As raízes mais profundas da demonização da China

07/05/2020
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A vida em Wuhan está gradualmente voltando ao normal
Foto: Xinhua
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Apertem os cintos: a guerra híbrida dos Estados Unidos contra a China fatalmente irá acelerar desabaladamente, agora que relatórios econômicos começam a identificar o Covid-19 como o ponto de virada que marcará o verdadeiro início do século asiático - ou melhor dizendo, eurasiático. 

 

A estratégia dos Estados Unidos continua sendo, essencialmente, a de dominação de espectro total, e a Estratégia de Segurança Nacional continuará obcecada pelas três maiores "ameaças" - China, Rússia e Irã. A China, ao contrário, propõe para a humanidade uma "comunidade de destino compartilhado", dirigindo-se, principalmente, ao Sul Global. 

 

A narrativa predominante dos Estados Unidos na atual guerra de informação já está definitivamente sacramentada: o Covid-19 escapou de um laboratório chinês de guerra biológica. A China é a responsável. A China mentiu. E a China tem que pagar.

 

O novo normal da tática de demonização incessante da China é empregado não apenas por funcionários toscos do complexo industrial-militar-policial-midiático. Temos que cavar muito mais fundo para descobrir que essas atitudes estão profundamente enraizadas no pensamento ocidental - tendo mais tarde migrado para os Estados Unidos do "fim da história". (Aqui estão trechos de um excelente estudo, Unfabling the East: The Enlightenment’s Encounter with Asia - Desfabulando o Oriente: o Encontro do Iluminismo com a Ásia - de Jurgen Osterhammel).

 

Apenas os brancos são civilizados

 

Bem além da Renascença, já nos séculos XVII e XVIII, sempre que a Europa se referia à Asia era em termos de a religião condicionando o comércio. A Cristandade reinava suprema, de modo que era impossível um pensamento que excluísse Deus. 

 

Ao mesmo tempo, perturbava profundamente aos doutores da Igreja ver que, no mundo sinificado, uma sociedade muito bem organizada conseguia funcionar na ausência de uma religião transcendente. Isso os incomodava ainda mais que os "selvagens" descobertos nas Américas. 

 

Na época em que começava a explorar o que então era visto como o "Extremo Oriente", a Europa estava atolada em guerras religiosas. Mas, ao mesmo tempo, ela era forçada a se confrontar com uma outra explicação para o mundo, o que alimentou de forma subversiva algumas tendências anti-religiosas em toda a esfera do Iluminismo. 

 

Foi nesse ponto que os europeu cultos começaram a questionar a filosofia chinesa que eles, como não poderia deixar de ser, tinham que degradar ao status de mera "sabedoria" mundana, porque ela fugia aos cânones do pensamento grego e agostiniano. Essa atitude, por sinal, ainda reina nos dias de hoje. 

 

Assim, tivemos na França o que era descrito como chinoiseries — revelando uma espécie de admiração ambígua, que via na China o exemplo supremo de sociedade pagã.

 

Mas então a Igreja começou a perder a paciência com o fascínio que os jesuítas sentiam pela China. A Sorbonne foi punida. Uma bula papal de 1725 condenou cristãos que então praticavam ritos chineses. É muito interessante notar que os filósofos sinófilos e os jesuítas condenados pelo Papa insistiam que a "verdadeira fé" (o Cristianismo) havia sido "prefigurada" nos textos da Antiguidade chinesa, mais especificamente os confucionistas. 

 

A visão europeia da Ásia e do "Extremo Oriente" foi conceituada principalmente por uma poderosa tríade alemã: Kant, Herder e Schlegel. Kant, incidentalmente, também era geógrafo, e Herder era geógrafo e historiador. Pode-se dizer que esse trio tenha sido o precursor do Orientalismo ocidental moderno. É fácil imaginar um conto de Borges tendo esses três como tema.

 

Por mais que tivessem conhecimento da China, da Índia e do Japão, Kant e Herder viam a Deus como estando acima de tudo. Ele havia planejado o desenvolvimento do mundo em todos os detalhes. E isso nos traz à espinhosa questão da raça.

 

Rompendo com o monopólio da religião, as referências à raça representavam uma verdadeira guinada epistemológica em relação aos pensadores de antes. Leibniz e Voltaire, por exemplo, eram sinófilos. Montesquieu e Diderot eram sinófobos. Nenhum deles usava a raça para explicar diferenças culturais. Montesquieu desenvolveu uma teoria baseada no clima, que entretanto não tinha conotação racial - era mais um enfoque étnico. 

 

A grande virada veio com o filósofo e viajante francês François Bernier (1620-1688), que passou treze anos viajando pela Ásia e, em 1671, publicou um livro intitulado La Description des Etats du Grand Mogol, de l'Indoustan, du Royaume de Cachemire, etc. Voltaire, em uma tirada hilariante, chamou-o de Bernier-Mogol — porque ele fazia enorme sucesso contando suas histórias para a corte real. Em um livro subsequente, Nouvelle Division de la Terre par les Differentes Especes ou Races d’Homme qui l’Habitent, publicado em 1684, o 'Mogol' distinguia até cinco raças humanas. 

 

O critério que embasava essas divisões era a cor da pele, e não famílias, ou clima. Os europeus eram mecanicamente situados no topo, e as demais raças eram consideradas "feias". Mais tarde, a divisão da humanidade em até cinco raças foi adotada por David Hume — sempre tomando como base a cor da pele. Hume proclamou ao mundo anglo-saxônico que apenas os brancos eram civilizados, e todos os outros eram inferiores. Essa atitude ainda é generalizada. Ver, por exemplo, esta patética diatribe recentemente publicada na Grã-Bretanha. 

 

Duas Ásias

 

O primeiro pensador a de fato propor uma teoria da raça amarela foi Kant, em seus escritos dos anos 1775 - 1785, afirma David Mungello em The Great Encounter of China and the West, 1500-1800

 

Kant via a "raça branca" como "superior" e a "raça negra" como "inferior" (Kant, por sinal, não condenava a escravatura). A "raça acobreada" era "frágil" e a "raça amarela" era intermediária. As diferenças entre elas deviam-se a um processo histórico que começou com a "raça branca", considerada a mais pura e original, as demais sendo bastardas. 

 

Kant subdividiu a Ásia em países. Para ele, o Leste Asiático queria dizer Tibé, China e Japão. Ele via a China em termos relativamente positivos, como uma mistura das raças branca e amarela. 

 

Herder era definitivamente mais brando. Para ele, a Mesopotâmia foi o berço da civilização ocidental, e o Jardim do Éden ficava em Caxemira, "o paraíso do mundo". Sua teoria da evolução histórica fez um sucesso arrasador no Ocidente: o Oriente era um bebê, o Egito, uma criança, e a Grécia era um jovem. O Leste Asiático de Herder compreendia Tibé, China, Cochinchina, Tonquim, Laos, Coreia, a Tartária Oriental e o Japão - todos países e regiões tocados pela civilização chinesa. 

 

Schlegel foi uma espécie de precursor dos hippies dos anos 60. Ele era um entusiasta do sânscrito e um estudioso sério das culturas orientais. Segundo ele, "é no Oriente que devemos buscar o romantismo mais elevado". A Índia era a fonte de tudo, "de toda a história do espírito humano". Não é de admirar que esse insight tenha se transformado no mantra de toda uma geração de orientalistas. Foi aí também que começou a visão dualista da Ásia que ainda hoje predomina em todo o Ocidente. 

 

Então, no século XVIII, já havíamos estabelecido firmemente uma visão da Ásia como uma terra de servidão e berço do despotismo e do paternalismo, em nítida oposição a uma visão da Ásia como o berço das civilizações. A ambiguidade tornou-se o novo normal. A Ásia era respeitada como a mãe das civilizações - incluindo-se aí os sistemas de valores - e até mesmo como a mãe do Ocidente. Ao mesmo tempo, a Ásia era aviltada, desprezada ou ignorada por nunca ter atingido o alto nível do Ocidente, apesar de ter largado na frente. 

 

Esses déspotas orientais 

 

E isso nos leva ao Figurão: Hegel. Hiper bem-informado - ele lia relatórios enviados de Pequim por ex-jesuítas - Hegel não escreve sobre o "Extremo Oriente", mas apenas sobre o Oriente, que inclui o Leste Asiático, essencialmente o mundo chinês. Hegel não dá a mesma importância à religião que seus predecessores, ele fala do Oriente do ponto de vista do estado e da política. Ao contrário de Schlegel, com seu gosto por mitos, Hegel vê o Oriente como um estado da natureza em processo de alcançar o começo da história, diferentemente da África Negra, que ele via como chafurdando no pântano de um estado de bestialidade. 

 

Para explicar a bifurcação histórica entre um mundo estagnado e um outro em movimento rumo ao ideal ocidental, Hegel dividiu a Ásia em duas partes. 

 

Uma das partes era formada pela China e pela Mongólia: um mundo pueril de inocência patriarcal, onde as contradições não se desenvolviam e a sobrevivência de grandes impérios atestava o caráter "insubstancial", imóvel e ahistórico daquele mundo. 

 

A outra parte era a Vorderasien ("Ásia Anterior"), que unia o atual Oriente Médio e a Ásia Central, do Egito à Pérsia. Este já seria um mundo histórico. 

 

Essas duas imensas regiões eram também subdivididas, de modo que, ao final, o Asiatische Welt (mundo asiático) de Hegel compunha-se de quatro partes: a primeira, as planícies dos rios Amarelo e Azul e os planaltos da China e Mongólia; a segunda, os vales do Ganges e do Indo; a terceira, as planícies do Oxis (hoje Amur-Darya) e de Jaxartes (hoje o Syr-Darya), os planaltos da Pérsia, os vales do Tigre e do Eufrates; e a quarta parte, o Vale do Nilo. 

 

É fascinante ver que, na Filosofia da História (1822-1830), Hegel acaba por destacar a Índia como uma espécie de estágio intermediário da evolução histórica. Então, como Jean-Marc Moura demonstrou em seu L’Extreme Orient selon G. W. F. Hegel, Philosophie de l’Histoire et Imaginaire Exotique, temos, ao final, um "Oriente fragmentado, do qual a Índia é um exemplo, e um Oriente imóvel, preso em quimeras, ilustrado pelo Extremo Oriente".

 

Para descrever a relação entre o Oriente e o Ocidente, Hegel emprega umas poucas metáforas. Uma delas, bastante famosa, usa a imagem do Sol: "A história do mundo se move do leste para o oeste, a Europa, portanto, sendo o fim absoluto da história e a Ásia, o começo". Todos nós sabemos onde os subprodutos baratos desse "fim da história" acabaram por nos levar. 

 

Uma outra metáfora é de autoria de Herder: o Oriente é a "juventude do mundo"- embora a China ocupe um lugar especial em razão da importância dos princípios confucionistas que privilegiam sistematicamente o papel da família.

 

Nada do que foi esboçado acima, obviamente, é neutro em termos da compreensão da Ásia. A dupla metáfora - a do sol e a da maturidade - serviu para reassegurar o narcisismo do Ocidente, mais tarde herdado da Europa pelos Estados Unidos "excepcionalista". Essa visão, como não poderia deixar de ser, subentende um complexo de superioridade, ainda mais agudo no caso dos Estados Unidos porque legitimado pelo curso da história.

 

No pensamento de Hegel, a história teria que ser avaliada sob o enfoque do desenvolvimento da liberdade. Bem, na Índia e na China ahistóricas, não havia condições para a existência da liberdade, a não ser se trazida por uma iniciativa vinda do exterior. 

 

E foi assim que o famoso "despotismo oriental" evocado por Montesquieu, bem como a possível, por vezes inevitável e sempre valiosa intervenção do Ocidente, foram simultânea e totalmente legitimados. Não devemos esperar que essa mentalidade ocidental venha a mudar em algum futuro próximo, se é que algum dia ela irá mudar. Muito especialmente porque a China está prestes a voltar à cena como o Número Um.

 

- Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais. Para o Asia Times

 

Tradução de Patricia Zimbres, para o 247

 

4 de maio de 2020

https://www.brasil247.com/blog/as-raizes-mais-profundas-da-demonizacao-da-china

 

https://www.alainet.org/pt/articulo/206396
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