Revolução chinesa merece estudo, reflexão e mais solidariedade

13/05/2020
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Tianjin, Outubro 2019, comemoração dos 70 anos da fundação da R.P. da China.
Foto: Rui Albuquerque
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1. Na China a república foi instaurada em 1911. O Partido Comunista da China (PC da China) nasceu em 1921 na concessão francesa de Shangai. Já em outubro de 1949, Mao Tse-Tung declarava em Tianamen a fundação da República Popular da China (RPC), a enorme nação que é ainda hoje liderada pelo partido de Mao. Em 1960, em face da lição próxima da 2ª grande guerra, das bombas de Hiroshima e Nagasaki, da desunião de Taiwan, das guerras da Coreia e da Indochina, e da força explícita do imperialismo e do colonialismo no resto do mundo, o Exército Popular Chinês lançava o seu primeiro míssil balístico Dong Feng (Vento de Leste), fruto da cooperação com a União Soviética. Cooperação que cedo terminaria, porém, após a morte de Estaline, em divergências políticas entre o maoismo e a era de Kruschev. Mas a China dava então início ao seu programa espacial, com o qual, apenas em 2003, os chineses viriam a dar expressão real ao termo «taikonauta»1, tornando Yang Liwei o primeiro espaçonauta chinês.

 

Dizemos apenas porque nada do que a China tem feito, na sua (re)ascensão como avançada civilização no mundo – ascensão económica, social, política e cultural –, é consequência de trivialidades ou simples reprodução dos feitos de outros. Ou de reprodução de erros de outros também.

 

O que notamos é que a China assumiu desde cedo um importantíssimo papel, muito independente, na luta pelo socialismo no mundo. Inegável, seja ao nível das realizações nacionais, seja, por exemplo, na inspiração das lutas de guerrilha, nomeadamente de libertação colonial, ao longo do século XX em África e América Latina e, principalmente, na Ásia. O próprio Exército Popular chinês tem origem nos anos 1920 na organização dum movimento de guerrilha, de resistência tenaz dos trabalhadores e dos comunistas à perseguição armada dos «senhores da guerra», ora pela direita traidora no seio do Kuomintang que termina em Taiwan, ora pelo invasor japonês. Tal exército de guerrilha revolucionário será dos primeiros e mais extraordinários e sacrificados na história do movimento comunista.

 

A independência real da China deve-se, ontem como hoje, a esse exército popular actuante e vigilante face às manobras do imperialismo. A RPC foi, durante quase 71 anos, um país convicto no alinhamento com o socialismo, mas ainda assim um Estado demasiado frágil e precioso para os comunistas no mundo, para porventura se comprometer na defesa activa de outras nações presas ou caídas nas garras do capitalismo mundial. Por outro lado, a sua posição de segundo plano no campo socialista só parece ter exacerbado o seu fervor patriótico, hoje tão claro, ao lado dos valores comunistas internacionais.

 

A partir da queda do muro de Berlim (1989), as responsabilidades da China no campo socialista pode-se dizer que duplicaram, mas afinal viram-se de repente insuficientes para repor o equilíbrio na luta anti-capitalista. Salvar a RPC tomou a maior importância para o PC da China, considerando a proporção da sua população e território. A par de uma imensa experiência entre as sociedades humanas, nestes últimos 40 anos a China teve a suprema inteligência de contradizer, por meio da paz e dos valores da diplomacia e cortesia, a presumida festa da «queda do comunismo» que a convidava a juntar-se-lhe desde a morte de Mao em 1976.

 

Inclusive dentro do campo socialista, a independência da RPC havia sido confrontada, por divergências conhecidas (como a da obtenção da URSS dos planos do armamento nuclear), no momento histórico em que a União Soviética, mais forte e desenvolvida, se tornava uma referência e modelo para os comunistas, com todo o esplendor demonstrado e conquistas provadas de uma primeira potência socialista mundial (falamos dos meados dos anos 60 do século XX). Daí resultaram incompreensões globais em desfavor da China. E o alheamento em geral dos comunistas «ocidentais» da longa marcha do «Império do Meio» na história da humanidade.

 

Alheamento pelos caminhos da história da RPC concomitante com o oportunismo e a acção contra-revolucionária das diversas facções de extrema-esquerda, por vezes absolutamente identificadas com Mao Tse-Tung e os sofismas da Revolução Cultural – quiçá mais demolidora que inspiradora para o movimento comunista. Extrema-esquerda maoista, incoerente e antagonista do movimento comunista internacional, aproveitada como arma do anti-comunismo, ainda que exaustivamente desmascarada pelos partidos comunistas.

 

Importa não contestar o exemplo e modernidade da grande Revolução de Outubro, tão assombrosos e profícuos foram, para os povos, os passos dos revolucionários bolcheviques na Rússia a partir de 1917. Bem como a resistência e vitória sobre o nazi-fascismo, o colonialismo e o imperialismo. Acordemos, todavia, que essa grande experiência e modelo socialistas refletiram uma história que provinha e assentou numa sociedade semi-capitalista de um século XIX de relativo desenvolvimento social e industrial na Rússia. Enquanto a China, uma nação igualmente rica em passado e em cultura e com um Estado bem estabelecido, era basicamente explorada pelo feudalismo milenar e, havia séculos, era disputada pelo imperialismo britânico, russo e japonês e por outras grandes potências como a Alemanha, a Holanda e os EUA, durante todo o século XIX e até 1949. Portanto, pode-se afirmar que a URSS e o seu modelo não apagaram uma inexistente revolução chinesa, pois não houve dez dias de abalo do mundo. Mas sim que um modelo e um desenrolar de acontecimentos na Europa e na Rússia ofuscaram toda uma experiência de importância universal de combativa tomada de poder e de, lento e não seguro, desenvolvimento socialista de um Estado.

 

2. A ascensão da China a potência de topo na economia mundial, por exemplo, a que hoje assistimos, tem de ser objeto de reflexão e ensinamento e não de mera assistência. Contém ela ou não elementos de indiscutível iluminação teórica para o marxismo-leninismo e teórico-prática para a luta dos comunistas, que deve ser harmoniosamente integrada e afirmada? Referimo-nos, para dar um exemplo, ao papel do mercado, que o PC da China a toda a hora deseja reformar no sentido da sua maximização no seio da construção do «socialismo com características chinesas». É apócrifa ou não a ideia do mercado regulado, não pelo éter de «dois sistemas», mas sim pela sua presença primordial e natural na sociedade socialista? Estamos convencidos que a resposta é não.

 

A China demonstra hoje a força económica do seu sistema socialista, sem dúvida dotado de planificação socialista (no investimento, controle financeiro, participação dos trabalhadores nas empresas, cooperação internacional). Demonstra-nos, com efeito, que o Estado e a sociedade chinesa e o espetacular investimento público dependem bastante do lucro das empresas privadas e públicas e das grandes forças industriais. E que essa sociedade não se sobrecarrega em impostos sobre o trabalho e a população. (Ao contrário, as social-democracias escondem em retornos positivos do Estado obtidos com impostos sobre o trabalho, ambos sempre escassos, os lucros que a sociedade aliena ao capitalismo privado.)

 

De que forma a existência de propriedade por acções e de grandes empresas totalmente privadas, constitui a criação de uma burguesia no seio do sistema e do poder político, incrivelmente autorizada pelo PC da China? De que forma estão as ideias de «empresariado», «concorrência», «comércio», «abertura ao investimento estrangeiro» (sinónimo de entrada de forças capitalistas globais), «regra do direito», «fim do monopólio público», «colocação de empresas públicas em bolsa» (sinónimo de privatização accionista), «mercado accionista» e tantas outras ideias penetrantes e reformistas veiculadas por Pequim, que diríamos vir a desembocar num simples «Estado de Direito», irão finalmente ao encontro daquele sistema, tão iníquo e indesejado pelos trabalhadores que sob ele vivem, o sistema capitalista?

 

A China enriquece-se em conhecimentos preciosos do progresso económico, social e científico-tecnológico. Enriquece e aprofunda a formação da cultura e da democracia, necessários à sobrevivência da humanidade – predominante espécie biológica, a dos humanos, que ameaça o planeta e a sua própria extinção. A RPC esconde-nos, ainda, porque não temos olhado com atenção, o que parece ser uma revolução na agricultura e na propriedade agrária. Não só retirou 700 milhões de pessoas da pobreza, como se revela capaz de gerar altos níveis de qualidade de vida para o homem e para o meio ambiente, superando todas as necessidades. Os seus progressos têm uma base socialista.

 

Basta refletir sobre quanto espaço físico tem sido imediatamente nacionalizado, ou estava já, pelas suas linhas de alta velocidade férrea e rodoviária. Ou pela reflorestação de planícies imensas. Ou lembrar as suas centenas de portos e aeroportos, e todo o desenvolvimento das vias de comunicação em geral, nacionais, globais e espaciais. Nos milhões de quilómetros quadrados atribuídos à habitação e aos imensos edifícios de serviços públicos estatais nas cidades. Na planificação das cidades e no urbanismo. Quantos segredos das suas empresas não estão contados nos seus jornais estatais, onde quase sem novidade assistimos aos constantes resultados excepcionais do investimento, fruto de planificação estatal?

 

3. E quanto do progresso social, da saúde pública à dignificação da mulher, não é hoje patente na RPC, como em nenhum país capitalista rico, e mesmo muito maior do que nos outros países da mesma índole e costumes daquela geografia? (O capitalismo afunda-se, não é demais contrastar aqui, em regressões sociais de todos os tipos, onde, por exemplo, o consumir-se de mentiras, de ilusões, de crendices, de todo o tipo de estimulantes e estupefacientes, toma proporções avassaladoras.)

 

A população chinesa é amistosa, cada vez mais aberta ao mundo, consciente de o bem-estar individual provir do coletivo. A população conhece hoje uma felicidade mais saudável e consciente, que fará da China uma potência mais livre e de vanguarda.

 

Mais importante, acima de tudo, é o que se pronuncia na história futura e o que trazemos aqui com o principal objetivo de lhe dar o devido relevo (e poderá constatá-lo quem viver algum tempo na China). É que depois do fim da pobreza e do analfabetismo para 1400 milhões de seres humanos, está à espreita uma nação de alta cultura, desenvolvimento e bem-estar, de uma educação pública muito superior em múltiplos domínios do conhecimento.

 

Os desenvolvimentos no ensino são notáveis. Como prova disso, mais concreta se bem que imperfeita, temos os resultados dos testes de 2018 do Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes, o conhecido PISA, que vê hoje o conjunto de quatro regiões representativas da China continental ficar destacadamente à frente nos três capítulos de avaliação (leitura, ciências e matemática). À frente dos países da OCDE e dos mais de 70 países associados do PISA. Note-se que no 3º lugar fica Macau e que o 2º lugar, Singapura, tem menos 7% na avaliação final em ciências e menos 3,8% a matemática. Na edição anterior, 2015, em que a China já participava nos mesmos moldes, Singapura ficara à frente, com a mesma média de resultados de sempre dos primeiros lugares... Verifica-se, assim, um levantar voo da RPC relativamente a todos os modelos habituais que referenciamos para o ensino.

 

O silenciamento e deturpação nos países capitalistas do que se passa na RPC é sintomático. Pretendem destruí-la ao mesmo tempo que vão tentando esconder a realidade e o fracasso do capitalismo. A China está sendo acusada de se fechar e armar, de se vigiar e de velar por qualquer ideal inexistente, e de intransigentemente defender a sua soberania acima da ameaça capitalista do extermínio da humanidade. Tal civilização de milhares de anos, há-de ser repudiada pelo, esse sim, místico, violento, ignorante e perigoso capitalismo, enquanto este durar. Se por um lado assistimos às revoltas anti-capitalistas que pelo mundo fora estão em marcha contra desigualdades gritantes, por outro vemos surgir a oriente uma sociedade de paz e cooperação com os povos do mundo. A China Popular é a demonstração de que a «idade da pólvora» das guerras imperialistas será ultrapassada em breve pela «idade do conhecimento» e da cooperação. Anuncia-se um mundo melhor que vamos desejar partilhar. Quanto a isso, a chamada de atenção está dada.

 

Voltemos ao ano de 1921 como elemento comum de ligação entre Portugal e a China. A coincidência do ano é a fundação dos partidos comunistas português e chinês. As referências comuns, as ligações históricas, e as reivindicações do marxismo-leninismo e da urgência duma verdadeira sociedade socialista em Portugal deverão fazer-nos refletir sobre a actual lição de Mao. (Também a palavra China, que designaria o «Império do Meio» da dinastia Qin, que unificou os povos daquele imenso território, foi, hoje sabe-se bem, introduzida na Europa pelos portugueses do século XVI).

 

- Rui Albuquerque é matemático e professor da Universidade de Évora.

 

12 de Maio de 2020

https://www.abrilabril.pt/internacional/revolucao-chinesa-merece-estudo-reflexao-e-mais-solidariedade

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/206509
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