Os possíveis desdobramentos sobre a presença dos militares no poder
- Análisis
Uma advertência: este é um texto escrito no calor dos acontecimentos. Isso significa que, diferentemente de formulações que podem contar com o distanciamento histórico, ou de escritos que focam no debate teórico, este texto é escrito conforme o desenrolar dos fatos.
Antecedentes
Depois de uma noite que durou 21 anos, um civil eleito chegou, em 1985, à Presidência da República brasileira. A saída das Forças Armadas do centro do poder político foi altamente controlada pelos militares, em um processo de transição transada, com todas as garantias de que eles não seriam julgados pelo regime imposto a partir do golpe de 1964.
Fernando Collor de Mello, civil eleito com um projeto de reformas, durou pouco: dois anos depois de chegar ao Planalto, foi afastado em um processo de impeachment no qual ficou comprovado crime de responsabilidade resultante de alta corrupção, e na qual os comandantes militares mantiveram calculada equidistância.
As questões políticas e especialmente econômicas mais imediatas empurraram a necessária reforma militar para um futuro cada vez mais distante. Exemplo disso foi a criação do Ministério da Defesa com a supressão dos ministérios militares, que aconteceu apenas em 1999, no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Além de medidas administrativas como esta, pouco se fez para subordinar os militares ao controle civil.
Após relativa estabilidade durante o governo de Luiz Inácio Lula de Silva (PT), as relações civis-militares experimentaram um período de deterioração.
A calmaria ocorreu em virtude das ações das Forças Armadas Brasileiras (FFAA) e dos civis na condução política, que mantinham certo distanciamento. Por outro lado, viu-se crescer as Operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), o que retoma a ideia de inimigo interno, com o emprego das FFAA em questões de segurança pública.
A deterioração aprofundou-se paulatinamente no governo Dilma Rousseff (PT). Para além do machismo – afinal, os generais teriam que bater continência para uma mulher, sua comandante em chefe –, segundo o General Etchegoyen, os militares entraram em rota de choque com Dilma por questões objetivas, como, por exemplo, o funcionamento da Comissão da Verdade, e subjetivas (algo como "políticos de esquerda são populistas e apostam na polarização ideológica"). Durante o rito processual do golpe, as FFAA mantiveram majoritariamente seu papel institucional. Afirma-se "majoritariamente" pois a anuência é uma forma de ação perceptível.
As Forças Armadas se colocaram como fiadoras da legitimidade do governo de Michel Temer (MDB), que foi marcado por um comportamento tutelar por parte dessas mesmas FFAA, cujo comportamento, exemplificado pelo general Villas Boas, manteve as instituições sob contínua pressão. Isto é, embora as FFAA sempre afirmassem que suas ações estavam pautadas pela estabilidade, pela legalidade e pela legitimidade, foram elas mesmas quem definiram os limites desses três conceitos.
Devido a esse protagonismo imediato, acreditamos que houve sim um grupo de militares que conspirou sorrateiramente pelo golpe contra Dilmas, ainda que as três forças institucionalmente tenham passado quase ao largo disso. Entretanto, o golpe não foi fruto de uma conspiração militar, mas sim do trabalho de, no mínimo, três grupos conspiradores com objetivos diferentes, mas que em determinado momento se unificam e derrubam a presidenta: os políticos, o poder judiciário – especialmente a Lava Jato – e o grupo militar. Esse desejo de protagonismo por parte de setores militares não foi explícito, e por isso chamamos esse comportamento de protagonismo sorrateiro.
Com Bolsonaro, as FFAA tornaram-se, desde a campanha, abertamente jogadoras, formando um dos grupos de sustentação ao governo. Embora sempre tenham afirmado que não foram para o governo enquanto instituição, se mostraram um grupo bastante coeso, comportando-se como um partido militar. O efeito direto e imediato disso foi a exposição da instituição, especialmente do Exército, e o esvaziamento político do Ministério da Defesa.
O desenrolar do governo deixou claro que as FFAA não conquistaram a hegemonia do governo, embora o tenham ocupado massivamente. Apesar disso, as FFAA disputam tal hegemonia com um projeto melhor pensado e organizado e, portanto, melhor aparelhado para atuar como um verdadeiro partido. Estão bem posicionados para isso, ocupando quase 2,5 mil cargos de assessoria ou chefia em ministérios ou repartições. Até recentemente, Bolsonaro era funcional para esse projeto.
Hipóteses de cenários
Entre todas as questões que seriam pertinentes, selecionamos três elementos fundamentais a serem aprofundados. O primeiro diz respeito à perda do monopólio do exercício da força estatal por parte das Forças Armadas. O segundo, que se relaciona com o anterior, diz respeito à quebra de hierarquia generalizada. O terceiro trata da destruição das instituições estatais e sua reorganização enquanto Estado autoritário.
A primeira hipótese ocorre em virtude da forte ligação entre Bolsonaro e as milícias armadas. É estranho que as FFAA não soubessem dessas ligações antes da eleição, devido ao seu acesso privilegiado às ferramentas de informações. Se as FFAA sabiam dessas ligações, também é estranho terem endossado um presidente fortemente apoiado por essas forças também armadas, ainda que milicianas, que disputam com as próprias FFAA o monopólio de usar a força do Estado. Existiria um medo de que, caso as FFAA não ocupassem seu espaço formal no governo, esse vácuo de poder seria ocupado por forças armadas informais (paramilitares)?
Esse medo faz sentido também diante das forças formais, como as polícias militares. Foi uma conquista das FFAA a subordinação das polícias e todos os projetos de mobilização das FFAA em território nacional em caso de grave ameaça, que contam com a utilização dessa força auxiliar extremamente pulverizada. A maioria dos intelectuais escreve sobre o medo da policialização das FFAA, especialmente em razão da banalização de operações GLO. Entretanto, também é preciso pensar o aumento da militarização das polícias, de modo a se tornarem mais importantes do que as próprias Forças Armadas. Esse cenário recentemente se confirmou com o motim da polícia militar do Ceará. O ministro da Justiça, Sergio Moro, atuou muito fracamente, assim como o coronel comandante da Força Nacional de Segurança Pública.
O segundo cenário diz respeito à hipótese de quebra de hierarquia, pilar fundamental das FFAA, junto à disciplina. Acredita-se que as FFAA, quando assumiram o projeto de governo, tinham a firme crença de que tutelariam Bolsonaro. Na realidade, Bolsonaro foi mais habilidoso e fez o que sempre fez: sindicalismo militar e política para o baixo clero. Mesmo entre os oficiais, essas diferenças se apresentaram. Em outras palavras, a hierarquia vai sendo solapada pela distribuição de oficiais em empregos a partir de critérios distintos para a promoção, salários, benefícios.
A fraqueza do comandante que cede à pressões, sejam elas internas ou externas, é uma das variáveis que compõe nossa terceira hipótese, de que o bolsonarismo estaria conseguindo desestabilizar todas as instituições do Brasil, incluindo as mais tradicionalistas, como as Forças Armadas e o Poder Judiciário. Regimes nos quais o sistema de controles mútuos entre os poderem funcionam, temem a paralisia decisória que conflitos entre os poderes podem provocar. Tomando o mesmo desenho, a militarização da burocracia pode levar ao seu colapso.
Bolsonaro organizou e mantém mobilizado esse exército informal militante. Todavia, parte desse exército é armado, como é perceptível pelo forte apoio miliciano e nas polícias militares que o presidente possui, constituindo uma bomba relógio pronta para explodir. Com ou sem a confirmação dos cenários anteriores, ou seja, com ou sem o fim do monopólio da força e, com ou sem a quebra de hierarquia, Bolsonaro tem hoje um forte exército pretoriano, como nenhum governante da Nova República sequer sonhou.
Nesse cenário, também não é descartável a hipótese de militarização da política, distinta de 1964, mas com uma questão comum. Antes de mais nada, para garantir sua própria existência, as FFAA precisam garantir a existência do Estado. Sem uma estrutura de mediação política (que é a função da República) para os conflitos estruturais que inevitavelmente surgirão num cenário de crise social, triunfa a mediação da violência, os senhores da guerra. O problema moral e político das FFAA é que seu cliente são abstrações, instituições coletivas ou até imaginárias (como a Constituição, maiorias eleitorais, nação, líder...), frequentemente em conflito entre si. Elas não são responsáveis por essas tensões, mas recorrentemente conduzem as FFAA a impasses.
Por outro lado, as FFAA não querem ficar mais uma vez com a pecha de golpistas, afinal, Bolsonaro foi eleito (com ou sem fraude é outro debate). Da mesma maneira, não desejam abrir espaço para um retorno da esquerda ao governo. Nesse sentido, tão importante quanto acompanhar a movimentação das camadas superiores do governo é perceber a militarização que ocorre no seio da sociedade e as alterações que ocorrem na percepção do povo brasileiro sobre as FFAA. Para isso, é preciso levar em conta a cultura violenta e autoritária que estrutura o país e o tipo de transição do regime burocrático autoritário para o governo democrático que aqui se construiu. Mas isso é tema para outro artigo.
Estas análises são feitas diante da explosão dos casos de coronavírus no Brasil, que, sem dúvida, será o maior teste que as FFAA terão das suas capacidades. Simultaneamente, é uma janela de oportunidade para a militarização da política. Sem dúvida, as FFAA sairão desse processo em outro patamar. Se melhor ou pior, veremos. Assim como para o mundo, os próximos meses determinarão o que será esse século para o Brasil.
Terminamos com nova advertência. Propositadamente, este texto não focou em questões de defesa, mas estas vêm sendo impactadas pelo governo Bolsonaro e pelo comportamento partidarizado dos seus principais servidores públicos, os militares. Exemplo claro nesse sentido e que expôs o país a constrangimento internacional e mal-estar com seus vizinhos foi o documento vazado com cenários prospectivos para 2040, elaborado pela Escola Superior de Guerra (RJ), cuja principal hipótese de conflito é com a França.
- Ana Penido, Jorge M. Rodrigues e Suzeley Kalil Mathias são pesquisadores do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional da UNESP.
*O estudo completo que deu origem a este artigo será publicado no Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
Edição: Rodrigo Chagas