não é de índole familiar. É um reconhecimento à importância dos temas estudados por Santos, entre outros a pobreza urbana, que o levaram a criticar de forma pioneira o fenômeno da globalização capitalista, bem antes de o conceito e as críticas ganharem fôlego. A sua obra Por uma Outra Globalização (do pensamento único à consciência universal), lançada dois anos antes da sua morte, mostra como a globalização concentra a riqueza e, ao transformar o consumo em ideologia, massifica o comportamento, criando o caldo de cultura para novas formas de totalitarismo. Hoje, no 500 aniversário da Constituição com a qual refundamos o país depois de superar o desafio totalitário, o mundo todo está concentrado na ardua tarefa de superar os problemas estudados por Milton Santos, construindo uma nova globalização, a da cooperação e a solidariedade. Por isso é pertinente lembrar o seu legado.

 

Com estas palavras despeço-me de todos vocês, queridos concidadãos. Continuemos a zelar pela democracia e pela nossa querida Constituição. Mesmo vencidos, os defensores do capitalismo de cassino e do totalitarismo continuam alertas, procurando as brechas por onde se infiltrar. A Luta Continua! Viva o Brasil! Viva o povo brasileiro!

 

(*) Discurso pronunciado em rede nacional de rádio, TV e redes sociais pela Presidenta Marielle Santos (2072-2076), em 24 de junho de 2074. Publicado no Volume 3 da História do Antropoceno – obra de autoria coletiva, editada pela Cátedra Paulo Freire da UFRJ, em parceria com a Associação Nacional de História, com apoio do Ministério da Educação, Brasília, DF, 2084.

 

- Beatriz Bissio é Professora Associada do Departamento de Ciência Política e do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ

 

 

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/207170
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